6/23/2010

Nadir Afonso - Palavras na abertura de uma exposição



Fui ontem ao fim da tarde ao Museu do Chiado à inauguração da exposição retrospectiva de Nadir Afonso (até aos anos 60). Sempre gostei da pintura de Nadir pela sua criatividade, frequentemente baseada na cor e na geometria. No geral agradou-me a exposição, que se estende por diversas salas dos andares superiores do museu. Admirei especialmente alguns quadros sobre cidades, cheios de poder interpretativo do essencial urbano e dentro das características de jogos de cor e de figuras geométricas típicas do artista (as suas reproduções em azulejo numa das estações do Metro de Lisboa são bem conhecidas).
Porém, o que me seduziu mais, devo dizê-lo, foi a presença do próprio Nadir. Antes de chegar ao museu, perguntava-me se ele lá estaria. Aos 90 anos, ele poderia já permitir-se ficar em casa alegando uma maleita qualquer. Não foi a sua escolha, felizmente. Apareceu, embora de aspecto algo débil e frágil, como aliás seria previsível. Durante a apresentação que precedeu a visita, o facto de a assistência e os quatro oradores estarem de pé constituiu uma particular violência para o artista até ao momento em que alguém, piedosamente, se lembrou de lhe colocar uma cadeira para que ele se sentasse. Quando chegou a vez de Nadir falar, o transmontano de Chaves, que é arquitecto, e como tal trabalhou em França com figuras célebres como Le Corbusier e, no Brasil, com Óscar Niemeyer até se dedicar exclusivamente à pintura a partir dos anos 60, levantou-se, sacou de um papel que tinha rascunhado e iniciou a leitura. Ao fim do primeiro minuto, porém, esqueceu o papel. A sua voz, de um tanto sumida a princípio tornou-se vibrante e francamente mais elevada. Era de dentro de si próprio que falava, qual realizador de um filme de que ele fosse o actor principal. Falou de arte. Da arte que não se explica, apenas se faz e se contempla. Cheio de entusiasmo, negou a interpretação de quadros pela simples expressão da alma do artista ou por correntes ideológicas do seu tempo, embora admitisse a sua influência. A ele importava-lhe mais a resposta a uma questão: porque é que o artista põe ali um triângulo e não um quadrado, acolá um círculo e não uma elipse? "Demorei muitos anos a colocar-me a mim próprio esta pergunta, sem encontrar uma resposta", confessou. "Um artista que pinta a natureza não copia, dá realce a uma árvore, a uma casa, a um outro elemento. Porquê? O que é que o faz mover o lápis ou o pincel para realçar este ponto ou aquele?" A sua resposta foi aparentemente simples mas, como ele salientou, de enorme importância: "tudo deriva da existência de leis matemáticas a que o artista inconscientemente obedece, porque elas estão dentro de si, integram o seu conceito de harmonia, completam a sua tentativa de perfeição naquele momento. A paleta das cores está aí igualmente incluída: cor é forma". A veemência com que as suas palavras foram ditas e repetidas, a profunda convicção de que estava possuído, a insistência na importância deste ponto contra outros geralmente salientados pela crítica, que podem ser mais bem soantes mas são puramente balofos, não pôde deixar de me impressionar. O homem pequeno de estatura que Nadir é agigantara-se em tudo para dar a sua verdade, falar do mais íntimo do seu ser.
Ter o artista a falar assim e vê-lo depois, acompanhado pela Ministra Gabriela Canavilhas, a fazer uma visita a quadros que eram seus filhos mas que não via há muito tempo e que recordava com saudade, ajuntando uma informação aqui sobre esta linha ou ali sobre aquela cor, foi um momento francamente interessante.
Quanto à exposição, recomendo-a por ser uma recolha quase exaustiva da produção de Nadir no período acima mencionado. Pessoalmente, no entanto, foi a presença do artista, com a veemência das suas palavras e a sua atitude gestual enquanto falava frente a críticos de arte e a pessoas interessadas, que mais fundo me tocou.

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