7/20/2009

Pegando numa notícia

Tal como tem acontecido em milhentas outras circunstâncias, uma pequena notícia de há dias mostra o gato escondido com o rabo de fora. Neste caso, no sector financeiro internacional.
Como todos tivemos ocasião de ouvir, ler e ver nos diversos meios de comunicação, a crise actual é o resultado de vários agentes e factores, entre os quais avulta o abismo existente entre a economia real do planeta e as massas financeiras que atravessam este mesmo planeta em que vivemos. A proporção mais consensualmente aventada é da ordem de 3 para 1. Este diferencial foi gradualmente causando um enorme desfasamento que, por sua vez, esteve na origem de uma bolha que acabou por rebentar com estrondo.
Conceitos queridos aos conservadores neo-liberais como liberalização, desregulação e desregulamentação estiveram entre os grandes culpados. Choveram entretanto vozes de governantes, apavorados perante a queda da economia e aumento em espiral da taxa de desemprego nos seus próprios países, clamando por maior controlo e por regulação muito mais apertada.
Entre os instrumentos financeiros mais comummente usados pelas grandes fortunas estiveram os hedge funds, fundos que não passam pela bolsa e movimentam massas de dinheiro tão vultosas que podem provocar verdadeiros tsunamis em bolsas ou em multinacionais, como aliás já sucedeu. Os dinheiros colocados nesses hedge funds provêm geralmente de contas offshore que os seus detentores manejam a seu bel-prazer, elidindo do Estado os respectivos valores sujeitos a impostos e defraudando a sociedade a que pertencem por nacionalidade.
Ora bem! Já com bem mais de um ano de crise, com os problemas de emprego que se conhecem e as óbvias dificuldades estatais para manter intocado o sistema de Segurança Social – de onde há mais saídas devidos a subsídios aos desempregados e menos entradas em razão de uma economia débil e do facto de os grandes dinheiros estarem offshorizados – o panorama pareceria óptimo para uma profunda revolução do sistema. Puro engano! Os grandes agentes e causadores da crise mantêm-se, embora com um nível de riqueza substancialmente mais baixo. O seu poder permanece intacto a muitos níveis – superando o poder político, que eles financiam. Assim sendo, a questão que se coloca não é a de abandonarem o sistema, mas sim de procurarem desregulá-lo cada vez mais. Se a Segurança Social cai, eles lá estarão para atrair as maiores deduções para reformas. A pergunta que chegou a ser feita "Será o fim do capitalismo?" tem uma resposta em certa medida surpreendente: "Pelo contrário!"
Vamos por partes.

1.Vale mais ser grande ou ser pequeno? – Com excepções sem grande significado, a resposta inquestionável é "ser grande". Assim, pensemos em grandes bancos, grandes fundos, grandes multinacionais, grandes empresas, grandes PIBs, etc.

2.As empresas maiores preferem trabalhar a uma escala nacional ou mundial? A resposta certa é "mundial ou global". O "nacional", "pátrio", recua perante tudo o resto. A palavra "patriota" é quase tabu. Países explorados ou mesmo militarmente invadidos vêem os seus patriotas ser apodados de "insurrectos", "revoltosos" ou "terroristas". O ponto de vista é sempre o dos grandes, que controlam os media.

3.O desemprego nacional, em grande parte causado pela procura de mão-de-obra mais barata noutras paragens como a China, Índia, Indonésia e México, não preocupa as grandes companhias? Porque haveria de preocupar? Elas até agradecem. Despedem trabalhadores efectivos colectivamente e desandam para outros lados. Usando a palavra-chave do mundo empresarial do neo-liberalismo: desinstalam-se. Noutros casos, despedem uns tantos empregados apenas para talvez os readmitir mais tarde com a ajuda de subsídios estatais, que os governantes mais cedo ou mais tarde terão de conceder para que o seu próprio lugar no governo não fique em perigo.

4. E os salários? Não só serão mais baixos, como também o vínculo que prende os trabalhadores à empresa tenderá a deixar de ser o de efectividade. O empregado chamará a isto precariedade. Na óptica do empregador, o esquema não significa mais do que externalizar serviços. Vulgo outsourcing. Assim, a firma, que deve estar sempre pronta a encarar a hipótese de ser vendida – faz parte do conceito de "desinstalação" – torna-se mais apetecível para o comprador, que estará disposto a pagar mais. Grande parte do trabalho de casa já está feito.

5.As offshores mantêm-se? Como já foi referido, os governantes e até, saúde-se, o Papa estão contra a existência desses centros financeiros semi-secretos. Eles são o cerne de todo o sistema. São o local onde os grandes lucros obtidos com as operações de globalização – e também com branqueamento de capitais de operações ilícitas – se eximem de impostos devidos aos Estados nacionais. Enquanto as offshores se mantiverem, não haverá qualquer mudança substancial no sistema. Pelo contrário, este tenderá a agravar-se, do ponto de vista do cidadão comum.

6.Qual é a posição dos Estados e seus respectivos governos? Muitos dos Estados já não estão isolados, unidos que foram por diversos tratados a fim de ganharem maior dimensão, como é o caso da União Europeia. A NAFTA, o Mercosur e outras associações de países lutam pela união-que-faz-a-força. Todos querem ser grandes para aumentar o seu poder e fazer economias de escala. Individualmente, cada Estado tem os seus governantes, que se verão obrigados a melhorar os países que estão a gerir sob pena de perderem a popularidade e, com ela, o lugar. Com a descapitalização do Estado devido ao abrandamento da economia e à consequente diminuição de receitas, agravada pela evasão fiscal efectuada através dos offshores, os governantes nacionais debatem-se com sérios problemas. Como é visível neste momento.

7.O capitalismo neo-liberal manter-se-á? Nada é garantido, mas (quase) tudo, surpreendentemente, parece indicar isso mesmo. Barack Obama está a tentar uma verdadeira revolução nos Estados Unidos e também a nível internacional, mas é infelizmente duvidoso que seja cem por cento bem-sucedido face a forças tão poderosas do mundo do capital. Apetece-me recordar uma reflexão irónica do já falecido economista J. K. Galbraith: "No sistema capitalista, o homem explora o homem. No sistema comunista é o contrário."

8.Então e qual é agora a pequena notícia que terá dado azo a estas linhas?A notícia informa que os responsáveis da Euronext (bolsas de valores de Portugal, França, Bélgica e Holanda) consideram que as Multilateral Trading Facilities (MTF) – plataformas alternativas de transacção de acções – estão a fazer concorrência desleal. As MTF não são regulamentadas e possuem uma estrutura muito mais leve por não fazerem os investimentos a que as outras bolsas são obrigadas, o que se reflecte nos preços. Estas plataformas captam já cerca de 20 por cento, com tendência para aumentar, do total da liquidez gerada pelas bolsas convencionais. Como o preço das acções não se determina nestas plataformas mas sim nas bolsas regulamentadas, a partir do momento em que a liquidez se vai fazendo fora há o risco de o preço não se formar de uma maneira correcta, o que é gravíssimo para os fundamentos do mercado. Quem fica a ganhar são as grandes casas de investimento que, aliás, são os accionistas destas plataformas alternativas, e os hedge funds, que privilegiam a utilização das MTF.

Quod erat demonstrandum.

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