9/11/2011

À toa

Não há nada como a experiência vivida para aprendermos bem, e para sempre, o significado de determinadas coisas. Há muitos anos já, um antigo colega de instrução primária que voltei a encontrar após largo tempo sem nos vermos, contou-me que andava na pesca. Tinha um pequeno barco em Peniche, cujo motor tinha naquela semana estado a ser reparado, mas agora já estava pronto. Aliás, no dia seguinte àquele em que nos encontrámos, ele iria levantar uns covos que deixara junto às Berlengas para apanhar lagosta. Ante a minha curiosidade, convidou-me a vir com ele e mais os três homens que constituíam a tripulação. Ficou assente que eu iria e que deveria estar num determinado café do porto por volta das cinco da manhã.
Recordo-me que às quatro já estava a pé, pronto para ir no meu pequeno Volkswagen até Peniche. O nevoeiro, cerradíssimo, obrigou-me a fazer a viagem de forma lenta e ultra-cautelosa. Chegado ao porto, lá encontrei o meu amigo. “Não sei se vamos conseguir sair com este nevoeiro”, disse-me ele. “Os que estão aqui dos outros barcos já me disseram que assim não se metem ao mar.” Cerca das seis e um quarto, porém, o meu amigo António começou a não aguentar o nervoso miudinho que sentia, “Isto levanta! Conheço o caminho de olhos fechados.”
O nosso barco foi o único a largar do porto àquela hora. Eu ia totalmente às cegas. Quando passámos o Cabo Carvoeiro, nem o avistei. Mas os homens sabiam que o cabo tinha ficado para trás. Decorrida menos de uma hora de navegação num mar que estava calmo, sem vento – se houvesse vento, o nevoeiro dissipar-se-ia pelo menos parcialmente – eis que todos ouvimos um baque forte da embarcação. “Batemos!”, exclamou um dos homens. Ninguém sabia concretamente onde estávamos. Teríamos batido num dos rochedos ao largo da Berlenga? Uma rápida inspecção a ver se o barco estava a meter água teve felizmente resposta negativa. Mas alguma coisa tinha sucedido: o veio do motor não estava bem alinhado e tinha-se partido. A reparação anterior não tinha sido perfeita.
Para abreviar a narração, direi apenas que a angústia dos pescadores era grande, que estivemos quase a ser abalroados por um navio italiano que nos cortaria ao meio se a sua rota tivesse passado uns poucos metros ao lado e que o peixe que os homens tinham trazido para fazer uma caldeirada a bordo acabou por ser cozinhado com água salgada para poupar a pouca água doce que tínhamos.
O nevoeiro só se levantou pelas três horas da tarde! Entretanto, depois de termos lançado para o fundo do mar uma pesada poita a servir de fateixa descobrimos que já tínhamos ultrapassado a Berlenga. Estávamos ao largo da parte ocidental da ilha. O barco não tinha qualquer rádio emissor e muito menos radar. Contávamos apenas com um sonar, que, quando consultado, informou que nos sobravam apenas três braças da corda que segurava a poita.
Já com o tempo claro e o sol finalmente a brilhar, houve um barco de pesca de Peniche que respondeu aos sinais que o meu amigo e os seus homens enviaram a pedir socorro. E que sinais eram esses? Uma saca de serapilheira que eles agitavam freneticamente e um chifre que emitia um som à boa maneira viking!
Depois de confirmar que nos tinha visto, a outra embarcação continuou mais algum tempo na sua faina marítima, até que se aproximou de nós e nos lançou um cabo grosso e forte. Foi aí que aprendi que aquela corda se chamava toa. O cabo foi amarrado ao nosso barco e, a uma distância conveniente, lá seguimos no regresso ao porto de Peniche rebocados pelo barco amigo. Como seria fácil de prever, dada a forma como estávamos a ser rebocados, o nosso barco dava enormes guinadas para a direita e para a esquerda, o que constitui sempre um bom teste para quem quer provar que não enjoa. Foi aí que entendi distintamente o significado de andar à toa!

