6/01/2010

Candidaturas ao Ensino Superior

Com uma regularidade que já se tornou habitual, há vários órgãos da imprensa que publicam nesta altura do ano um guia nacional de candidatura ao ensino superior. É um serviço informativo que se justifica: a escolha da instituição certa por alguém que termina os seus estudos no secundário nem sempre é uma tarefa fácil. Comparar as médias de entrada do ano anterior de entre as áreas e cursos que se pretende é útil para um aluno verificar se tem probabilidades ou não de admissão na escola X ou Y.
O que este guia invariavelmente mostra é um discutível enviesamento, chamemos-lhe assim, no encaminhamento dos dinheiros públicos no ensino superior. Tentemos analisar por partes esta questão, que não é nova.
A educação em Portugal, tal como sucede em muitos outros países, tem uma componente pública e uma outra que é privada. Estas duas componentes existem desde a pré-primária até ao ensino superior. Quem reside numa cidade tem geralmente as duas hipóteses de escolha. Quem vive em centros mais pequenos, por vezes só conta com o serviço público. Como este é pago pelo Estado até à altura em que o ensino é obrigatório por lei, as famílias de menores recursos encaminham os seus filhos para escolas estatais. Quanto às famílias mais abastadas, elas preferem geralmente estabelecimentos privados, se estes existirem nas localidades onde residem. Tanto na pré-primária como no ensino básico e no secundário os pais com mais posses preferem pagar mais, mas ter aquilo que em princípio será uma educação mais produtiva e disciplinada para os seus filhos. Entende-se porquê. Em tempos hoje já bastante recuados, não eram todos os rapazes e raparigas que prosseguiam os seus estudos depois do chamado exame da 4ª classe. A natural selecção que se fazia entre os mais aptos fazia com que as escolas secundárias públicas tivessem um bom nível, tanto no que respeita ao ensino como à aprendizagem. Com a obrigatoriedade do ensino – amplamente justificada – deu-se uma massificação que, aos poucos, preteriu a qualidade em favor da quantidade. A tendência para igualar por baixo, que é um produto do facilitismo que ainda hoje impera, acabou por prejudicar os melhores. Os pais destes alunos foram gradualmente retirando os seus filhos das escolas públicas. Hoje em dia, dificilmente haverá um filho ou uma filha de ministro a frequentar escolas públicas desde a pré-primária até ao final do secundário. O mesmo se aplica a filhos de médicos, engenheiros, arquitectos, advogados, professores do ensino superior, farmacêuticos, gestores, empresários ricos, etc.
Devido a este facto, ocorreu uma inevitável clivagem na sociedade, que anteriormente também existia mas não era tão pronunciada. Os filhos de pais com nível cultural mais elevado e correspondentes ganhos materiais têm hoje a possibilidade de proporcionar viagens no país e no estrangeiro aos seus filhos, que outras famílias não possuem. Boas bibliotecas em casa, excelentes computadores, cuidados extra de alimentação e saúde, além de conversas e ensinamentos em casa e com os amigos proporcionam aos filhos desses casais um nível que não está ao alcance de todos. É verdade que nem todos aproveitam, mas esses casos, não sendo raros, são também produto de uma aptidão menor dos estudantes e de menor interesse pelo estudo, que às vezes é, mesmo assim, compensado por "explicações", as quais estão também fora do alcance de quem não tem posses suficientes.
Em face desta situação, a maioria dos alunos que acaba por entrar no ensino público superior, que é quase totalmente pago pelo Estado – as propinas nas escolas estatais são sempre muito mais baixas do que as de uma escola privada – é constituída por estudantes com maiores posses. E é aqui que se pode levantar a questão: é justo que sejam os alunos oriundos de famílias mais abastadas a usufruir dos pagamentos do Estado? É que os que obtêm médias mais baixas de admissão ao ensino superior vêem-se frequentemente forçados a recorrer ao ensino superior privado. Sucede, entretanto, que aqui ocorre uma situação inversa relativamente ao ensino secundário: as escolas superiores públicas oferecem um grau de credibilidade e exigência que as escolas superiores particulares não se podem dar ao luxo de oferecer (a Universidade Católica é um caso especial, porque se insere num regime à parte). Por outro lado, seria justo que o Estado preterisse os melhores alunos que se candidatam e admitisse os que têm classificações mais baixas? Existe nesta situação aquilo que para algumas pessoas representa uma perversa utilização dos dinheiros públicos e, para outras, uma situação perfeitamente normal: o Estado premeia os melhores, independentemente da forma como eles se tornaram os melhores.
Mesmo assim, dentro do ensino superior público existe uma diferença notória entre a generalidade dos admitidos pelas universidades – nível mais elevado - e pelos institutos politécnicos, salvo cursos especiais que só existem no ensino politécnico.
O Guia Nacional de Candidatura ao Ensino Superior 2010-2011, tal como vem transcrito na imprensa, espelha mais uma vez realidades diversas, de que salientarei apenas três, embora acrescente alguns considerandos:

