As fugas de informação – os leaks – respeitantes a relatórios diplomáticos que geralmente só vêm a ser conhecidos cerca de 50 anos depois, isto é, quando muitos dos intervenientes já desapareceram da face da Terra, são reveladoras da profunda hipocrisia do relacionamento entre humanos e entre nações. "As palavras servem para dissimular o pensamento", dizia sabiamente Talleyrand. Nem mais. Estes documentos agora revelados provam que a mentira campeia, o cultivo da imagem é essencial para dissimular a verdade, a manipulação dos media é uma realidade.
"Estamos na era do conhecimento" é uma frase mais do que habitual dos grandes poderes. Porém, quando se trata de "conhecimento" deste tipo, ele é rejeitado como conhecimento a mais. Overdose. Defendem as nações mais poderosas que informações deste tipo podem fazer com que determinadas pessoas morram. Hipocrisia tremenda! Quantas não foram já mortas, inocentemente muitas vezes, através de planos sujos, urdidos desta forma ou outra semelhante? O que não gostam é de se verem sem máscara. O sorriso com que a reunião X terminou e aquele aperto-de-mão de 30 segundos para que todas as câmaras fotográficas e de filmar o apanhem, são substituídos posteriormente pelo relatório diplomático que, sendo expressão mais autêntica e menos hipócrita daquilo que os intervenientes efectivamente pensam, desdiz muito daquilo que os citados aperto-de-mão e o sorriso aparentam.
O tempo – os tais cinquenta anos – fazem com que muito seja escondido e passe a ser basicamente matéria de estudo de historiadores. Aqui, o tempo é o real e a verdade sobe à superfície. Democracia? Transparência? Quem mais usa estas palavras é quem mais precisa de atrás delas se ocultar.
Assange, o fundador da Wikileaks, é um homem a abater. É essencial que estas fugas acabem. "Em nome da liberdade e do sadio relacionamento entre as nações deste nosso mundo globalizado", dirão por correio transportado em mala diplomática os Estados Unidos, a Arábia Saudita, a China e tutti quanti. Quem duvida?
11/29/2010
11/24/2010
Breves considerandos sobre a greve
Como alguém que considera o regime democrático o mais aceitável de todos para governar uma nação, não condeno a existência de greves, as quais me parecem uma forma legítima de protesto e pressão sobre as autoridades para que promovam mudanças necessárias.
Pessoalmente, defendo dois conceitos básicos: a liberdade e a responsabilidade individuais. Que não existe responsabilidade sem liberdade parece-me evidente: a alguém que é coagido a praticar determinado acto sob pena de tortura ou mesmo de morte não pode ser assacada a mesma responsabilidade que a outrem que pratique esse mesmo acto de livre vontade.
Os sindicatos são organizações de defesa dos interesses dos trabalhadores e justificam-se amplamente pela força que representam. A união faz a força, como todos sabemos, enquanto que a falta de união implica fraqueza a todos os níveis. Por esta razão, dividir para reinar é uma clássica estratégia da classe com poder, que assim melhor domina as massas em núcleos de importância muito mais reduzida do que em grandes grupos.
Os sindicatos vivem da livre associação dos seus membros, que pagarão as devidas cotas. Os fundos dos sindicatos deverão cobrir as eventuais despesas incorridas pelos seus associados. Assim, se um trabalhador sindicalizado perde o salário correspondente a um dia de trabalho, esse dinheiro deverá naturalmente ser coberto pelo sindicato. Isto é verdade tanto para o sector público como para o sector privado. Quando a greve é organizada pelos sindicatos, deverá ser este o modus operandi. Quando a greve é selvagem, a responsabilidade é totalmente dos grevistas.
Os sindicatos estão frequentemente contra as entidades patronais, sejam elas o Estado ou as administrações de empresas privadas, pela anotação dos nomes dos grevistas. Os restantes, se os houver, são depreciativamente apodados de fura-greves. Ora, são exactamente os grevistas que organizam piquetes à entrada de determinados edifícios de trabalhadores. Com que finalidade? É evidente que o seu objectivo é o de dissuadir os eventuais funcionários ou empregados de irem ocupar o seu local de trabalho. Se alguém resistir e forçar a entrada, entrará no núcleo desprezível dos fura-greves. Ora, estará correcto que quem critica o Estado por anotar o nome dos grevistas – ou, o que vem a dar no mesmo, o nome dos que compareceram no seu local de trabalho – impeça colegas de irem trabalhar? Em que medida é que os piquetes respeitam a liberdade de cada um? Em que medida pode o seu comportamento ser visto como democrático?
