9/27/2010

O colchão


Hoje acabou por ser um dia especial para mim. Confesso que não esperava. Tínhamos combinado despejar o sótão de coisas que já não fizessem falta. Muitas vezes um sótão torna-se um mero depósito de antiguidades, objectos que já ninguém usa e que ultrapassaram completamente o seu prazo de validade funcional. Não são necessariamente peças de museu. Uma grafonola que já não trabalha, um velho televisor a preto-e-branco a que faltam alguns comandos mas mantém o seu écran impecável. Um carrinho de bebé já com alguma ferrugem nas rodas que todavia mantém um estilo galante, embora certamente apenas para passear em desfiles de Donas Elviras especialmente organizados para carrinhos deste tipo. Algo utópico. Dois colchões de palha que seriam a primeira coisa a arder se por acaso o sótão pegasse fogo. Livros tão velhos e esfarrapados, com páginas amarelíssimas, das quais algumas rasgadas, que não despertariam o mínimo interesse de quem quer que fosse. Cabides de arame, que ficaram amontoados naquele sótão na vã esperança de que um dia poderiam voltar a ser úteis. Bem, no meio de tanta tralha houve ainda coisas que decidimos guardar: uma tenda de campismo completa e sacos-cama bem confortáveis. Um velho banjo que pertenceu ao meu sogro e ainda hoje toca. E mais umas tantas curiosidades.
Foi então que ele apareceu. O colchão. Este não era como os de palha, que esses já tinham sido levados escadas abaixo direitinhos para o lixo. Este era "o colchão". De borracha. E que memórias ele me suscitava! Tinha duas faces, uma vermelha, a outra azul. E uma elevação muito ergonómica do lado da cabeça. Insuflável, enchia-se em dois tempos: um para a parte do corpo propriamente dito, naturalmente maior; o outro para a cabeceira. Será que aquele meu velho amigo também iria para o lixo?
O que é que tem o colchão de especial, pai?, perguntou-me a Isabel. No meio daquela limpeza do sótão, ela não via qualquer motivo para conservar uma coisa que já ninguém iria usar, até porque tinha um remendo num dos lados. Lixo com ele, foi a sua proposta. A mãe concordou. Se vamos começar a deixar aqui coisas sem qualquer utilidade, acabamos por não arranjar o espaço de que precisamos. Era isso! Só a mim é que o colchão dizia qualquer coisa. E não era pouco. De repente, perpassaram-me pela cabeça cenas de um filme antigo em que o colchão era o protagonista número um. Objecto, sim, mas amigo. Inegavelmente.
Comprei-o em Luanda em Julho de 1961, no mesmo dia e na mesma loja em que
finalmente encontrei a cama de rede que já procurara noutros locais. Ainda hoje me lembro do nome dos armazéns: Quintas & Irmão (com a má-língua habitual dos portugueses, chamávamos-lhe Quintas & Ladrão devido aos preços algo elevados). Os produtos eram bons, no entanto. A cama de rede, algo por que ansiava ainda em Lisboa antes de partir para a guerra colonial – via-me em África mais a balouçar na rede entre duas árvores do que propriamente a disparar tiros – deu-me uma enorme alegria encontrar. E a cama serviu-me, de facto, embora menos vezes do que eu julgava. O colchão, devo dizê-lo, não era sequer o meu objectivo quando entrei na loja. Porém, como estava ali na mesma secção e eu via nele alguma eventual utilidade, levei-o também. Experimentei-o primeiro. Deitei-me sobre ele para ver se o meu metro e oitenta e três cabia lá dentro. Parecia feito à medida. Não hesitei.
Um colchão daqueles é, em princípio, para usar na praia. Em Luanda, com mar calmo, poderia utilizá-lo. E, se bem me lembro, cheguei a fazê-lo. O seu grande uso, contudo, foi nas diversas camas que ao longo de dois anos e meio de campanha me couberam em sorte. Ter um colchão daqueles, naturalmente revestido por um lençol, representava a garantia de um sono bem dormido. Fosse numa aldeia quase desconhecida da Quiçama, fosse na Muxima, no Cabo Ledo, em Quipedro ou no Lué, o colchão acompanhou-me sempre. No Cabo Ledo, com a sua magnífica praia, ele cumpriu várias vezes a sua dupla função de conforto para dormir e cama flutuante para vogar naquelas águas quentes sobre as pequeníssimas ondas da praia. A fotografia que aqui coloco é ainda a preto e branco, portanto não se vislumbra nem o lado azul nem o vermelho, mas as cores estão lá. Dois amigos meus também. E desta vez até estamos a posar no areal e não dentro de água.
O mais curioso daquele meu quase inseparável amigo é que quando eu tinha alguns dias de férias em Luanda, o colchão era disputado pelos meus colegas, que o aproveitavam para dormirem mais confortavelmente. Tinha uso diário, como se vê.
E agora, 50 anos passados, ali estava ele. Filha e mãe já tinham ditado a sentença: lixo. Tinham a sua razão. Entendi que eu próprio não voltaria a usá-lo. Quanto aos vindouros, nem pensar! Em pensamento, falei para ele em jeito de despedida: se para mais ninguém interessas, velho camarada, vou pelo menos dedicar-te umas linhas. Sentidas. Hão-de saber que desempenhaste bem o teu papel. Este é o meu adeus definitivo a um velho amigo, que aliás já estava há talvez três décadas sem qualquer uso, a descansar do seu esforço na guerra africana. Obrigado. Requiescat in pace!

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