7/09/2007

Fronteiras-cicatriz

O facto de Portugal ser o país que, até ao final do corrente ano, acolhe a presidência da União Europeia leva-me naturalmente a desejar que tudo corra bem adentro das nossas portas. Aliás, desejaria sempre o mesmo relativamente a qualquer outro país anfitrião.
É curioso ver como nós temos vindo a evoluir desde a altura em que, em 1986, entrámos com cabeça, tronco e membros, na CEE, que depois se tornou União Europeia. Já há cinco anos que lidamos diariamente com o euro, o qual se transformou de facto no símbolo mais visível da União. Muita coisa tem mudado no país, entretanto. As vias de comunicação, referindo-me não só a auto-estradas mas também a pontes e aos metropolitanos do Porto e de Lisboa, são possivelmente a face mais visível da mudança, mas esta abrange todos os sectores da nossa vida e sociedade. Ainda agora vejo, aqui em Lisboa, o prolongamento da linha do Metro Alameda para os lados de S. Sebastião da Pedreira a ser subsidiada pela UE em mais de 70 por cento. Isto significa que, se fôssemos a contar apenas com o trabalho produzido pelos portugueses, estas obras ou nunca se realizariam ou só o seriam numa data muito posterior. Neste sentido, a UE acelera processos, exactamente como a educação pretende fazer relativamente às pessoas.
Pessoalmente, sinto que tenho evoluído na minha opinião sobre a União Europeia. Em Outubro de 1998, quase há uma década, eu escrevia o seguinte: "Hoje, Portugal é um país diferente, embora muito da ordem antiga tenha permanecido. Ao entusiasmo da revolução seguiu-se o desapontamento por alguns excessos. Tal como as ondas do mar que voltam ao mesmo sítio na praia, os antigos detentores do capital voltaram às suas coutadas e foram tolerantemente recebidos pelos portugueses. Há um certo apaziguamento da sociedade. Aqui, como noutros países, os grandes defendem o downsizing do Estado para poderem agir segundo as regras do mercado, as quais naturalmente os favorecem. O Estado, ao ver que não os consegue bater, une-se a eles. O pretexto para tudo é a União Europeia, a qual nunca foi alvo de referendo em Portugal, seguindo a linha que já vinha de trás, do tempo de Salazar: "O Ultramar não se discute, cumpre-se." O princípio manteve-se: "A Europa não se discute, cumpre-se." E tem-se cumprido. O que é do futuro só o futuro o dirá."
Agora já estamos dentro desse futuro, e mais futuro está a ser gerado. Será a União uma verdadeira união? Considero que os instrumentos que entretanto foram criados têm feito com que, pelo menos formalmente, assim seja. Contudo, gostaria de citar aqui (de cor) uma frase que ouvi há cerca de um mês: "As fronteiras entre os vários países da Europa não são meros riscos num mapa; são as cicatrizes das muitas batalhas e guerras que entre si os países europeus travaram." A diversidade europeia é natural e óbvia. Diferentes povos, de múltiplas origens, condicionados por geografias diversas, clima, etc. não poderiam nunca produzir sociedades iguais. Na generalidade, poder-se-á dizer que os países têm muitos pontos em comum no que toca a desejos materiais. São, porém, muito diferentes na alma. É fácil de ver como as cicatrizes se reavivam e, às vezes, até infectam, aquando de disputas desportivas e de posicionamentos políticos. Veja-se o caso da Polónia com a Alemanha, da Áustria relativamente à entrada da Turquia na União Europeia, de Portugal com a Espanha, da França com a Alemanha, da Inglaterra com a França, das duas partes da Bélgica, etc. etc.
É aqui que se vê a importância do conhecimento da infância e adolescência desses países. É aqui que quem gosta de História sente um prazer especial em entender o modo como as coisas se passaram. À medida que aprofunda os seus estudos e lê outras fontes que não apenas as iniciais, compreende que a sua primeira visão estava muito longe de abarcar tudo e fica consciente de que as novas coisas que entretanto aprendeu não serão ainda a última palavra. Presentemente, ver o processo histórico a desenrolar-se frente aos nossos olhos é uma possibilidade extraordinária. É que há muito de novo. A União Europeia é, de facto, uma experiência original. Embora vários dos seus instrumentos se baseiem na forma como a Alemanha se constituiu durante o século XIX, este processo apresenta diferenças flagrantes, a começar pelo elevado número de línguas nacionais (na constituição da Alemanha existia unidade linguística, foi criada uma moeda única e foram abolidos os direitos alfandegários). Espera-se que a experiência resulte. Num mundo incerto, a Europa que perdeu as suas antigas colónias uniu-se e tornou-se uma grande potência, um interlocutor incontornável. O que virá a seguir? Um suavizar das cicatrizes ou um reavivar de histórias antigas? Espectadores e actores, estamos a ler e, em escala ínfima, a escrever um livro. Espera-se que tenha muitas páginas, não seja demasiado maçador nem guerrilhento, e seja vivo, inovador e actuante. Dentro dos parâmetros históricos das cicatrizes fronteiriças, admito que até agora não me tem decepcionado.

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