1. Enquanto os estabelecimentos públicos revelam, quase sem excepção, as notas mínimas de entrada no ano anterior, as escolas privadas abstêm-se de o fazer. (Uma vez que existe uma boa credibilidade das escolas superiores públicas, todos tentarão escolhê-las, a não ser que nelas não encontrem os cursos que especificamente pretendem frequentar. Por seu lado, as escolas superiores privadas pretendem basicamente preencher os seus numeri clausi, porque sem alunos ou com um número muito baixo não conseguem sobreviver.)
2. Enquanto as notas mínimas de entrada em cursos públicos como os de Medicina, Arquitectura, Direito, Biologia e Farmácia requerem notas elevadas ou relativamente altas (respectivamente, mais de 18, 16/17, 14/15, 13/14, mais de 16), outros cursos há, igualmente públicos, em que as notas mínimas de entrada são baixas, por vezes mesmo ligeiramente abaixo de 10. Aqui há vários factores a ter em conta, sendo um deles o da elevada procura e do numerus clausus. Sempre que o numerus clausus aumenta, as notas mínimas de entrada descem, como seria previsível. (A informação dos jornais não fornece o número máximo de alunos por curso, o que prejudica a informação correcta.)
Existe, por outro lado, um factor muito importante e que é geralmente ignorado: o do elenco das disciplinas de acesso, isto é, das disciplinas de exame que são incluídas na média de acesso. Relativamente a este caso, há numerosas escolas públicas que fazem aquilo que para alguns será batota e, para outros, um processo perfeitamente legal, uma vez que é autorizado pela autonomia de que as escolas superiores desfrutam: introduzem nas disciplinas de exame de acesso cadeiras que não serão, à vista desarmada, nem as mais difíceis, nem as mais indicadas. O exemplo mais notório é o dos cursos que contêm no seu elenco disciplinas com uma vasta componente numérica. Ora, em princípio a Matemática deveria ser disciplina obrigatória de acesso. Não o é sempre. Numerosos cursos públicos, não no sub-sector universitário mas sim no sub-sector politécnico, colocam a Matemática como disciplina opcional nos seus exames de acesso. O resultado é que esses cursos poderão depois apresentar notas mínimas de acesso relativamente elevadas, sendo no entanto verdade que pouco contêm da componente de Matemática que, a ser obrigatória, faria baixar drasticamente as notas mínimas ou, então, reduziria substancialmente o número de alunos com acesso. Neste sentido, estabelece-se em vários cursos do ensino superior uma clara distinção entre universidades e politécnicos.
O número de cursos superiores com designações diferentes é impressionante. Pelas minhas contas são 758 (!), regidos quantitativamente por esta ordem: universidades públicas, institutos politécnicos públicos, institutos politécnicos privados e universidades privadas. Dos cursos-base que eram comuns no passado, como os de Agronomia, Biologia, Direito, Engenharia, Farmácia, Física, Gestão de Empresas, Línguas, Matemática, Medicina, Psicologia, Química e Sociologia, evoluiu-se para uma imensa variedade que inclui licenciaturas em Aconselhamento Psicossocial, Administração e Gestão Desportiva, Animação Digital, Animação e Intervenção Sociocultural, Artes Performativas, Ciência dos Alimentos, Ciências da Ecologia e Desenvolvimento Sustentado, Ecologia e Paisagismo, Gerontologia Social, Línguas e Estudos Editoriais, etc. etc. Há conteúdos de cursos que têm necessariamente de ser muito idênticos mas que, pelas suas diferentes designações, pretendem dar uma ideia de inovação que possivelmente é mais aparente do que real. Em nome da verdade e defesa dos estudantes que serão futuros diplomados, deveria haver uma maior uniformização na nomenclatura.

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