O problema deste post é que o meu objectivo principal é falar de outro tipo de reboque e entretanto já esgotei a paciência dos eventuais leitores. Embalei-me na recordação e andei verdadeiramente à deriva. As minhas desculpas.
No final daquela aventura marítima que afortunadamente acabou bem, formulei para mim próprio duas perguntas: 1. E se não tivéssemos encontrado um barco que nos trouxesse a reboque? 2. E se o barco de reboque avariasse também?
Podem parecer perguntas feitas pelo advogado-chefe do diabo, mas não são. Pelo contrário, creio que são perfeitamente plausíveis. Entremos então no tema principal: a União Europeia e a sua actual situação. Só aparentemente é que o assunto não terá quaisquer pontos de contacto com a experiência do barco atrás descrita.
Foi ainda há relativamente poucas décadas que a União Europeia nasceu. Fosse como Comunidade Económica Europeia, à qual Portugal aderiu depois de ter estado na EFTA, fosse com o seu nome actual, a União nasceu com o objectivo de aumentar a prosperidade das nações que a constituem. Previsivelmente, umas desenvolver-se-iam mais, outras menos, mas todas acabariam por encontrar uma linha ascendente que tornaria gradualmente mais ricas as sucessivas gerações do Ocidente.
A criação do euro, que hoje é vista de forma ambivalente como um acto inovador mas também temerário, corroborou em 1999 aquela visão de crescimento permanente. Aos poucos, porém, a realidade impôs-se com toda a sua crueza. Não digam aos gregos que eles têm progredido, não falem em taxas de desemprego nem aos espanhóis nem aos portugueses, esqueçam-se os sonhos de prosperidade. Há, sem margem para dúvidas, uma séria avaria neste barco. O baque foi sentido com maior intensidade em 2008, mas daí para cá a situação não tem melhorado. Pelo contrário. Agitam-se em Itália bandeiras de protesto, enquanto manifestações em Espanha clamam por justiça social, na Irlanda se maldiz a prosperidade baseada no imobiliário e na dívida tal como em Portugal. Na Grécia, os cidadãos mais aflitos desfraldam e agitam com raiva a sua saca de serapilheira. Todos pedem auxílio.
Como seria natural, com o decorrer dos anos algumas nações mais desenvolvidas da União, como a Alemanha, a França e a Holanda, ganharam mais com o negócio do euro do que aquelas que se quiseram pôr demasiado depressa em bicos de pés e, para isso, não hesitaram em pedir dinheiro emprestado aos mais poderosos. É uma história consabida, que os números não deixam desmentir.
Os barcos cujos motores se partiram pedem auxílio aos que lhes podem lançar uma toa para o correspondente reboque. Só que estes serviços de reboque não são grátis e, pelo contrário, tornam-se bastante onerosos para quem pede auxílio.
E se agora estivessem todos, mesmo os mais ricos, a analisar a hipótese de terminar com o euro? Haveria custos para todos, mas no oceano europeu haveria uns tantos países que ficariam mais à deriva do que outros. E terminar com o euro porquê? Só porque têm surgido problemas de sobreendividamento, tal como costumava suceder com as colónias, que estavam constantemente endividadas perante a nação que as explorava? Não, esta razão existe, é importante, mas não é a única. Presentemente, outro grande motivo de preocupação reside algures, fora da Europa.
Na realidade, a prosperidade da União Europeia sempre foi vista como algo baseado no comércio. As trocas comerciais entre os países da União constituía um factor essencial. Porém, se elas per se não resultassem satisfatoriamente, qual seria o plano B? Ora, o plano B consistia nas exportações europeias para os países mais ricos, concretamente para os Estados Unidos. É aqui que se coloca a questão: e se esse rebocador que deveria vir em socorro da União Europeia tivesse o seu motor avariado? Como se iria resolver a questão?
Esta é a segunda questão que coloquei relativamente à minha historieta com o barquito de pesca e aqui reitero com a U.E. Quando se sabe que, a juntar aos seus tremendos gastos militares e ao consumo privado excessivo, os Estados Unidos apresentam taxas de desemprego que rondam os 10 por cento e taxas de crescimento que não excedem dois pontos percentuais, como podem eles ajudar a Europa? Precisam é de alguém que os ajude. É uma situação que faz com que os europeus entrem em pânico, com os seus valores bolsistas a oscilarem mais do que qualquer ponte preparada para resistir a ventos fortíssimos.
Quando o barco rebocador líder europeu – a Alemanha – se mostra cada vez mais indisponível para ajudar os mais fracos, e o outro barco externo não tem sequer combustível para se fazer ao mar e dar a sua ajuda, quando conseguirá a aflita Europa regressar ao porto? Quanto tempo mais aguentará na sua viagem à toa neste mar encapelado?

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