6/05/2010
Cenas de rua
Para quem passa na rua onde moro, o que mais salta à vista são decerto os automóveis. Estacionados correctamente em espinha, ou em segunda fila quase tão compacta como a anterior, os automóveis e as carrinhas dão frequentemente origem a engarrafamentos, apitadelas monstras ou a simples vozes alteradas. Conseguir arrumar o carro na rua é hoje em dia uma sorte extraordinária. Os dois postos da EMEL que aqui foram colocados estão perfeitamente inoperantes: drogados entretiveram-se durante meses e meses a caçar moedas com um engenhoso arame, retorcido à medida e com ganchinho na ponta. Hoje, como nenhum funciona, o estacionamento para os residentes deixou de ser prioritário. A contribuírem substancialmente para esta situação há na rua, que é relativamente curta, duas oficinas e dois stands de automóveis. Porém, contamos também com uma utilíssima e simpática farmácia, uma escola básica que chilreia de miúdos, uma casa de gelados que é dos poucos sobreviventes dos antigos sorvetes caseiros, além de quatro pequenos cafés-pastelaria, cada um deles com a sua esplanada. Uma papelaria, dois cabeleireiros (um deles para homens) e um dentista compõem o ramalhete. Os prédios são geralmente de cinco andares e datam de há 70 anos, mais coisa, menos coisa. A maioria das pessoas já aqui vive há um ror de anos.
O Sr. Romão é um desses. Conheço-o desde que vim para aqui morar. Não nos falamos mais do que bom dia, boa tarde, mas cumprimentamo-nos. O Sr. Romão está reformado. Como todo o pensionista que ainda tem saúde suficiente para sair de casa, tem na sua rotina a compra do jornal. O seu favorito é o Correio da Manhã. Antes de levar o periódico para casa, passa pelo menos uma hora dentro do seu automóvel, que possivelmente conseguiu estacionar estrategicamente durante um fim-de-semana e no qual nunca mais mexeu. Durante anos, o Sr Romão teve um velhíssimo Volkswagen Golf, já comprado em terceira ou quarta mão, que se apresentava com vários pontos de ferrugem e bastante despintado no capot e no tejadilho. Por volta das 9 e meia da manhã ele sentava-se no seu carrito e, sempre receoso que a bateria se tivesse ido abaixo durante a noite, punha o motor a trabalhar e assim o deixava enquanto ia lentamente folheando e saboreando o seu jornal, possivelmente antegozando as novidades que iria contar à patroa que entretanto estava na cozinha a preparar o almoço. Cheguei a vê-lo às 11 horas ainda dentro do carro, sempre com a janela do seu lado aberta. O motor continuava a trabalhar. Aquela bateria iria durar uma vida. Há dias fui surpreendido. O Sr. Romão lá estava dentro da viatura a folhear o seu Correio da Manhã que, como sempre, tinha comprado na papelaria da rua, mas o automóvel era outro! Em vez do descorado VW, agora tinha um Peugeot preto. Deve dar-lhe bastante gozo, a ele que nunca vi tirar o carro da rua, ter mudado de viatura! O carro não é exactamente novo, mas sim de 2004. O Sr. Romão não se pode dar ao luxo de comprar carros novos, mas agora este tem a pintura impecável, o leãozinho da marca atrás e à frente, e, vantagem das vantagens, já não é preciso gastar gasolina a carregar a bateria! Agora, é em silêncio que o Sr. Romão lê sobre as traficâncias políticas e os crimes que se cometem por aí fora. As viagens paradas, com as rodas do carro a tocarem no passeio, mantêm-se as mesmas, mas deve ser para ele uma extraordinária sensação poder usufruir do prazer de estar dentro do seu novo carrito!
Deixemos o Sr. Romão em paz. Ele é um homem pacífico e não o vejo a falar a muita gente. Entretanto, a propósito de falar, achei interessante uma cena que pude observar esta manhã, também aqui na minha rua. Ia eu a caminhar pelo passeio para fazer umas compras na frutaria ali em baixo quando surgiu no mesmo passeio um rapaz alto, de óculos escuros, a falar aparentemente sozinho. De facto, não vinha ninguém com ele. É cena que já foi presenciada por muita gente e que coloca as cidades como locais de muito Fala-Só. É claro que ele estava a falar ao telemóvel, mas como este não se via e o rapaz tinha apenas um auscultador no ouvido, a coisa surgia algo estranha. Entretanto, ele sentou-se à mesa de uma das esplanadas da rua. O contraste dificilmente poderia ser maior: na outra única mesa ocupada estava um casal também aqui residente. Certamente porque já estão casados há muitos anos e conhecem de cor e salteado as conversas um do outro, tanto ela como ele estavam em silêncio, cada um a ler para si uma parte do jornal que tinham comprado. Entretanto chegou o Fala-Só e sentou-se. Fisicamente sozinho à mesa, ele falava exuberantemente, com imensos gestos. Discutia em voz alta os termos de um negócio com um invisível interlocutor. Mantinha uma animadíssima conversa que nem o homem, nem a mulher sentados na mesa ao lado, já conseguiam ter. Quando, minutos depois, passei de volta no mesmo local, ele continuava a falar. O casal, possivelmente ofuscado por tanto paleio e perturbado nas suas leituras silenciosas, tinha debandado.
São cenas triviais, eu sei, mas dão cor e alguma graça ao quotidiano da nossa rua.
P.S. A fotografia acima foi tirada a um domingo. A presença de um carro da polícia e os respectivos agentes nada tem a ver com distúrbios. Tem tudo a ver, porém, com a casa de gelados mencionada no texto e que fica do lado direito da rua. Ela até polícias atrai nos dias mais quentes!
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