Muitos trabalhadores preferem ficar em casa para não terem futuros problemas com os seus colegas, embora a greve os prejudique materialmente. E por que razão pode a greve prejudicá-los materialmente? Porque o salário de um dia num dinheiro para sustento da família que já é escasso representa uma diferença considerável. E será que o sindicato não cobre esse prejuízo? Não, esse é o grande problema. Se o cobrisse, a questão não se levantaria da mesma forma. Mas por que motivo não pagam os sindicatos o dinheiro que os grevistas perdem? Pela simples razão de que há muitos mais grevistas do que pessoas sindicalizadas. É este, entre outros, o motivo por que os piquetes de greve existem.
O argumento de que o Estado ou as entidades patronais não deveriam deduzir o dinheiro dos grevistas não tem qualquer base de sustentação. Se os salários são baseados na produção dos funcionários ou dos empregados, salvo os casos de doença, parto, etc. devidamente previstos na legislação em vigor, nada pode forçar as entidades públicas ou privadas a não descontarem o não-trabalho num dia útil. Afinal, os protestos e as marchas de reivindicações podem ser igualmente organizados a um domingo, dia em que a percentagem de pessoas a trabalhar é muitíssimo menor.
Na greve geral de hoje, é natural que haja muitas vozes a protestar contra a situação. Quem é que gosta de não ter emprego? Quem é que gosta de ver o seu salário ou a sua pensão diminuídos? Quem é que aprecia os cortes nos serviços da Segurança Social? Só os masoquistas, decerto. Mais: haverá muita gente que não participa nas manifestações a concordar com os slogans que lá são repetidos. Pois. Mas para que serve a presente greve? Para um desabafo geral de descontentamento. Que efeitos terá? O efeito das palavras. E para o Governo? Sentirá o descontentamento, como é natural, mas já teve o Orçamento para o ano que vem aprovado pelo Parlamento… No fundo, financeiramente acabará por ficar parcialmente contente com a poupança de um dia de trabalho que os grevistas da Função Pública e das empresas públicas lhe oferecem. Para um Estado que está com problemas de liquidez, todo o dinheiro é pouco. Contudo, é óbvio que esta parcela de poupança é pequeníssima face à enorme perda de produção nacional que uma paralisação causada por greve ou por outra qualquer circunstância sempre acarreta. É mais uma machadada no PIB.
Para não divagar mais, concluo, frisando basicamente três pontos:
1. Os piquetes de greve ensombram, e muito, a acção dos grevistas. Deveriam, por uma questão de credibilidade das organizações, ser banidos pelas direcções sindicais.
2. Os sindicatos deveriam cobrir as despesas em que os seus associados incorrem, nomeadamente as indemnizações correspondentes à perda de um ou mais dias de trabalho.
3. Num regime democrático, as eleições são possivelmente o local mais apropriado para manifestações de descontentamento deste tipo. O voto em branco é uma das soluções, desde que ele conte efectivamente para a distribuição dos lugares no Parlamento. Este é um assunto que abordarei em ocasião mais oportuna.
Agradeço comentários, porque admito perfeitamente que não esteja a ver correctamente esta questão.
Pessoalmente, defendo dois conceitos básicos: a liberdade e a responsabilidade individuais. Que não existe responsabilidade sem liberdade parece-me evidente: a alguém que é coagido a praticar determinado acto sob pena de tortura ou mesmo de morte não pode ser assacada a mesma responsabilidade que a outrem que pratique esse mesmo acto de livre vontade.
Os sindicatos são organizações de defesa dos interesses dos trabalhadores e justificam-se amplamente pela força que representam. A união faz a força, como todos sabemos, enquanto que a falta de união implica fraqueza a todos os níveis. Por esta razão, dividir para reinar é uma clássica estratégia da classe com poder, que assim melhor domina as massas em núcleos de importância muito mais reduzida do que em grandes grupos.
