Como todos sabemos, as mudanças que têm ocorrido na sociedade nas últimas décadas não são de pequena monta. Este blogue tem-se debruçado sobre alguns desses aspectos. Nessa mesma linha, entremos hoje um pouco no mundo do futebol.
Em Inglaterra, no jogo que se disputou no passado sábado entre o Arsenal e o Blackburn Rovers, o Arsenal entrou em campo com onze titulares estrangeiros. Não havia um único inglês na equipa! Recordemos que o futebol nasceu no Reino Unido, onde aliás continua a desfrutar de grande popularidade.
Também há poucos dias, no jogo entre o Manchester United e o Benfica disputado no Estádio da Luz, Lisboa, Portugal, foi só quando, durante a segunda parte, Nani entrou em campo para substituir um colega seu que tivemos no relvado o único português entre os 22 jogadores. Já agora, ele jogava pela equipa estrangeira.
Uma vez que falei do Benfica, permito-me recordar que um dos grandes orgulhos da equipa benfiquista foi durante muitos anos o facto de não utilizar qualquer jogador estrangeiro. A equipa englobava então muitos futebolistas do Ultramar português, dos quais Eusébio e Coluna foram possivelmente os expoentes máximos, mas constituía um ponto de honra para o clube ter apenas jogadores portugueses. Foi apenas na época de 1979/80, portanto já depois da revolução de Abril, que o primeiro estrangeiro ingressou no futebol do Benfica. Era brasileiro e chamava-se Jorge Gomes. Quebrara-se o tabu.
Anteriormente, não podemos esquecer que quando Eusébio foi aliciado por equipas estrangeiras devido às suas excelentes exibições, o Estado português não consentiu que ele fosse vendido. Eusébio era um símbolo demasiado importante do Ultramar português, então em plena guerra, para que isso pudesse suceder.
Hoje, com o lema do mundo laboral a repetir constantemente que não existem empregos para toda a vida, aceita-se e recomenda-se a mobilidade. E essa mobilidade, ajudada por legislação que lhe é francamente favorável, traduz-se por exemplo no facto de a equipa do campeão nacional – o FC Porto – jogar quase sempre com um número de estrangeiros que é muito superior à dos jogadores portugueses. O mesmo acontece nas equipas mais endinheiradas, como a do Sporting.
A questão da mobilidade faz com que existam hoje jogadores que envergaram durante a sua vida desportiva camisolas tão diferentes como as do Porto, Sporting, Benfica e Belenenses, além de terem jogado por outras equipa. A juntar-se à mobilidade vem a competitividade, que é hoje muito superior à de antigamente. Qualquer treinador que se preze diz hoje, com grande sentido de autoridade, que ninguém na equipa tem lugar cativo. Jogador que não jogue bem, apesar de ser normalmente um dos mais bem pagos, poderá não alinhar no encontro seguinte. Não era costume depararmo-nos com este tipo de competitividade na sociedade portuguesa de antigamente.
Aquilo a que se costuma chamar “amor à camisola” continua parcialmente a existir, mas muitas vezes é mais frase que sai da boca para fora aos microfones de qualquer televisão ou rádio do que um forte sentimento. O mesmo jogador que depois de marcar um golo coloca tipicamente a sua mão sobre o emblema que ostenta na camisola para mostrar à assistência o seu clubismo não recusará na semana seguinte uma oferta tentadora que lhe façam de um clube grande estrangeiro. O dinheiro conta muito mais do que todo o resto.
Como seria previsível, não é só para o jogador que essa mais-valia conta, mas também para o clube. Na realidade, os clubes mais abastados transformaram-se em iniludíveis entrepostos comerciais, que negoceiam os seus jogadores a troco de quantias fabulosas. Em flagrante contraste com o que sucedia no passado – e não pretendo fazer aqui qualquer juizo de valor relativamente à superioridade de um modelo sobre o outro - o jogador possui hoje um empresário que trata dos detalhes dos contratos, embolsando naturalmente para si uma determinada percentagem da verba contratada na venda.
Como todos sabemos, há jogadores com ganhos astronómicos. Aos seus ordenados muito elevados, eles juntam significativas verbas de publicidade. Por seu lado, o departamento de marketing dos clubes mais conhecidos a nível mundial aufere vultoso lucros com a venda de camisolas que ostentam o número e o nome dos seus jogadores mais famosos. A máquina está muito bem montada e oleada. Funciona na perfeição.
É aqui que recordo, sem nostalgia mas achando uma certa graça ao contraste, uma cena dos meus tempos de miúdo. Num dia de semana, vim a Lisboa de carro com o meu pai. Tomámos a estrada normal, que passava por Torres Vedras e Malveira. Logo depois da Malveira, na Venda do Pinheiro, vimos três homens que pediam boleia na beira da estrada. Ora, nessa altura era precisamente na Venda do Pinheiro que ficava situado o centro de estágio da selecção nacional portuguesa. Os três homens que nos pediam boleia eram figuras bem conhecidas. Lembro-me apenas do nome de dois - Travassos e Canário -, ambos jogadores do Sporting. Para meu grande contentamento e orgulho, lá vieram no carro connosco, claro. Onde é que algo como isto seria possível hoje em dia?! E, a propósito do que se viria a passar mais tarde com Eusébio, onde é que hoje o Estado ousaria dar ordens a um jogador ou a um clube, tratando-o como se o que estava em jogo fosse uma golden share?
É interessante analisar mesmo que seja desta forma ligeira a evolução das coisas. Os conceitos sociológicos de globalização e de mobilidade entraram profundamente no mundo do futebol. Sem deixar de existir, o conceito de pátria esbateu-se muito, assim como o de clube-do-coração.
Por outro lado, a chegada de jogadores estrangeiros para os vários clubes tapa necessariamente lugares que dantes seriam em princípio ocupados por jogadores nacionais. Destes, os melhores são contratados para ir para o estrangeiro; outros não arranjam emprego. Afinal, o panorama não é muito diferente do que ocorre no mercado de trabalho, no qual produtos fabricados no estrangeiro acabam por roubar emprego aos nacionais dos vários países. Hoje em dia, jogador que se mantenha durante toda a vida no seu “clube de sempre” é invariavelmente notícia, especialmente se se tratar de um clube grande. Aquilo que antigamente era a regra passou hoje a ser a excepção.
No futuro, tanto pode suceder que esta tendência se acentue, como pode acontecer que ela se esbata através da imposição de regras mais apertadas e protectoras dos nacionais. Por vezes, como a história nos ensina, são as guerras a ditar essas leis. Avisado é quem não tenta prever o futuro. Analisar a evolução das coisas é por si já suficientemente interessante. A única certeza que podemos ter é a de que nada se manterá igual.
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