6/19/2006

Três itens linguísticos em análise

O que brevemente me proponho descrever tem muito pouco de científico. Sou o primeiro a admiti-lo. Contudo, partindo do princípio de que uma língua não é pertença de ninguém senão da comunidade dos seus falantes e passa muito para além da mera etimologia, gostaria de falar sobre duas palavras que me parecem menos certas - embora, evidentemente, estejam correctas na medida em que são aprovadas pela comunidade falante - e sobre um caso referente a adjectivos.
Uma palavra portuguesa que me parece errónea, pela natureza da única vogal que possui, é "luz". Sei bem que em latim é luce-, que em castelhano é luz, que em francês é lumière, o que já está melhor, e em alemão Licht. Quando Goethe diz, ao morrer, Mehr Licht!, ele está a clamar por "mais luz", o que se entende na óptica da razão. Falta, porém, à palavra a sonoridade do sol, que é a expressão mais natural da luz. É aqui que acho que "luz" falha. O -u- que fica encaixado entre o l- e o -z representa tudo menos claridade. O adjectivo "claro", com o seu -a- aberto, tem claridade dentro de si, mas "luz" não tem. Comparem-se outras palavras como escuro, obscuro, soturno, nocturno, túmulo, lúgubre, fúnebre, todas com peso fonético no -u-. São palavras de fundo e não de topo, de escuro e não de claro.
É em inglês que encontro uma reprodução melhor. Light, na sua pronúncia moderna, porque antigamente lembrava o alemão Licht, abre-nos os ouvidos para algo não escuro, acorda-nos os sentidos para luminosidade, palavra que, tal como o francês lumière, sai do -u- para a claridade.
Entretanto, não se infira daqui que estarei a dizer que o inglês supera o português. Veja-se a palavra "sol", que em inglês é um pardacento sun e na nossa língua resplandece com o seu -o- muito aberto. Já algum português imaginou dizer "sol" com um -ô- fechado, como se o sol estivesse sempre tapado pelas nuvens?!
Uma segunda palavra que me levanta objecções é "solidariedade". Algo particularmente bonito como atitude, é léxico que estranho pela forma como começa. Dir-me-ão que a palavra tem a ver com algo sólido, como amizade, amor, afecto. Deve ser. Mas o que sinto faltar em "solidariedade" é um pequeno prefixo no início. A solidariedade nunca é um acto solitário, para connosco próprios. Mas, como vocábulo, parece um pouco isso. De facto, um grande número de palavras que expressivamente envolvem outros, como compaixão, consolação, comunicação, combinação, compatibilidade, concordância, concorrência, condescendência, possuem o prefixo com- (por vezes grafado con-). Vão dizer-me que "consolidariedade" seria vocábulo demasiado longo. E difícil de dizer. Admito. Mas mais expressivo, também. Como está, fica demasiado perto de "solitariedade", que nada tem a ver com uma acção que envolve outros, o que constitui o cerne da solidariedade.
Um terceiro considerando, discutível como os dois anteriores, remete-nos para algo diferente, mas que tem igualmente a ver com sonoridade linguística. Tomemos três adjectivos: gracioso, delicioso e manhoso. Como é normal na língua portuguesa, estes adjectivos formam o seu feminino em -a, transformando-se, respectivamente, em graciosa, deliciosa e manhosa. Ora, no feminino, a sonoridade destes adjectivos muda radicalmente: o -o- que é fechado no masculino, pronunciado -ô- (devido à influência do -o final que se pronuncia -u, o que faz fechar o som) transforma-se em -ó- aberto. Daqui deriva, em meu entender, um halo bem diferente para o adjectivo. "Delicioso" assume uma posição neutra entre masculino e feminino. Entre "uma sopa deliciosa" e "um pudim delicioso", venha um santo amante da boa mesa e escolha. Já "graciosa", com o seu -ó- aberto, soa de forma muito mais bonita e expressiva no feminino do que "gracioso". Pelo contrário, em "manhoso", devido à conotação da palavra, o -ô- fechado do masculino funciona muito melhor. É ele que contém a manha toda. Et pourtant...

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