6/27/2010

No dia em que o Gana derrotou os Estados Unidos


(A foto é retirada de uma reportagem da BBC News.) Foi ontem. A alegria nas ruas de Acra, capital do Gana, foi indescritível. Porquê? Porque a selecção nacional ganesa bateu a equipa dos Estados Unidos e entrou nos quartos-de-final do campeonato do mundo de futebol que está a decorrer na África do Sul. É agora a única nação africana ainda a competir. Será que uma vitória destas merecia tanta celebração? Simbolicamente, acho que sim.

A história do Gana é, como toda a história de África, muito antiga, mas infelizmente só se começa a saber algo com um pouco mais de detalhe após os primeiros contactos com os europeus. No caso do Gana, esses primeiros europeus foram os portugueses. Em 1470 (22 anos antes de Colombo chegar à América). As explorações marítimas portuguesas interessavam-se por várias coisas, nomeadamente matérias-primas (as commodities de hoje) e escravos. Foram dividindo a costa ocidental de África segundo esse critério. Após a Costa dos Cereais, delimitaram uma Costa do Marfim, passaram para uma Costa do Ouro e terminaram esta série com a Costa dos Escravos. De todas, apenas se mantém com o mesmo nome a Costa do Marfim. A Costa dos Escravos é a actual Nigéria, cuja capital é Lagos, nome da cidade portuguesa onde desembarcavam os escravos africanos para serem vendidos. Quanto à Costa do Ouro, actual Gana, ela tinha um interesse especial, na medida em que o ouro é sempre moeda de troca para tudo. Os portugueses interferiram nessa altura no habitual fornecimento de ouro para a Europa, comerciando-o com os reis do Gana e desviando-o assim para a sua rota das Índias. (Uma curiosidade: devido à consequente escassez de ouro, ocorreu na Europa uma exploração maior de um metal alternativo: a prata. Da prata extraída da Boémia, hoje República Checa, nasceu o Thaler, que com a enorme emigração da Europa Central para a América veio a transformar-se no dólar.)
No Gana os portugueses fundaram uma feitoria: S. Jorge da Mina. No entanto, o ouro chama muita gente, e pelo Gana passaram ao longo dos séculos vários outros povos, que dominaram várias partes daquelas costas: suecos, dinamarqueses, holandeses, alemães e, como não podia deixar de ser, ingleses.
Finalmente, há 53 anos o Gana tornou-se um país independente. Da proclamação da independência saiu uma célebre frase: "É melhor sermos independentes e governarmo-nos sozinhos, bem ou mal, do que sermos governados por outros."(O dito popular diz mais ou menos o mesmo de outra forma: "Mais vale ser cabeça de rato que cauda de leão.") Uns tempos após a independência, foi publicada no Gana uma listagem de ordens honoríficas. De entre estas, a mais importante deu brado: a Real Ordem do Mosquito. Porquê? Porque se não fosse o mosquito, possivelmente ainda hoje seriam os brancos que estariam a dominar o Gana.
Presentemente, o Gana possui uma economia relativamente fraca, baseada nos seus recursos naturais, nomeadamente o ouro, que se mantém, embora em menor escala, madeira e cacau. O país possui também algum petróleo e diamantes.
No palco do mundo, com o jogo a ser transmitido para todo o globo por inúmeras cadeias de televisão, a vitória em futebol sobre os Estados Unidos – símbolo do ocidente colonizador que ocupa ambos os lados do Atlântico Norte – fez o Gana rejubilar. As sucessivas humilhações começam a ser engolidas pelo Ocidente.
No seu interessantíssimo livro Ébano, Kapuscinski faz notar uma realidade que eu próprio ainda parcialmente testemunhei em África: "A diferença de raça e de cor da pele foi o tema central, a raiz das relações entre europeus e africanos na época colonial. O branco era o senhor incontestável enviado por Deus para dominar sobre os negros. Aos africanos era dito que o branco era intocável e invencível. Era esta a ideologia que o sistema colonial defendia, na qual se baseava a convicção de que não fazia qualquer sentido pôr em causa o sistema ou revoltar-se contra ele."
Compreende-se agora talvez melhor a razão do nome dado à selecção do Gana – os Black Stars – e o orgulho e alegria que os jogadores e toda a população sentiram por esta vitória.

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