9/23/2010

A moeda


Constata-se há largos meses que há invariavelmente pelo menos um jornal, diário ou semanário, ou um canal televisivo, que fala de buracos financeiros existentes no nosso país em termos de finanças públicas. Uns falam em milhões por dia de aumento da dívida, outros entram na escala dos milhares de milhões em dívida total, outros ainda comparam a dívida pública com o PIB e/ou com dívidas soberanas de outros países. As perguntas que andam por aí no meio da população são geralmente deste teor: Como é que deixaram chegar isto onde chegou? Por que razão não tomam medidas a sério?
As perguntas são mais do que naturais. Quem é que gosta de ver o barco em que viaja ir ao fundo?
Fundamentalmente, os números que saem cá para fora devem estar mais ou menos certos. As projecções é que dependem do maior ou menor optimismo dos governantes e, naturalmente, do seu receio de perderem o poder.
A dimensão do Estado aumentou muito em Portugal após o 25 de Abril de 1974, nele incluindo o chamado Estado-Providência. A segurança social universalizou-se em termos de saúde e de pensões de reforma. Houve um substancial aumento do número de funcionários públicos. Multiplicaram-se as escolas, com o consequente acréscimo de professores e funcionários.
É óbvio que anteriormente já existiam múltiplas instituições que olhavam pela saúde. Portugal possuía hospitais com o respectivo corpo médico e de enfermagem, tinha Misericórdias e Casas do Povo, mas estava muito longe de possuir uma estrutura como a do actual Serviço Nacional de Saúde. As pensões de reforma também existiam. Inicialmente criadas a pensar na subsistência dos mais pobres, com o tempo transformaram-se muito. Hoje há reformas com cifras impensáveis. Digamos, em termos de metáfora, que o Estado-Providência substituiu o antigo "Se Deus quiser". Tomou a figura de um Deus que desceu à Terra para trazer benefícios (na verdade, muitas vezes mais prometidos do que efectivamente concedidos). Nunca houve tanta gente em Portugal a falar da situação de reforma como agora. Assim como nunca houve tanta gente a poupar tão pouco; mais, a gastar antecipadamente o que não possuía: gente geralmente endividada perante a banca durante muitos e muitos anos com a finalidade de compra de casa-e-carro.
Terá sido por motivos eleitoralistas que vários executivos consentiram o aumento dos salários e, com eles, o acréscimo das futuras pensões de reforma? Em parte, sem dúvida que sim. Manifestações de rua, de interesse corporativo, sucederam-se durante largos anos e, na generalidade, lograram alcançar pelo menos parte dos seus intentos. Ora, os aumentos salariais adquiridos foram um pouco como as vagas levantadas por um cargueiro que passa ao largo da costa e causa ondas perto desta. Tiveram uma natural repercussão futura. Esse futuro é já hoje.
Contudo, existe algo muito importante e de que pouco se costuma falar: a desvalorização da moeda. Vejamos o exemplo de Cavaco Silva. Ele foi um governante que, durante a segunda metade dos anos 80, concordou com um aumento significativo dos salários dos funcionários públicos. Devido a fins eleitoralistas, como é evidente. Bem ou mal, ele sabia no entanto que possuía uma arma que, embora sendo um pau-de-dois-bicos, serviria, se necessário, para resolver o problema. Essa arma era de facto a desvalorização do escudo. Se o escudo era desvalorizado em 15 por cento, por exemplo, as pessoas não sentiam imediatamente que estavam a perder dinheiro, na medida em que nominalmente tinham o mesmo. Se ganhavam 100 contos, continuavam a ganhar 100 contos. Passavam era a comprar apenas 85 por cento dos artigos que anteriormente adquiriam com o seu salário, nomeadamente se as suas compras incidiam sobre produtos estrangeiros. Havia inflação, para ajudar, o que representava que o Estado arrecadava nominalmente mais dinheiro. E quanto às pensões de reforma que o Estado tinha que pagar? Bem, essas mantinham o seu valor nominal, mas com elas também os reformados acabavam por comprar menos coisas, assim como o Estado lhes pagava comparativamente menos. O turismo para estrangeiros tornava-se mais barato, o que tendia a aumentar o número de turistas. Para os portugueses, o turismo no estrangeiro ficava mais caro, o que tendencialmente aumentava o turismo cá-dentro. As exportações portuguesas ficavam mais atractivas, na medida em que custavam menos em termos de dólares, marcos alemães ou francos suíços.
Poderia um governante como Cavaco Silva, homem de finanças, ter-se apercebido do risco do euro nos anos 80? Não. Nessa altura ainda não se falava em moeda comum europeia, e a possibilidade de abaixamento dos salários nacionais era sempre possível através da desvalorização cambial.
Em Maio de 1998 Portugal aderiu ao euro. De braço dado com o euro chegou o PEC, sigla que significa Pacto de Estabilidade e Crescimento. E sobreveio a impossibilidade de qualquer membro desvalorizar unilateralmente a moeda. O que tanto dava para a Alemanha como para Portugal. Os alemães ainda se debatiam com problemas financeiros relativos ao esforço de reunificação das duas Alemanhas, mas eles sempre foram um povo trabalhador e disciplinado. Portugal, pelo contrário, para ser disciplinado e rigoroso nas finanças públicas tinha precisado de um período de forte ditadura: o período de Salazar. Com larguíssimos inconvenientes também, como todos sabemos. Curiosamente, em alemão a pronúncia de Euro assemelha-se bastante à da palavra portuguesa "oiro". E a moeda tem sido realmente ouro para os alemães. Para os portugueses tem sido um teste, no qual Portugal não está a passar. Infelizmente.
Voltando ao Estado-Providência. Os reformados de 2000 para cá não têm perdido grande poder de compra. E os seus números são avassaladores. Os respectivos encargos para o Estado não diminuem e, pelo contrário, aumentam. Porquê? Porque o número de reformados cresceu em espiral e porque aquilo que poderia representar uma diminuição da despesa estatal com as reformas – uma desvalorização da moeda – se tornou impossível.
Pensou-se a curto prazo? Quem estava nos anos 70 ou 80 não podia imaginar que passaríamos um dia a ter a mesma moeda que a Alemanha. Mas quem administra as contas das finanças públicas após 1998, com a adesão de Portugal ao euro, devia ter prestado muito mais atenção à contabilidade. Essa indisciplina paga-se caro.
Por que razão não toma o actual Governo medidas? Por exemplo, baixar em 20 por cento os salários de todos os funcionários públicos e de todos os reformados da função pública? (entre 1977 e 1995 houve 7 (sete) desvalorizações do escudo). Já se imaginou a revolução que isso poderia causar, o clima de instabilidade política e económica que uma medida dessa ordem provocaria? A grande diferença é que estamos nos tempos de hoje e não nos antigos, em que uma desvalorização do escudo em 20 por cento reduziria automaticamente as importações (que ficariam mais caras 20 por cento) e abrangeria todos. Pensemos: será fácil dizer aos membros das forças armadas, no activo e reformados, aos professores, aos médicos e enfermeiros públicos, às centenas de políticos - que vão sofrer uma redução de 20 por cento nos seus rendimentos mensais?
Quem está no poder, hesita em falar verdade. Porquê? Porque isso implica perder o poder. Talvez se for Bruxelas ou o FMI a impor um ultimatum a punição política seja mais suave. Por seu lado, a oposição não quer tomar agora o leme do barco. Compreende-se também porquê. Entretanto o barco voga, mais ao sabor das marés que dos marinheiros.

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