Os sindicatos vivem da livre associação dos seus membros, que pagarão as devidas cotas. Os fundos dos sindicatos deverão cobrir as eventuais despesas incorridas pelos seus associados. Assim, se um trabalhador sindicalizado perde o salário correspondente a um dia de trabalho, esse dinheiro deverá naturalmente ser coberto pelo sindicato. Isto é verdade tanto para o sector público como para o sector privado. Quando a greve é organizada pelos sindicatos, deverá ser este o modus operandi. Quando a greve é selvagem, a responsabilidade é totalmente dos grevistas.
Os sindicatos estão frequentemente contra as entidades patronais, sejam elas o Estado ou as administrações de empresas privadas, pela anotação dos nomes dos grevistas. Os restantes, se os houver, são depreciativamente apodados de fura-greves. Ora, são exactamente os grevistas que organizam piquetes à entrada de determinados edifícios de trabalhadores. Com que finalidade? É evidente que o seu objectivo é o de dissuadir os eventuais funcionários ou empregados de irem ocupar o seu local de trabalho. Se alguém resistir e forçar a entrada, entrará no núcleo desprezível dos fura-greves. Ora, estará correcto que quem critica o Estado por anotar o nome dos grevistas – ou, o que vem a dar no mesmo, o nome dos que compareceram no seu local de trabalho – impeça colegas de irem trabalhar? Em que medida é que os piquetes respeitam a liberdade de cada um? Em que medida pode o seu comportamento ser visto como democrático?
Muitos trabalhadores preferem ficar em casa para não terem futuros problemas com os seus colegas, embora a greve os prejudique materialmente. E por que razão pode a greve prejudicá-los materialmente? Porque o salário de um dia num dinheiro para sustento da família que já é escasso representa uma diferença considerável. E será que o sindicato não cobre esse prejuízo? Não, esse é o grande problema. Se o cobrisse, a questão não se levantaria da mesma forma. Mas por que motivo não pagam os sindicatos o dinheiro que os grevistas perdem? Pela simples razão de que há muitos mais grevistas do que pessoas sindicalizadas. É este, entre outros, o motivo por que os piquetes de greve existem.
O argumento de que o Estado ou as entidades patronais não deveriam deduzir o dinheiro dos grevistas não tem qualquer base de sustentação. Se os salários são baseados na produção dos funcionários ou dos empregados, salvo os casos de doença, parto, etc. devidamente previstos na legislação em vigor, nada pode forçar as entidades públicas ou privadas a não descontarem o não-trabalho num dia útil. Afinal, os protestos e as marchas de reivindicações podem ser igualmente organizados a um domingo, dia em que a percentagem de pessoas a trabalhar é muitíssimo menor.
Na greve geral de hoje, é natural que haja muitas vozes a protestar contra a situação. Quem é que gosta de não ter emprego? Quem é que gosta de ver o seu salário ou a sua pensão diminuídos? Quem é que aprecia os cortes nos serviços da Segurança Social? Só os masoquistas, decerto. Mais: haverá muita gente que não participa nas manifestações a concordar com os slogans que lá são repetidos. Pois. Mas para que serve a presente greve? Para um desabafo geral de descontentamento. Que efeitos terá? O efeito das palavras. E para o Governo? Sentirá o descontentamento, como é natural, mas já teve o Orçamento para o ano que vem aprovado pelo Parlamento… No fundo, financeiramente acabará por ficar parcialmente contente com a poupança de um dia de trabalho que os grevistas da Função Pública e das empresas públicas lhe oferecem. Para um Estado que está com problemas de liquidez, todo o dinheiro é pouco. Contudo, é óbvio que esta parcela de poupança é pequeníssima face à enorme perda de produção nacional que uma paralisação causada por greve ou por outra qualquer circunstância sempre acarreta. É mais uma machadada no PIB.
Para não divagar mais, concluo, frisando basicamente três pontos:
1. Os piquetes de greve ensombram, e muito, a acção dos grevistas. Deveriam, por uma questão de credibilidade das organizações, ser banidos pelas direcções sindicais.
2. Os sindicatos deveriam cobrir as despesas em que os seus associados incorrem, nomeadamente as indemnizações correspondentes à perda de um ou mais dias de trabalho.
3. Num regime democrático, as eleições são possivelmente o local mais apropriado para manifestações de descontentamento deste tipo. O voto em branco é uma das soluções, desde que ele conte efectivamente para a distribuição dos lugares no Parlamento. Este é um assunto que abordarei em ocasião mais oportuna.
