9/02/2011

Job lag

O neurologista não encontrou nada de especial no paciente. E, contudo, este voltou a falar de uma perturbação difícil de definir, que experimentava pela primeira vez. Quanto a mim, o homem tem toda a razão: a saída de um emprego por razões de reforma (em casos de pré-reforma, ainda mais) provoca um misto de sensações na pessoa que esteve durante muitos anos a cumprir um emprego regular. Algumas dessas sensações são óptimas e gratificantes para a mente. Poder dormir mais algum tempo, não ter que aturar ordens absurdas e ver-se obrigado a lidar com superiores que nem sempre são humanos são coisas naturalmente bem recebidas. Possuir o tempo todo para nós dá-nos uma primeira sensação de maravilha da liberdade. Pouco a pouco apercebemo-nos de que temos que aprender a gerir essa aparente imensidão de tempo sem as grandes divisórias que durante anos e anos ele teve. Então passamos a criá-las nós próprios, sendo que a primeira tentativa nem sempre resulta. Dependendo das situações e das circunstâncias, pouco a pouco vamo-nos no entanto estabelecendo e, se notarmos bem, encaixamo-nos em horários que passam a ser os nossos, não necessariamente em paralelo com aqueles que tivemos ao longo da vida embora tenham pontos de contacto.
Possivelmente, o interessante de tudo é, afinal, um conjunto de platitudes. Todos temos a nossa vida, que é, naturalmente, feita de passado e de presente. O futuro existe também, mas é um futuro que se vai estreitando e afunilando à medida que avançamos nos anos. Aos 50 e tal não há razão de tomo para que ele seja visto já afunilado. Pelo contrário. Um escritor que foi galardoado com o Nobel começou a escrever os seus melhores livros após os 60 anos. Importante é o facto de que somos seres individuais. A sombra que nos acompanha em ambientes onde haja luz é a nossa e não a de qualquer outra pessoa. Já fomos mais colectivos, deve dizer-se, quando estivemos activamente a trabalhar para a comunidade. Mas o Estado continua a ver-nos como um número ínfimo que, juntamente com milhares ou milhões de outros ínfimos, faz um todo. Esse todo é sobretudo relevante sob o ponto de vista dos impostos e da Segurança Social. Seja como for, a nossa individualidade comunga em inúmeros casos com a comunidade, seja em espectáculos, seja através do visionamento de televisão ou leitura da imprensa, ou ainda de locais comuns a todos, como centros comerciais ou praias. Mas, e isto parece-me particularmente significativo, falamos cada vez mais connosco próprios. A “verdade” vem ter connosco mais vezes. Sentimos mais a passagem do tempo que, como se fosse brisa ou vento, ora nos acaricia, ora nos fustiga.
A nossa posição no círculo da família muda gradualmente. Deixamos de ser o centro dos centros para, tal como sucede com a transformação das cidades, nos convertermos numa praça que já foi central mas que as alterações e desvios de trânsito levaram a que passasse a ser secundária. Quando sentimos mais a acumulação dos anos, não é impossível que comecemos a ver em nós próprios um postal da antiga cidade. É assim que os outros nos vêem também. Lutamos para que não seja assim, mas há leis que são mais fortes do que nós. Inelutáveis. Ora, essas leis abrangem-nos, como já abarcaram tantos outros seres humanos. Quando nos olhamos ao espelho, conseguimos por vezes alhearmo-nos do passado e vemo-nos apenas com olhos do presente. Esse espelho começa na maioria dos casos a ser para nós mais um inimigo do que um amigo. É ele que nos diz, com justificada razão, que devemos “assumir”. Assumir é porventura bom, mas significa também, em grande medida, capitular. E isso tem claramente mais desvantagens do que vantagens. Lutar é preciso.
Tudo faz parte da conversa connosco mesmos. Como seria de esperar, tal como na nossa vida de emprego activo tivemos altos e baixos, agora temos igualmente baixos e altos. São é mais frequentes. Porquê? Porque temos a menos a distracção produtiva do trabalho e do emprego, com colegas à volta, chalaças aqui e ali, algo como cotoveladas no parceiro que sabe bem dar durante o espectáculo e de que se sente a falta quando comprámos só um bilhete para nós. Estamos mais sozinhos.
A sociedade começa a partir de certa altura a tratar-nos de forma diferente. Se quem não chegou ainda aos 60 não pode pedir um passe de terceira idade (onde a primeira idade e a segunda começam ninguém sabe com rigor) e ainda está apto a responder a inquéritos de telemarketing que excluem automaticamente os que têm mais de 64, quem ultrapassa essa barreira nota a maneira diferente, mais atenciosa ou mais impaciente, com que é tratado. Seja como for, entrou no grupo dos avós e saiu do dos pais. Os que são pais notam isso. Profundamente. Como em tudo, com vantagens e inconvenientes.
Isto daria pano para mangas. Mangas tão longas como longos eram os braços do rei Manuel I deste país. Será melhor parar. É o que faço.

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