3/19/2011

O caso da Líbia



Entre nós costuma dizer-se, proverbialmente, que não há duas sem três. Quando assistimos, há algumas semanas, à saída de Ben Ali da Tunísia e de Mubarak do Egipto, pensámos, com a lógica que o ditado nos ensina, que a Líbia, onde estalara uma rebelião armada, iria redundar na saída de Khadafi. Quem visse as capas da revista americana Time ou da Newsweek da semana passada, que acima reproduzo, entenderia imediatamente que estava ali um novo Saddam Hussein: condenado. Sem qualquer chance de escapar.
Porém, quinze dias após essas capas estarem nas bancas, não só Khadafi se mantém no poder, como conseguiu rechaçar grande parte dos guerrilheiros adversários e reconquistar cidades que tinham sido perdidas. Perguntei-me, ingenuamente, se estaríamos apenas em presença de um caso semelhante ao da Tunísia, ou mesmo do Egipto, com jovens a protestar nas ruas e a exigir a queda do governo. O youthquake, como os americanos lhe chamaram. Admito que o caso me intrigou. As capas das citadas revistas, ao apresentarem não um simples chefe de governo mas um verdadeiro facínora – principalmente a capa da mais conservadora Time -, deram-me a entender que os Estados Unidos estavam muito interessados no assunto.
Ora, a Líbia não é um país qualquer. Na realidade, é o quarto maior país de África em termos de superfície territorial. Divide-se tradicionalmente em três partes, com a região de Tripoli, a capital, a ser denominada de Tripolitânia (das "três cidades"). Depois há ainda o Fezão, a sul, e a Cirenaica, na parte oriental. É interessante saber que a Líbia tem presentemente o índice de desenvolvimento humano (IDH) mais elevado de toda a África e possui também um dos PIB per capita mais altos do continente africano - com toda a irrelevância que este último indicador possa representar, devido às diferenças entre ricos e pobres.
Dadas estas condições, que dizem respeito a uma população muito inferior em número à de Portugal (6,5 milhões de pessoas apenas, o que contrasta enormemente com os 85 milhões de habitantes do vizinho Egipto), é normal que se pergunte: porquê a rebelião? O que é que verdadeiramente se passa? E porquê esta reacção por parte dos Estados Unidos?
A história não é simples. Para tentar documentar-me melhor, socorri-me de um artigo recente publicado pelo jornalista italiano Manlio Dinucci e de informações que recolhi noutras fontes. Para começar, há que lembrar um "pormenor" que não referi ainda: a Líbia integra o grupo dos dez mais ricos produtores mundiais de petróleo. Devido a esse facto, a Líbia tem uma balança comercial positiva de 27 mil milhões de dólares/ano. Cerca de 85 por cento das exportações líbias de energia são encaminhadas para a Europa. A Itália colhe a parte de leão com 37 por cento, seguida pela Alemanha, França e China. No quadro das importações feitas pela Líbia, a Itália de Berlusconi ocupa também o primeiro lugar, logo seguida pela China, Turquia e Alemanha.
Não sei se o leitor entretanto reparou que os Estados Unidos não figuram entre os principais países atrás mencionados. Mas a China, sim. Começamos a entender um pouco mais sobre a razão das capas da Time e da Newsweek, que apesar de serem rivais defendem a estratégia dos Estados Unidos.
Existem numerosas companhias petrolíferas estrangeiras na Líbia. De todas, a mais importante é a italiana ENI. No entanto, a britânica BP, a anglo-holandesa Shell, a francesa Total, a norueguesa Statoil, a sino-espanhola Repsol e a russa Gazprom operam também em território líbio.
A Itália é o país que mais se pode ressentir dos acontecimentos na Líbia. É que, para quem não se recorde, entre 1911 e 1951 a Líbia foi uma colónia italiana. O número de italianos a residirem na Líbia chegou a atingir quase vinte por cento da população. Uma vez declarada a independência do país em 1951, oito anos mais tarde foram descobertas importantes reservas petrolíferas no território líbio. Foi em 1969, portanto há mais de 40 anos, que Khadafi, então um oficial do exército com apenas 27 anos, liderou uma revolta contra o líder de então e tomou o comando do do país. Durante este seu longo período de governação, Khadafi tem sido implacável para com os seus adversários políticos, o que naturalmente causou alguma tensão no país. Em 1977, Khadafi tornou o país oficialmente uma república popular árabe e sonhou com a possibilidade de liderar vários países de uma união africana. Embora tenha mantido relações amistosas com a maioria dos países europeus e com a China, o governo líbio tem defendido poderosamente a causa árabe, sendo acusado de financiar movimentos ilegais.