Agradeço comentários, porque admito perfeitamente que não esteja a ver correctamente esta questão.
11/21/2010
A diluição da responsabilidade
O elogio e a censura actuam em palcos opostos. Contudo, são ambos tão característicos da natureza humana que não é de todo despropositado pô-los a actuar no mesmo palco. Há coisas em que são semelhantes. Por exemplo: "Elogiar toda a gente é não elogiar ninguém", lembrava o velho Samuel Johnson; censurar toda a gente é não censurar ninguém, dirá o senso comum. Seja num, seja no outro caso, dilui-se o elogio, dilui-se a censura.
Já cá voltaremos. Nalgumas festas de aniversário, causa-me sempre espanto ver que o aniversariante, após a entoação em conjunto pelos seus familiares e amigos do Parabéns a você!, bate palmas tal como os outros. Está a bater palmas a quem? A si próprio? Seria um gesto de puro narcisismo que me custa a admitir. Inclino-me generosamente a pensar que é mais um reflexo pavloviano desencadeado pelo verso final do Parabéns! Como está habituado a ir a outras festas de aniversário e a bater palmas no final, na sua própria festinha acaba por fazer o mesmo. Se fosse um acto narcisista, seria grave; assim, pode causar algum espanto, mas... Aliás, festa é festa!
Goethe, por seu lado, fez-nos notar uma outra grande verdade sobre as louvações: "Quem elogia coloca-se ao mesmo nível das pessoas cujo elogio faz". Nem mais. Aliás, muito bom orador entrecorta o seu discurso com um elogio a A ou a B, com isso recebendo uma calorosa salva de palmas, ou então no final das suas palavras pede um forte aplauso para uma determinada pessoa ou grupo, com isso recebendo a ovação global para o seu discurso, que assim termina em glória.
E a censura, vulgarmente chamada "crítica"? Essa tem características algo diferentes. Enquanto que no elogio existe um contentamento comum ao elogiador e ao elogiado, a censura termina com dois humores bem diversos: o bem-estar de quem censura e o mal-estar de quem é censurado. O amor-próprio, tanto de um como do outro, é posto à prova: o de um para se congratular a si mesmo pela sua franqueza e coragem, o do outro para se defender da melhor maneira que puder daquilo que lhe é apontado, mostrando assim igualmente a sua coragem, mas também a sua inteligência.
Dado que tanto o elogio como a censura fazem desde o início dos tempos parte da natureza humana no seu relacionamento com o "outro", são conhecidas numerosas maneiras que possibilitam a quem é censurado escapar a situações embaraçosas. "Sacudir a água do capote" é a expressão que o povo há muito arranjou para este conjunto de soluções escapatórias. É que quando se sacode a água do capote, este pode parecer que, afinal, nem molhado foi. Está sequinho, genuíno e virgem como tudo o que é virginal e puro. A mais comum das maneiras de sacudir a água do capote é através da mentira ou da inverdade, atribuindo determinado facto a outra pessoa ou, mais inteligentemente, a todo um conjunto de circunstâncias que lembram a ira dos deuses e que provocaram, por razões complexas e difíceis de entender, a situação embaraçosa a que se chegou e pela qual agora se é criticado.
Sob o ponto de vista político, em regimes ditatoriais é relativamente fácil atribuir as culpas por uma situação pouco ou nada confortável a reais ou imaginários inimigos externos que, em tenebroso conluio, terão provocado o statu quo actual. A oposição não pode falar: não lhe é dada voz para o fazer.
Em regimes democráticos, a situação é diferente. Todos podem falar. Então, o melhor método para sacudir a água do capote parece ser o de diluir as responsabilidades. Quem são os culpados da incómoda situação, para além do evidente complot da estrangeirada que, neste mundo globalizado, tem um enorme poder sobre nós? Os culpados somos nós todos. Todos, sem excepção. E não se admite que uns sejam mais ou menos do que outros. A culpa recai sobre todos nós. Uniformemente. Como é óbvio através de um exemplo fácil como o do café, o qual ficará tanto menos forte quanto mais água se lhe juntar, também aqui quantos mais arcarem com a culpa, tanto menor será a responsabilidade de cada um. E como não podemos contar com o bíblico bode expiatório (foto) que depois desaparece no deserto com todos os pecados do mundo, cada um arca com a sua quota-parte de responsabilidade, sendo implicitamente levado a pensar que, ao culpar os outros, está a culpar-se a si próprio, pelo que provavelmente o melhor é ficar calado.
