3/23/2011

Democracia sui generis

Quando a perestroika ainda não tinha ocorrido na União Soviética, havia perto do centro de Moscovo duas ruas relativamente pequenas onde se comerciava um pouco à socapa um género de artigos que não eram comuns na Rússia, nomeadamente CDs de música americana e britânica que estavam então em moda noutros países. A polícia fazia vista grossa do facto. Porquê? Basicamente porque os CDs não prejudicavam o governo da União Soviética e constituíam até uma saudável válvula de escape para os jovens mais avant-garde que apreciavam aquele tipo de música e que, assim, se sentiam menos reprimidos. A atitude das autoridades russas era, no fundo, tão inteligente como o princípio da panela de pressão, a qual, sem a válvula na tampa a emitir vapor com o correspondente silvo quando a comida está pronta, rebentaria.
Todas as ditaduras precisam de válvulas de escape. A ditadura salazarista, que deixava que os grandes empresários e industriais explorassem os trabalhadores através de salários baixos, organizava, na era pré-televisão, os então famosos "Serões para Trabalhadores", que eram transmitidos para todo o país pela Emissora Nacional (também designada pelos jovens de "Maçadora Nacional") para dar uma ideia de contentamento e alegria e fornecer boa disposição suficiente para cantarolar canções. Os espectáculos de revista do Parque Mayer em Lisboa consentiam piadas ao Santo Antoninho (Oliveira Salazar) e a membros do governo, exactamente pelo mesmo motivo que os russos fechavam os olhos àquele comércio de discos e parafernália semelhante.
Na ditadura portuguesa havia ocasiões particulares: os períodos eleitorais. Durante as semanas que durava a campanha com os vários candidatos da oposição, a liberdade de expressão era ampliada, se bem que mesmo assim dentro de certos limites. Só que, naquele caso, havia uma artimanha por trás dessa maior liberdade: os mais contestatários membros da oposição ficavam desde logo "marcados" pela polícia política e alguns eram mesmo presos durante algum tempo. Quanto às eleições propriamente ditas, eram falseadas em muitos locais.
Mesmo a Assembleia Nacional (as Côrtes, como ainda às vezes se dizia) era protegida nos seus dias de temas de discussão mais quentes de eventuais protestos vindos das galerias. Como? Nesses dias, coincidentemente, apareciam um ou dois autocarros com alunos das escolas que tinham expressamente escolhido aquele dia para visitar o Parlamento e que ocupavam a maior parte dos lugares, restringindo portanto grandemente o acesso à população interessada.
Isto vem a propósito de quê? De uma frase usada há dias por um articulista no jornal Público. Ele expressava a ideia de que a nossa democracia era, afinal, uma "ditadura com liberdades". Não posso concordar mais. Eufemisticamente, chama-se-lhe "democracia iliberal". É um facto que hoje em dia existe, para muitos efeitos, uma real liberdade de expressão. Porém, onde é que essa liberdade pode ser expressa? Nas empresas? Nas instituições públicas? Praticamente toda a gente concordará que é melhor não. Um comentário mais "livre" pode levar um funcionário a ser processado disciplinarmente. Uma expressão fora da box do politicamente aceitável pode dar maus resultados para o seu autor. No próprio parlamento, quem fala pela sua cabeça e ousa discutir qualquer ponto de vista do chefe do partido ou de outros membros "superiores" pode ter a certeza de que fica tomado de ponta e que dificilmente entrará nas próximas listas eleitorais. O mesmo se aplica às autarquias. Não podemos, nesses casos, pensar pela nossa cabeça. Os chefes pensam por nós.
Mas quanto à liberdade de expressão na Internet, às caricaturas e imitações que são trocadas entre fãs e oposicionistas de um determinado chefe político, essa existe de facto. É a tal válvula de escape da panela de pressão. Que importa que haja numerosíssimos portugueses contra o acordo ortográfico que o Brasil engendrou connosco? Podem manifestar-se na Net, podem fazer reuniões, organizar listas enormes e petições com muitas assinaturas. Quem toma as decisões é quem as dita. Quanto ao povo, pode manifestar-se e ter a sua opinião durante o processo eleitoral. Além disso, a contagem dos votos não é sujeita a aldrabices do tipo salazarento. Todavia, a partir daí os ditames não são os do povo mas sim os das pessoas importantes, bigwigs, que estão por detrás dos sucessivos governos. Daí que, em minha opinião, a expressão "ditadura com liberdades" seja especialmente feliz.
Há dias, quando escrevi o post "O Caso da Líbia", mal sabia eu que os Estados Unidos, na versão "aliados", iriam atacar a Líbia passadas umas horas. Mas tinha que ser assim: havia urgência. As forças rebeldes, que estão com elevada dose de probabilidade a ser armadas e financiadas pelos "aliados", estavam a perder terreno em toda a linha.
No meio de tudo isto, esta situação dá-nos uma tremenda sensação de déjà vu. Ela irá matar muitos mais civis do que as tropas leais ao actual governo alguma vez fariam. No papel, porém, segundo a Resolução aprovada pelo restrito Conselho de Segurança da ONU, a intervenção destina-se a impedir mortes de civis.
Isto é, no seu melhor, a ditadura do capital. E também das armas, que são o bulldozer que abre o caminho ao capital. É uma ditadura sui generis, a que se chama democracia essencialmente por causa do voto colocado nas urnas. Presentemente, "democracia" é um conceito que tem as costas imensamente largas. Consente liberdades como esta de as pessoas se expressarem. Contudo, essa possibilidade de expressão redunda em favor de quem detém o poder. Deixar as pessoas expressar-se é um acto manhosamente inteligente. A faca e o queijo estão noutras mãos que não nas nossas. Curiosamente, no dia em que os "aliados" lançaram, nos primeiros ataques aéreos sobre a Líbia, mísseis sobre pontos nevrálgicos de Tripoli, tal como sucedeu em Bagdad há uns anos, a bolsa de valores passou, em todo o mundo, do vermelho em que se encontrava a verde. Comentários para quê?

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