O que terá causado a rebelião? Tudo indica que ela provenha de uma cisão que ocorreu no grupo dominante, que é o grupo do próprio Khadafi. Trata-se portanto de uma guerra civil. Presentemente, é um antigo ministro da justiça de Khadafi que lidera os revoltosos descontentes, os quais têm a sua base na segunda cidade mais importante do país, Bengasi, que constitui um porto vital para a economia líbia. Os revoltosos (Conselho Nacional) adoptaram para si próprios a bandeira líbia que vigorou entre 1951 (independência) e 1969 (entrada de Khadafi para o governo do país). As populações da Cirenaica, região que outrora foi o celeiro da Líbia, estão a empobrecer devido à política do petróleo. Ao contrário do Egipto e da Tunísia, o levantamento líbio foi planeado previamente e não surgiu, portanto, de improviso. Aproveitou, mesmo assim, o timing certo do que se estava a passar no norte de África, em países contíguos. A pergunta, de difícil resposta, mas de fácil suposição, é: quem financia e arma os rebeldes? Estaremos em presença de mais um caso em que os principais países financiadores avançam agora com o dinheiro e armamento e depois cobram tudo com juros em espécie, petróleo e gás? O cui bono? que é sempre formulado nestas questões tem toda a razão de ser.
Em 2008, Khadafi e Berlusconi assinaram um importante tratado de cooperação. De entre as diversas cláusulas do tratado salienta-se o comprometimento por parte da Itália de pagar 5 biliões de dólares como compensação pela sua ocupação colonial do território líbio. Por seu lado, a Líbia comprometeu-se a tomar medidas para combater a imigração ilegal de africanos para Itália - um dos problemas da Europa - e a aumentar os seus investimentos em empresas italianas.
Há dois dias, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou uma resolução por 10 votos a favor, nenhum contra e cinco abstenções. A resolução autoriza o "uso de todos os meios necessários" para proteger a população civil dentro do território líbio. O argumento de defesa da população civil significa o que significa. Não temos todos ainda bem presente o elevadíssimo número de mortos civis que ocorreu no Iraque após a invasão feita por tropas americanas? Como é habitual, os Estados Unidos não querem actuar sozinhos – embora se necessário enviem depois o maior contingente de forças militares. Voltaram a procurar o Conselho de Segurança da ONU, como já fizeram por exemplo no caso do Iraque. O Presidente Obama – a pomba transformou-se em falcão, ou está ele forçado a demonstrar que o seu nome nada tem a ver com as suas palavras em defesa de muçulmanos e árabes? - declarou que os EUA estão a preparar um conjunto de opções para responder à crise na Líbia, incluindo "acções que possamos empreender por nós próprios e aquelas que possamos coordenar com os nossos aliados através de instituições multilaterais". O Reino Unido alinhou, como sempre com Blair ou sem Blair, com os EUA. Os franceses, sobre cujo presidente, Sarkozy, recai a suspeita de ter tido a sua campanha presidencial co-financiada pelos líbios, alinharam igualmente, como seria previsível.
As razões americanas parecem evidentes: se Khadafi for derrubado, os EUA, que até agora mantêm poucos interesses no território – muito menos do que os chineses, por exemplo - tentarão depois destruir a actual estrutura das relações económicas estrangeiras com a Líbia e abrir caminho para multinacionais que possuam a sua base nos EUA. Com isso, suplantariam a China localmente e poderiam controlar, com substanciais lucros, algumas importantes fontes de energia que são vitais para a Europa.
As duas potências mais importantes do mundo neste momento – EUA e China – lutam com os trunfos que possuem. Os chineses penetraram no continente africano, v.g. Angola e Líbia, construindo fundamentalmente infraestruturas, como estradas, caminhos-de-ferro e aeroportos, que empregam muito daquilo que a China possui em maior abundância e consequente menor preço: mão-de-obra. Recebem muito do correspondente pagamento em géneros, nomeadamente em petróleo. Por seu lado, os EUA, impossibilitados de utilizarem os mesmos processos por razões óbvias, lançam mão daquilo em que são hegemónicos: poderio militar.
Umas linhas finais só para lembrar algo que parece agora mais esquecido mas que convém não esquecer. No tempo de George W. Bush como presidente, quando os americanos, numa tentativa de influência da opinião pública, definiram determinados países – Irão, Iraque e Líbia, por exemplo – como o eixo do mal, eles não estavam a dizer senão que esses países não merecem ter nada de bom enquanto continuarem como tal (rebeldes perante os americanos). Por uma coincidência diabólica, os países do dito eixo do mal são grandes produtores das fontes energéticas de que o capitalismo precisa de forma vital para se alimentar - petróleo e gás natural – e que produzem enormes lucros. Consequentemente, esses países não merecem os imensos recursos que Deus colocou nos territórios que eles ocupam. Ao combater essa ocupação, que é de grande injustiça terrena e fonte do mal, toda e qualquer guerra se auto-justifica.
Vejamos o que o desenrolar da situação nos traz nos próximos dias.

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