A diluição da responsabilidade passa por aqui. Lembra um inteligente slogan formulado pelos ricos americanos há já umas boas décadas: "Os pobres não invejam os ricos; querem apenas ser tão ricos como eles." Se não o conseguem, de quem é a culpa? Dos pobres, de quem havia de ser?
11/19/2010
Questões de concorrência
Uma das coisas que me atraem na Matemática é a possibilidade de, em problemas, chegar através de desdobramentos simplificativos a factores ou conjuntos menos complexos, que permitem encontrar soluções pelo menos aceitáveis. Não sei bem se isto vem a propósito do que pretendo abordar mas, adiante!
Leio a notícia no jornal, que me faz pensar logo noutros exemplos. A notícia é simples. Diz, no título, que a Irlanda se recusa a mexer na taxa de IRC (sobre as empresas) em troca de eventual ajuda financeira. A pergunta coloca-se desde logo: o que tem a ver a taxa de IRC da Irlanda com o auxílio financeiro a eventualmente prestar pelos países da União Europeia àquele país? Talvez tenha. A taxa irlandesa de IRC é apenas de 12,5 por cento e tem sido crucial para atrair empresas estrangeiras. É uma taxa consideravelmente baixa (embora tenha havido frequentes variações na taxa portuguesa homóloga, creio que ela se situa nos 25 por cento). É óbvio que um imposto mais baixo atrai mais capitais. Por outras palavras, se pusermos em questão a atracção de investimentos em Portugal em comparação com a Irlanda, verificaremos que esta se encontra numa situação privilegiada.
Contudo, quando se debate ou negoceia um investimento estrangeiro de forte volume, os governos fazem o mesmo que os bancos: oferecem taxas mais favoráveis a quem traz mais vantagens. No caso da banca, a quem depositar mais dinheiro. No caso dos governos, a quem trouxer maior investimento para o país e prometa criar um maior número de empregos. É frequente que exista um tax holiday de um determinado período de tempo, i.e. um período de total isenção de IRC, que acaba por compensar a taxa em princípio mais elevada. Uma alternativa é a concessão de largos subsídios a esses investidores.
Ora, no caso da Irlanda, os seus 12,5 por cento são regularmente criticados por vários países da União Europeia, designadamente a Alemanha, o Reino Unido e a Áustria. Qual é o nome que estes países dão aos 12,5 por cento irlandeses? Chamam-lhe "concorrência desleal no mercado interno comunitário". Apetece por vezes dizer: olha quem fala! Pois não é verdade que cada um dos países utiliza para si truques que não são tão visíveis mas que acabam por ser tão eficazes como uma taxa reduzida? Seja como for, à Alemanha e ao Reino Unido causa engulhos o facto de a Irlanda praticar a taxa de 12,5 por cento, na medida em que as suas são mais elevadas e portanto ambos os países ficam a perder nesse domínio. E como eles vão entrar no bail-out salvador da Irlanda...
Esta é uma história que me traz à memória o caso da abolição da escravatura. Tal como os portugueses e outros povos, os ingleses praticaram largamente o transporte de escravos. No seu caso, para a América, para ilhas como a Jamaica e outros locais. Os escravos constituíam mão-de-obra quase gratuita. Os seus custos eram muito inferiores aos praticados na Inglaterra, por exemplo, com mão-de-obra branca. Com a Revolução Industrial, a que se juntou a Revolução Agrária e a consequente menor necessidade de pessoas para o labor nas fábricas e nos campos, os ingleses começaram a precisar menos de escravos – apenas nas suas colónias. Só que algumas destas colónias, como foi o caso dos Estados Unidos, se tornaram independentes, pelo que deixaram de ser um problema inglês. Aí, a poderosa Inglaterra decidiu abolir a escravatura no início do século XIX. Porém, ficava com um problema: se os outros países directamente concorrentes continuassem a praticar a escravatura, esses países passariam a auferir de uma importante vantagem competitiva: conseguiriam matérias-primas como o açúcar, o cacau, o algodão, a preços mais baixos do que os seus. Para que isto não sucedesse, a Inglaterra exerceu forte pressão sobre os países seus aliados para que terminassem a escravatura. Portugal esteve incluído nesse grupo.
