Começo por dizer que nunca encontrei este assunto abordado em nenhuma gramática da língua portuguesa. No entanto, tenho também de confessar que estou muito longe de ter consultado todas as gramáticas existentes.
O que vou aflorar em seguida não é uma regra, mas estou convencido de que constitui uma tendência muito acentuada da língua portuguesa. Se eu falo de um gira-discos, de um amola-tesouras ou de um abre-latas, estou a usar substantivos que terminam em –s apesar de estarem na sua forma singular. Que "um", artigo indefinido singular, venha seguido de um singular terminado em -s, nada tem de anómalo (os vocábulos "lápis" e "cútis" também terminam em –s no singular). Aliás, um gira-discos é uma simplificação de "aparelho que faz os discos girar", da mesma maneira que "um amola-tesouras" expressa "um indivíduo que amola tesouras" e um abre-latas traduz "um utensílio para abrir latas". É por isso que o hífen existe tanto em gira-discos como em amola-tesouras e em abre-latas. Estas palavras não têm qualquer conotação, negativa ou positiva. São objectivas.
Contudo, existem na nossa língua numerosas palavras que no singular terminam em –s e possuem por vezes uma forte conotação negativa. Tanto quanto me lembro, nunca aprendemos isto na escola, mas começamos a entender o processo quando ouvimos determinadas palavras e nos apercebemos da sua conotação. Posteriormente, podemos ser nós próprios os promotores de novos vocábulos, criativos e perfeitamente explícitos, i.e. imediatamente compreensíveis à vista ou ao ouvido de qualquer pessoa.
Lancemos uma mirada sobre duas dezenas de termos comuns:
Um choramingas
Um queixinhas
Um cobardolas
Um borrabotas
Um medricas
Um maricas
Um larilas
Um panilas
Um piegas
Um merdas
Um troca-tintas
Um arolas
Um vira-casacas
Um lambe-botas
Um lambe-cus
Um artolas
Um vira-latas
Um lamechas
Um lambe-pratos
Um tira-dentes
Em cada uma destas linhas encontramos um certo desvio do padrão normal que rege a língua portuguesa. Esse desvio consiste no facto de "um" ser um artigo indefinido singular e de o substantivo que se lhe segue terminar em –s, que é característico da formação de plurais. Se constituir uma certa anomalia, por que razão existirá? Que significado tem?
Embora não seja talvez importante dizê-lo, creio que esta inconsistência relativamente ao português-padrão é tomada subconscientemente mas é, por outro lado, suficientemente expressiva para ser de pronto aceite pela comunidade linguística.
Na mesma medida em que estas palavras constituem um desvio, também existe um desvio em todos estes substantivos qualificativos, cheios de expressividade, relativamente a um padrão convencional do ponto de vista da sociedade que utiliza o idioma.
Sociologicamente, estes substantivos aplicam-se a modelos que não são na generalidade dignos de admiração e, pelo contrário, são objecto por parte do núcleo duro da sociedade de um certo desprezo, uma reprovação que pode ser maior ou menor, mais ou menos ridícula ou com laivos de sátira. Esses modelos, representados por indivíduos e pelos seus comportamentos, existem na sociedade, mas são, pelo menos parcialmente, vistos como uma aberração quando postados em confronto com um paradigma imaginado e desejável.
Analisemos os casos um pouco mais em pormenor.
Todos temos a noção de que a generalidade da sociedade admira os homens valentes, possuidores de coragem para enfrentar situações difíceis e perigosas. O homem que não consegue ser assim denota medo ou constitui um desvio para um ser efeminado. Daqui advêm termos como "o medricas", "o maricas", "o borrabotas" e "o cobardolas". "O piegas", "o choramingas" e "o queixinhas" entram também neste grupo (todos terminados em -s). Daqui sobressai a admiração social pelo estoicismo, pelo aguentar a dor sem chorar, a tortura, se preciso for, sem revelar nomes de outrem.
