9/18/2010

Figuras de Referência


Um interessante artigo lembrava-me há dias que os clubes de futebol têm cada vez menos referências nas suas equipas. Muito menos, de facto. Uma figura de referência é sempre alguém carismático, que se salienta pelo seu profissionalismo, amor à camisola e algumas características próprias que o distinguem dos outros. Uma figura de referência é como que um símbolo de um clube. Sabemos que ele não durará sempre, mas marcará pelo menos uma era, possivelmente junto a mais uns tantos, e é com esse conjunto que o adepto se identifica.
As minhas cores clubistas, devo dizê-lo, têm-se esbatido. Sportinguista desde miúdo, não quer isto dizer que me incline presentemente para qualquer outro clube, mas é um facto que não me identifico tanto com as vitórias e as derrotas. Uma das razões que naturalmente aduzo tem a ver com o avanço da minha idade e consequente experiência das coisas; mas estou em crer que um aspecto altamente relevante está directamente associado à ausência quase total de figuras de referência.
Sei que aquilo que nos agradou muito na nossa adolescência fica muitas vezes para o resto da vida. É assim com músicas que trauteamos, com livros que lemos, filmes que vimos, amores que tivemos. Também no futebol isso se passa. Recordo-me, como tantos outros portugueses da minha idade se recordarão, mesmo que fossem adeptos de outras equipas, de um conjunto de avançados com que o Sporting contava que eram o espelho do clube: Jesus Correia, Vasques, Peyroteo, Travassos e Albano. Suponho que chegaram a jogar todos juntos na selecção nacional. No Benfica havia figuras muito carismáticas, das quais a de maior referência foi sem dúvida Eusébio. Assim como, no Belenenses, Matateu era uma figura de referência, juntamente com as chamadas "torres de Belém", uma defesa difícil de ultrapassar. Posteriormente, o Sporting contou com um Figo que foi uma inegável figura de proa. O Benfica contou com um notável João Pinto. O Porto teve figuras que se salientaram, como um Barrigana a guarda-redes e o avançado-centro Fernando Gomes.
Gradualmente as coisas foram mudando. Não era tanto a mudança de caras que contava: os jogadores não são eternos e as renovações são produto da ordem natural das coisas. Mas havia sempre um núcleo duro, um conjunto de jogadores que encarnavam a mística de cada um dos clubes. Portanto, mantinha-se uma fé nos indivíduos que, ano após ano, envergavam a camisola do clube, e davam o seu melhor por ele.
Até que um dos grandes símbolos do Benfica, o acima-mencionado João Pinto, passou a jogar pelo Sporting. Havia algo que não batia certo. Quando Figo abandonou o Sporting para seguir uma carreira que haveria de conduzi-lo a "melhor jogador do mundo", não se estranhou. No Barcelona, Figo foi uma estrela. Apesar de estrangeiro, chegou a capitanear a equipa. Uma honra. Mas eis que Figo se descaracteriza: assina pelo clube rival de Madrid. Deixou de ser uma figura de referência clubista. Apenas o dinheiro contava. Entrou no grupo dos galácticos. Mais carteira do que coração.
Hoje, a situação agravou-se muito. Não admira, por isso, que muitos adeptos vão perdendo a ligação que anteriormente mantinham com o seu clube preferido. Dizem-no as estatísticas que, em dez épocas, o número médio de jogadores da Liga que representam o mesmo emblema durante cinco ou mais temporadas seguidas baixou para menos de metade (de 2,7 para 1,3). Por um lado, terá sido a Lei Bosnan, de 1995, que passou a permitir aos jogadores da União Europeia mudar de clube no final do contrato sem terem de pagar uma compensação por isso. Mas foi também o interesse económico dos clubes, que encaram as transferências como uma das suas principais fontes de receita, juntamente com o que recolhem de direitos televisivos.
O Benfica, um clube que outrora se orgulhava de contar na sua equipa apenas com jogadores portugueses, chegou na época passada a ter períodos de jogos em que não possuía no relvado um único jogador nascido em Portugal. Todos os onze eram estrangeiros, geralmente oriundos de países da América do Sul. É evidente que a identificação com esses jogadores por parte dos sócios e simpatizantes não pode ser a mesma. Sabe-se de antemão que no final da época não é impossível que cinco ou seis dos jogadores sejam transaccionados. Com o dinheiro obtido, os clubes contratarão outros. O espectador vai aos estádios para sentir a alegria de ver o seu clube vencer, mas se for o contrário que acontece cedo debandará. Das enchentes como corolário de vitórias passar-se-á a meias-casas. E vai-se aos estádios muitas vezes mais por hábito, para estar com uns amigos-do-futebol, beber umas cervejas e passar um tempo agradável. A identificação não existe com o mesmo grau do passado. Assobia-se mais quando a equipa está a perder, porque é a vitória que nos dá alegria, necessária por vezes ao fim de uma semana de agruras.
Quando, há meses, uma figura carismática do Sporting, João Moutinho, assinou pelo clube mais vencedor dos últimos anos em Portugal, o F.C. Porto, muitos sportinguistas desanimaram. Não tanto por o jogador ser insubstituível, porque não há insubstituíveis. Mas porque ele fazia parte da mística do Sporting, dava-lhe o arreganho de um capitão. Afinal, fez o mesmo que Figo ao trocar Barcelona por Madrid.
Para o treinador da equipa fica mais árdua a missão de explicar qual é a mística do clube. As figuras de referência são uma grande ajuda para os treinadores relativamente ao chamado "balneário".
Então, e clubes como o Barcelona, que são e continuam grandes? Bem, esses conseguem manter um núcleo de jogadores que conservam a mística. São clubes com grande poder financeiro. Desde o treinador, Guardiola, antigo jogador do clube, até Iniesta, Puyol, Xavi, Messi e outros, vemos uma equipa a que estamos habituados. Há identificação dos sócios. E da cidade. Há estádios cheios. Por seu lado, os clubes mais fracos financeiramente vêem as suas estrelas abandonar os relvados onde tantas vezes jogaram com a camisola do clube. Pouco a pouco, a fidelização perde-se. Só as vitórias podem levar todos os adeptos de volta.
Sinal dos tempos.

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