Aqueles que leram o romance Equador ou viram a série televisiva com o mesmo nome lembram-se de que a questão à volta da colónia portuguesa de S. Tomé era exactamente essa: os ingleses da Cadbury queriam à viva força que a escravatura terminasse para que os portugueses não usufruíssem de vantagem na venda do seu chocolate ou cacau. É evidente que o que salientavam eram os direitos humanos, mas isto é o que sempre se faz em casos como este: invocam-se razões nobres para colher benefícios materiais concretos. Além disso, podiam exercer a referida pressão porque eram mais fortes, possuíam uma armada fortíssima e tinham a possibilidade real de exercer acções extremas de retaliação.
Este problema, que é do passado, traz à baila um outro, que é muito actual: a desvalorização que cada país tenta fazer da sua moeda para que as suas exportações aumentem. Portugal, por exemplo, teria outra capacidade de aumentar as suas exportações se pudesse desvalorizar unilateralmente o euro, o que se sabe ser impossível. Em crises anteriores – e não foram poucas -, Portugal recorreu sempre à desvalorização da sua moeda. Embora estivesse a retirar poder de compra aos portugueses, que no entanto não viam alteração numérica nos seus cheques e apenas sentiam a diferença no seu poder aquisitivo, os sucessivos Governos propalavam invariavelmente as vantagens da medida: aumento das exportações, aumento do número de turistas estrangeiros e da respectiva receita turística.
Presentemente, assistimos no mundo à existência de vários potentados de grandes dimensões, como os Estados Unidos da América, a China, a União Europeia, a Índia, que procuram exportar e se queixam de concorrência desleal através da moeda. A guerra cambial entre os EUA e a China já dura há anos, com os EUA a fazerem pressão sobre o governo chinês para que valorize a sua moeda, que estará com um valor abaixo do seu valor real. O problema não é, porém, tão simples como isso, e possivelmente está longe de ser a panaceia para os restantes males, como a história económica tem demonstrado em casos anteriores. A China só valorizará a sua moeda quando souber que a Índia, a Coreia, o Vietname, a Indonésia, etc. irão fazer o mesmo; caso contrário, fica a perder e os investimentos estrangeiros poderão encaminhar-se mais para os países seus concorrentes. E quem gosta de perder?
Afinal, somos todos bons quando não nos tocam no bolso. Se o fizerem, protestamos. À mesa, a tomarmos as nossas refeições, é possível que façamos exactamente o mesmo com a comida. Se virmos alguém a servir-se muito substancialmente da travessa que contém comidinha que adoramos, franzimos o sobrolho ou protestamos mesmo em voz alta. Diremos qualquer coisa como: "Estás-te a servir tanto, com medo que a comida acabe?" Na realidade, nós é que estamos com medo de que a comida não vá chegar em doses tão substanciais para nós. É sempre assim. Um problema que parece complexo como o do IRC da Irlanda, ou o do cacau de S. Tomé, ou o da escravatura versus a sua abolição, ou o da valorização/desvalorização da moeda, reduz-se muito à escala do comer à mesa, um acto diário o mais simples e comum possível. Já agora, se não gostarmos do prato de que o outro se está a servir abundantemente e por esse motivo tivermos especialmente para nós um bifinho com batatas fritas, até poderemos censurar quem faz o reparo crítico: "Tu é que estás com medo que a comida não chegue! E nunca te ensinaram que é feio olhar para o prato dos outros?!" É a nobreza do nosso gesto em todo o seu esplendor. Pudera! Quem está de fora é sempre bonzinho.
Leio a notícia no jornal, que me faz pensar logo noutros exemplos. A notícia é simples. Diz, no título, que a Irlanda se recusa a mexer na taxa de IRC (sobre as empresas) em troca de eventual ajuda financeira. A pergunta coloca-se desde logo: o que tem a ver a taxa de IRC da Irlanda com o auxílio financeiro a eventualmente prestar pelos países da União Europeia àquele país? Talvez tenha. A taxa irlandesa de IRC é apenas de 12,5 por cento e tem sido crucial para atrair empresas estrangeiras. É uma taxa consideravelmente baixa (embora tenha havido frequentes variações na taxa portuguesa homóloga, creio que ela se situa nos 25 por cento). É óbvio que um imposto mais baixo atrai mais capitais. Por outras palavras, se pusermos em questão a atracção de investimentos em Portugal em comparação com a Irlanda, verificaremos que esta se encontra numa situação privilegiada.