A sociedade repudia de uma maneira geral os desvios ao padrão normal de relacionamento sexual entre homem e mulher. Esses desvios são punidos por vocábulos cuja formação igualmente terminada em –s denuncia o estigma aposto. Assim, falamos de "um larilas", "um maricas", "um panilas".
A sociedade admira igualmente os indivíduos íntegros, que se revelam consistentes no seu comportamento e são merecedores da nossa confiança. Os outros são classificados de maneira diferente. São "troca-tintas", "vira-casacas", "lambe-botas" ou, com maior agressividade, "lambe-cus".
Se um dentista é apodado de "tira-dentes", não o estamos exactamente a elogiar.
Se alguém que gosta de comer muito é apodado de "lambe-pratos", não o consideramos um gourmet, antes vemo-lo como um comilão desenfreado que rapa tudo.
"Um lamechas", com as suas lamechices, é mais um untador amoroso do que um pinga-amor.
Um cão rafeiro, que tem de procurar por si comida onde a encontrar, é "um vira-latas".
Um indivíduo que genericamente não presta é "um merdas".
Um indivíduo que usa barba e que não respeitamos muito ou mesmo despeitamos pode passar a ser "o barbas", se usar uma pêra passará a ser "o pêras", se for senhor de um notório bigode passará possivelmente a ser "o bigodes".
Da mesma maneira, alguém que tem necessidade de corrigir a vista com lentes será, depreciativamente, chamado "caixa d’óculos" ou, com um tom mais amigo mas jocoso, "o vidrinhos". Repare-se que todos estes qualificativos mais ou menos depreciativos terminam em –s.
Em termos práticos, se eu quiser criar palavras mais ou menos satíricas, ofensivas ou desprestigiantes para as pessoas a quem elas se aplicam, por vezes com laivos de comicidade, tenho apenas de arranjar vocábulos comuns apropriados e juntar-lhes um –s. Assim, se eu estiver a falar de um larápio e lhe chamar "o mãozinhas", toda a gente entenderá imediatamente. As alcunhas também se fazem assim. Se quiser referir-me a um indivíduo que fala muito e pelo meio diz coisas inconvenientes, posso chamar-lhe "o bocas". Se quiser ridicularizar um orelhudo, chamo-lhe "o orelhas". Se quiser criticar um governante por ele prometer muito e realizar pouco, chamo-lhe "o promessas".
Afinal, não era também nesta linha que Oliveira Salazar era apodado de "o Botas"? De resto, ele tinha ainda uma outra designação deste tipo que derivava do facto de a imprensa nunca anunciar, por razões de segurança, que Sua Excelência se ia deslocar a uma determinada cidade, por exemplo, Coimbra. Só no dia seguinte é que os jornais informavam: "O Senhor Presidente do Conselho esteve ontem em Coimbra." Nesta base, que nome foi arranjado para ele pela oposição? O "Esteves". (Hermann José usou mais tarde este nome, que para muitas pessoas significava alguma coisa que dava vontade de rir,sob uma outra vertente. Mais uma vez, encontramos aqui o –s a finalizar uma palavra singular e a conferir-lhe um significado muito especial.)
Para demonstrar a veracidade desta constatação pelo seu oposto, tomemos duas palavras semelhantes a várias outras que se encontram listadas acima: "mariola" e "carola". Dizer "um mariolas" não é vulgar porque a palavra acaba por ter uma conotação mais terna do que de reprovação. "Saíste-me um bom mariola!" é uma graça, diz-se com um sorriso e é como tal aceite.
Quanto a "carola", repare-se no exemplo "Se não fosse o carola do Sr. Carlos, o nosso clube já não existia." "O carolas", que não se usa, emprestaria ao Sr. Carlos uma conotação negativa quando aquilo que se pretendia era elogiá-lo. A língua estaria em contradição com o sentido que queria expressar, logo a comunidade não aceitaria, como não aceitou, o termo "carolas".
Quod erat demonstrandum.
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