3/04/2011

A hora da verdade (cont.)

Tanto a expressão-aviso "não há almoços grátis" como aquilo que se costuma dizer em português-menos-traduzido-do-inglês - "ninguém dá nada a ninguém" - são velhos princípios de prudente desconfiança. Um outro princípio também muito comum diz-nos, a respeito de aplicações financeiras et al., que "não se deve colocar todos os ovos no mesmo cesto".
A publicidade (comercial, de empresas), as relações públicas / comunicação (do sector privado e do estatal) e a propaganda (de Estado) influenciam poderosamente as linhas orientadoras da sociedade, como todos sabemos. A era do consumismo tem muito da sua origem nestes três vectores.
A "sociedade de consumo-que-nos-consome" (digo eu) foi vista pela maioria das pessoas como uma linha de progresso contínuo, de bem-estar ascendente, sempre caminhando para um mundo melhor. A democracia, com governos legitimados pelo voto do povo, propôs-se melhorar a condição desse mesmo povo, ao mesmo tempo que reforçava o poder dos governantes. Uma aritmética simples mostra-nos, porém, que quem gasta mais do que aquilo que tem, mais cedo ou mais tarde irá ter de pagar esse excesso. Isto é do senso comum. Mas senso comum é o que parece que a química do poder destrói nalguns dos governantes. (Permito-me recordar aqui, como excepção, o Ministro das Finanças de 2005, Campos e Cunha, sobre cujo caso escrevi na altura para o Público, que ao contestar os gastos envolvidos na mudança do aeroporto e na construção do TGV, foi posto na rua.)
A publicidade comercial atraiu um número claramente excessivo de pessoas para adquirir casas, cujo custo, inflacionado, iria alimentar os bancos credores dos empréstimos concedidos aos compradores. Cálculos mal feitos, ou abandono do princípio da prudência? A banca contraiu empréstimos no estrangeiro a fim de poder satisfazer a enorme vaga de pedidos de dinheiro para adquirir habitação. E automóvel.
O Estado contraiu empréstimos para atender a um sistema de pensões de reforma da Segurança Social nitidamente inflacionado nos seus escalões mais elevados: um luxo que não estava ao seu alcance. O mesmo Estado vendeu direitos nas pescas para obter contrapartidas financeiras. Subiu-lhe à cabeça o poder e construiu vários estádios de raiz para o Euro 2004, que hoje são quebra-cabeças financeiros no Algarve, em Aveiro, Coimbra e Leiria. O luxo do TGV, com tecnologia importada, causou imensa disputa. Os submarinos são apenas mais uma peça da grande verdade que o embaixador americano em Lisboa comunicou para Washington (Wikileaks): o Estado português gosta de comprar equipamento dispendioso.
A falta de controlo da banca permitiu desmandos que agora todos estamos a pagar.
E não me venham dizer, como é costume ouvir-se, que "somos todos igualmente culpados". Isso é uma enorme patranha, que apenas serve para desculpabilizar aqueles que são os mais gravosamente responsáveis. Tal como se costuma dizer que "quem todos elogia não elogia ninguém", assim também quem todos culpabiliza a todos acaba por desculpar.
E se recordo aqui a importância e a justiça de não culpabilizar todos por igual é porque houve também muito boa gente que tomou precauções e não foi na onda consumista. Não gastou mais do que podia, não entrou na aventura de ficar a dever dinheiro à banca, protestou contra os "TGVícios", fez alguma poupança, e isto tudo com base na tal aritmética simples de que não se pode gastar mais do que aquilo que se tem. Afinal, uma das poucas excepções admissíveis é quando se investe em material produtivo, do qual se espera um retorno que permita uma rápida amortização do empréstimo, criando apenas temporariamente um défice virtuoso.
Mas tem sido tudo mal? Não, de maneira nenhuma. Pelo que tenho podido constatar, por exemplo a EXPO’98 ilustrou de maneira brilhante a arte de bem-fazer, conseguindo ainda hoje que o espaço lisboeta onde a Exposição Mundial esteve instalada há 13 anos seja muito agradável, com espaços arejados, limpos e bem cuidados, mantendo um Oceanário com numerosos visitantes e ostentando edifícios arquitectonicamente muito interessantes. E, é bom não esquecê-lo, aquela zona foi durante imensos anos uma das menos atraentes de Lisboa, degradante, poluída e lamacenta. Claro que nem tudo é mau!

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