Contudo, quando se debate ou negoceia um investimento estrangeiro de forte volume, os governos fazem o mesmo que os bancos: oferecem taxas mais favoráveis a quem traz mais vantagens. No caso da banca, a quem depositar mais dinheiro. No caso dos governos, a quem trouxer maior investimento para o país e prometa criar um maior número de empregos. É frequente que exista um tax holiday de um determinado período de tempo, i.e. um período de total isenção de IRC, que acaba por compensar a taxa em princípio mais elevada. Uma alternativa é a concessão de largos subsídios a esses investidores.
Ora, no caso da Irlanda, os seus 12,5 por cento são regularmente criticados por vários países da União Europeia, designadamente a Alemanha, o Reino Unido e a Áustria. Qual é o nome que estes países dão aos 12,5 por cento irlandeses? Chamam-lhe "concorrência desleal no mercado interno comunitário". Apetece por vezes dizer: olha quem fala! Pois não é verdade que cada um dos países utiliza para si truques que não são tão visíveis mas que acabam por ser tão eficazes como uma taxa reduzida? Seja como for, à Alemanha e ao Reino Unido causa engulhos o facto de a Irlanda praticar a taxa de 12,5 por cento, na medida em que as suas são mais elevadas e portanto ambos os países ficam a perder nesse domínio. E como eles vão entrar no bail-out salvador da Irlanda...
Esta é uma história que me traz à memória o caso da abolição da escravatura. Tal como os portugueses e outros povos, os ingleses praticaram largamente o transporte de escravos. No seu caso, para a América, para ilhas como a Jamaica e outros locais. Os escravos constituíam mão-de-obra quase gratuita. Os seus custos eram muito inferiores aos praticados na Inglaterra, por exemplo, com mão-de-obra branca. Com a Revolução Industrial, a que se juntou a Revolução Agrária e a consequente menor necessidade de pessoas para o labor nas fábricas e nos campos, os ingleses começaram a precisar menos de escravos – apenas nas suas colónias. Só que algumas destas colónias, como foi o caso dos Estados Unidos, se tornaram independentes, pelo que deixaram de ser um problema inglês. Aí, a poderosa Inglaterra decidiu abolir a escravatura no início do século XIX. Porém, ficava com um problema: se os outros países directamente concorrentes continuassem a praticar a escravatura, esses países passariam a auferir de uma importante vantagem competitiva: conseguiriam matérias-primas como o açúcar, o cacau, o algodão, a preços mais baixos do que os seus. Para que isto não sucedesse, a Inglaterra exerceu forte pressão sobre os países seus aliados para que terminassem a escravatura. Portugal esteve incluído nesse grupo.
Aqueles que leram o romance Equador ou viram a série televisiva com o mesmo nome lembram-se de que a questão à volta da colónia portuguesa de S. Tomé era exactamente essa: os ingleses da Cadbury queriam à viva força que a escravatura terminasse para que os portugueses não usufruíssem de vantagem na venda do seu chocolate ou cacau. É evidente que o que salientavam eram os direitos humanos, mas isto é o que sempre se faz em casos como este: invocam-se razões nobres para colher benefícios materiais concretos. Além disso, podiam exercer a referida pressão porque eram mais fortes, possuíam uma armada fortíssima e tinham a possibilidade real de exercer acções extremas de retaliação.
Este problema, que é do passado, traz à baila um outro, que é muito actual: a desvalorização que cada país tenta fazer da sua moeda para que as suas exportações aumentem. Portugal, por exemplo, teria outra capacidade de aumentar as suas exportações se pudesse desvalorizar unilateralmente o euro, o que se sabe ser impossível. Em crises anteriores – e não foram poucas -, Portugal recorreu sempre à desvalorização da sua moeda. Embora estivesse a retirar poder de compra aos portugueses, que no entanto não viam alteração numérica nos seus cheques e apenas sentiam a diferença no seu poder aquisitivo, os sucessivos Governos propalavam invariavelmente as vantagens da medida: aumento das exportações, aumento do número de turistas estrangeiros e da respectiva receita turística.
