6/16/2010

Quem ousará dizer que a nossa sociedade é a mesma?


Ainda há indivíduos que gostam de dizer que a sociedade portuguesa pouco evoluiu. Segundo essas pessoas, mantemos muitos dos mesmos modos de antanho e seríamos facilmente reconhecíveis por alguém que tivesse vivido há sessenta ou setenta anos.
É claro que sei que da mesma forma que uma andorinha não faz a primavera, um exemplo só por si não faz regra. No entanto, não consigo resistir à tentação de ilustrar um caso que me parece bem significativo da flagrante evolução que a nossa sociedade tem sofrido.
De limpeza a um sótão onde se acumulam montes de coisas velhas, descobri no sábado passado uma modesta maleta onde se encontravam cartas pessoais, cartões antigos de Natal, páginas com orações a vários santos e umas folhas algo rasgadas e descoloridas que continham… minutas de cartas de amor. Foi uma surpresa, devo dizer. Reproduzo aqui a página de rosto da "Nova Colecção de Cartas Amorosas para ambos os sexos". Como se pode inferir desta página, a compilação reúne cartas tanto em prosa como em verso. A maioria delas é, como seria de esperar, em prosa.
Será que hoje ainda haveria público para coisas destas, mesmo que elas fossem "aggiornadas"?
As duas primeiras missivas são declarações de amor. Temos de imaginar uma sociedade portuguesa com muitas pessoas que não sabiam ler e um número ainda maior das que não sabiam escrever. Daí o recurso a fórmulas estereotipadas, como as apresentadas nesta "nova colecção" (o êxito da primeira edição terá decerto sido grande).
Transcrevo as duas primeiras cartas, porque me parecem ilustrativas do estilo. Datam da década de 1930, em pleno regime salazarista do Estado Novo, a poucos anos do começo da segunda guerra mundial.
Dirigida a uma formalíssima Exma. Snra., a primeira carta apresenta o seguinte como texto:

A paixão e o dever obrigam-me a revelar a V. Exa. uma cousa que já não posso ocultar-lhe. Há muito que a amo, mas se fosse tão desditoso que, depois de lhe ter feito esta declaração, V. Exa. rejeitasse as minhas atenções, que mortal sobre a terra seria mais que eu digno de piedade? E poderia eu vê-la sem a adorar? Rogo-lhe, pois, não recuse duas palavras traçadas pela sua delicada mão ao que fará consistir toda a sua ventura em lhe agradar, e se confessa tão apaixonado quão sincero. Seu (Augusto).

A segunda carta, definida como "Declaração de amor simples e sem afectação", tem um começo ligeiramente menos cerimonioso: Senhora: Depois desbobina uma lenga-lenga quase própria de canção do bandido. Vejamos:

Quando por um feliz acaso conheci a família de V. Exa., pela qual fui honrosamente acolhido, não pensava perder a minha liberdade com essa visita. Sim, amável senhora, apenas meus olhos se fitaram em seu belo semblante, amoroso ardor penetrou em meu peito e foi aumentando à medida que tive a dita de gozar a sua estimável presença. Como sei apreciar devidamente os preciosos dotes com que a ornou a natureza, justo é que V. Exa. premeie um dia tal apreço, concedendo-me a mão de esposa. Eu já declarei ao pai e à mãe de V. Exa. as minhas legítimas intenções e ambos as aprovaram. Espero que os autores dos meus dias, cujos haveres regulam pelos da família de V. Exa., coroarão os meus ardentes desejos outorgando-me o seu consentimento. Mas deveria eu unicamente tamanha ventura a cálculos interesseiros ou a obediência passiva? Fale, minha senhora, declare franca e lealmente se já dispôs do seu coração. Essa confissão evitará a V. Exa. futuros desgostos e a mim o de me constituir o mais desventurado dos esposos. Se a resposta de V. Exa me for lisonjeira, correrei a lançar-me a seus pés para lhe jurar que por toda a vida sou respeitosíssimo e fiel amante. (Ernesto)

Um último exemplo, numa carta em verso, da qual transcrevo apenas a primeira quadra.

À Amélia

Anseias, tremes, suspiras!
Vem-te às faces o rubor,
Ao ouvires, meiga, os meus cantos,
Porque são cantos de amor.


Basta de transcrever lamechices deste tipo. Quem escreveria hoje desta forma? Quem ousará dizer que a nossa sociedade é a mesma?

Sem comentários:

Enviar um comentário