3/29/2011

O gastador optimista



A esmagadora maioria dos políticos executivos sente dentro de si uma necessidade de realizar obras que fiquem a marcar o seu período de governação. Há aqueles que são comparativamente comedidos e os outros que esbanjam verbas muito acima do limite para deixarem para a posteridade obras de grande vulto. Grosso modo, os gastadores compulsivos mostram muito mais desejo de apresentar "fazedoria" do que propriamente denotar sabedoria. Cada um tem o seu estilo.
Recordo-me bem, até porque o escrevi neste blogue quando Sócrates iniciou o seu primeiro mandato em 2005, que a sua primeira grande prova de fogo seria a maneira como ele iria tratar o caso Alberto João Jardim. Se conseguisse refrear o governante madeirense nos seus anseios despesistas, teríamos primeiro-ministro que se visse. Caso contrário, seria apenas mais um da mesma cepa. Creio que não deixei de ter razão neste ponto. Depois de uma série de reformas altamente prometedoras que davam toda a indicação de que finalmente aparecia alguém para pôr o país nos eixos, foi o próprio Sócrates que enfileirou pelo despesismo, com projectos megalómanos como o do novo aeroporto de Lisboa e do TGV, além de, entre várias outras medidas, se ter decidido mais tarde por um aumento de 2,9 por cento a toda a função pública, em vésperas de eleições. E, como o exemplo é sempre mais importante do que as palavras, ele deixou de ter quaisquer possibilidades de conter o Presidente Jardim.
Hoje estamos em 2011. Houve muitos políticos eleitos pelo país fora que fizeram obras de relevo. Na maioria dos casos – que não na totalidade – endividaram os municípios ou as regiões que lideravam. Apenas dois exemplos: tanto Isaltino de Morais, que se mantém à frente do seu concelho de Oeiras, como Alberto João Jardim, que é há décadas o líder da ilha da Madeira, se mantêm nos seus postos. Apesar de terem excedido os plafonds financeiros de que dispunham, realizaram várias obras louváveis. São gastadores.
Porém, entre eles e o primeiro-ministro demissionário José Sócrates existe uma diferença de relevo. Esta diferença reside no facto de que, descontando alguma eventual subida nos preços de receitas camarárias ou regionais, como os da água, electricidade ou IMI, nem Isaltino nem Jardim são vistos como responsáveis pelo aumento dos impostos a nível nacional, embora contribuam para isso. Todo o ónus acaba por recair sobre o primeiro-ministro e sobre o ministro das finanças, que não controlaram devidamente o despesismo. As escolas novas que são inauguradas, os milhares de computadores Magalhães que foram distribuídos a alunos do ensino básico, os novos troços de estrada abertos, as SCUTs, etc. podem ser alvo de grande propaganda, mas depois vem o reverso da medalha. Quando os contribuintes à escala nacional vêem aumentado o IVA e notam que os seus salários ou as suas pensões de reforma sofreram uma diminuição ou um congelamento, além de constatarem que diversas medidas de austeridade entretanto decretadas diminuem a sua qualidade económica, é absolutamente natural que não perdoem ao chefe do executivo. Mais: sentem-se ofendidos quando reparam que, apesar da nítida diminuição do poder de compra da esmagadora maioria dos cidadãos, as instituições bancárias, protegidas fiscalmente pelo Estado ou indevidamente nacionalizadas, lograram obter volumosos lucros ou carecem de elevados subsídios estatais.
O povo sente agora, mais do que nunca, que o optimismo do primeiro-ministro, que incessantemente alardeou o seu caminho de vitória em vitória que acabou por conduzir à sua derrota final, não tinha razão de ser. E, consequentemente, não lhe dá o seu perdão. A população ou se queixa ou teme vir a ter que se queixar no futuro que se aproxima com cores de cinza mais ou menos escura segundo a perspectiva de cada um. Nervosa, a sociedade torna-se um poço de conflitos e, com a lógica que caracteriza os humanos, arranja um culpado sobre o qual lança todos os seus dardos: é a história do bode expiatório. Sócrates poderá naturalmente estar a pagar por mais coisas do que as que lhe são efectivamente atribuíveis, mas isso, como Guterres gosta de dizer, "é a vida". A isto acresce o facto de o primeiro-ministro se ter envolvido em casos no mínimo dúbios, que o deixaram suspeito aos olhos de muitos e colocaram mal a justiça portuguesa.
Ora, este é um país no qual ainda há poucos anos um antigo ditador foi eleito num concurso televisivo como a figura mais proeminente da história de Portugal. Suplantou todos os outros concorrentes e, note-se, havia figuras de muito peso histórico. Descontando o facto de um concurso de televisão não possuir uma base científica – mas mesmo assim conter um iniludível impacto quando é efectuado pela estação televisiva estatal - , como foi possível que Oliveira Salazar tivesse sido preferido aos demais? Só por descontentamento com a situação do pós-25 de Abril, por um lado, e por um pacote de razões diversas, por outro. Que razões podem ter sido essas? Não foi certamente pela criação da PIDE, nem pelo clima de medo que se instalou no país, nem por Salazar ter decidido lutar pela manutenção dos territórios ultramarinos. Foi basicamente, suponho, por ter conseguido manter Portugal fora da Segunda Grande Guerra, por ter logrado habilmente manter o povo entretido com gestas patrióticas e com a exaltação da nação em vários domínios e, crucialmente, por ter deixado o país com reservas substanciais de ouro, que lhe garantiam uma moeda relativamente estável após períodos muito conturbados. A disciplina férrea, ditatorial, de Salazar relativamente às finanças nacionais, sem que o próprio fosse acusado de acumular riqueza,foi um factor que agradou a muitos portugueses. Foi em certa medida o oposto do que agora se verifica. Os ecos das contas das duas primeiras décadas da República portuguesa ressoam neste momento e, paradoxalmente do ponto de vista político, elevam a figura já desaparecida e mitificada de Salazar ao mesmo tempo que condenam severamente todos aqueles líderes que embarcaram na febre do despesismo sem pensarem na conta que um dia lhes vai ser apresentada.
Que o último da longa série de dirigentes executivos da política nacional, José Sócrates, se mantenha com um sorriso nos lábios e optimista representa para muitos portugueses um desaforo. Já agora: que o seu partido o tenha reeleito com mais de 90 por cento dos votos parece um suicídio. Pode ser um personagem atraente do ponto de vista físico, pode ser eloquente no seu verbo, possuir características de líder e ser persuasivo nas suas palavras, mas os factos são os factos e, contra eles, poucos argumentos podem ser apresentados. Res non verba é um velho princípio romano. A realidade financeira que se nos depara, sem ser obviamente toda da responsabilidade do actual governo e antes constituir uma longa jornada de descontrolo financeiro a nível nacional que indubitavelmente inclui o actual Presidente da República durante o seu consulado de dez anos como primeiro-ministro, é uma verdade indesmentível. Mas será também o resultado da crise que avassala tantos outros países? Claro que sim. É injusto fazer o ainda primeiro-ministro expiar por todos os desmandos em termos de finanças públicas, corrupção, justiça não aplicada, negócios público-privados lesivos para o Estado e tantos outros factos graves que têm ocorrido nas últimas décadas. Mas José Sócrates, por tudo o que acima foi dito e não obstante o que também foi abonado a seu favor, comete, em meu entender, um sério erro ao candidatar-se de novo nas próximas eleições. Favorece os seus adversários, prejudica o seu partido, faz aumentar a abstenção e não resolve nada para bem do país que nele já não confia.

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