Presentemente, assistimos no mundo à existência de vários potentados de grandes dimensões, como os Estados Unidos da América, a China, a União Europeia, a Índia, que procuram exportar e se queixam de concorrência desleal através da moeda. A guerra cambial entre os EUA e a China já dura há anos, com os EUA a fazerem pressão sobre o governo chinês para que valorize a sua moeda, que estará com um valor abaixo do seu valor real. O problema não é, porém, tão simples como isso, e possivelmente está longe de ser a panaceia para os restantes males, como a história económica tem demonstrado em casos anteriores. A China só valorizará a sua moeda quando souber que a Índia, a Coreia, o Vietname, a Indonésia, etc. irão fazer o mesmo; caso contrário, fica a perder e os investimentos estrangeiros poderão encaminhar-se mais para os países seus concorrentes. E quem gosta de perder?
Afinal, somos todos bons quando não nos tocam no bolso. Se o fizerem, protestamos. À mesa, a tomarmos as nossas refeições, é possível que façamos exactamente o mesmo com a comida. Se virmos alguém a servir-se muito substancialmente da travessa que contém comidinha que adoramos, franzimos o sobrolho ou protestamos mesmo em voz alta. Diremos qualquer coisa como: "Estás-te a servir tanto, com medo que a comida acabe?" Na realidade, nós é que estamos com medo de que a comida não vá chegar em doses tão substanciais para nós. É sempre assim. Um problema que parece complexo como o do IRC da Irlanda, ou o do cacau de S. Tomé, ou o da escravatura versus a sua abolição, ou o da valorização/desvalorização da moeda, reduz-se muito à escala do comer à mesa, um acto diário o mais simples e comum possível. Já agora, se não gostarmos do prato de que o outro se está a servir abundantemente e por esse motivo tivermos especialmente para nós um bifinho com batatas fritas, até poderemos censurar quem faz o reparo crítico: "Tu é que estás com medo que a comida não chegue! E nunca te ensinaram que é feio olhar para o prato dos outros?!" É a nobreza do nosso gesto em todo o seu esplendor. Pudera! Quem está de fora é sempre bonzinho.
11/17/2010
NATO e armamento
Porque será que, com uma certa antecipação a reuniões da NATO, se começa a falar em ameaças de ataques terroristas? Já não é a primeira vez que tal sucede. Os rumores começaram há vários meses. Fizeram capas de revistas e jornais. Foram quase de certeza propalados na televisão que não vi. Criou-se a onda. Agora intensifica-se quando a cimeira está prestes a começar. Será que é porque nas comitivas dos países participantes se integram elementos que pretendem vender armamento? Grandes negócios em vista, favorecendo como sempre as nações mais ricas e descapitalizando as mais pobres?
Não me esqueço de uma realidade que não tem que ver apenas com a NATO, mas com o mundo em geral. A afirmação seguinte vem de um conhecido médico português: "Estamos num mundo em que os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que deveriam zelar e velar mais do que quaisquer outros pela paz e pela segurança, são os maiores produtores e vendedores de armas." George Steiner referiu-se-lhes de forma directa e brutal: "Os maiores criminosos de guerra desde Hitler são os vendedores de armas, os países que as vendem."
Não me esqueço de uma realidade que não tem que ver apenas com a NATO, mas com o mundo em geral. A afirmação seguinte vem de um conhecido médico português: "Estamos num mundo em que os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que deveriam zelar e velar mais do que quaisquer outros pela paz e pela segurança, são os maiores produtores e vendedores de armas." George Steiner referiu-se-lhes de forma directa e brutal: "Os maiores criminosos de guerra desde Hitler são os vendedores de armas, os países que as vendem."
11/14/2010
Desemprego
"O desemprego são os ócios do ofício" é uma das frases mais cínicas que conheço. Embora aprecie o sentido de humor de algumas pessoas, considero que há determinados assuntos que são tão sérios que não devem ser alvo de jogos de palavras. É que o desemprego pode dar a um homem ou a uma mulher ainda jovem a sensação de rejeição total que o mundo faz de si. Entenda-se bem o que isso significa!
Ouvi uma vez um homem de quarenta e tal anos, desempregado e com pouca esperança de voltar a arranjar emprego na sua terra, onde vivia com mulher e dois filhos, dizer em voz baixa: "O dia-a-dia de um desempregado é como estar preso em liberdade." Impressionou-me muito a frase e a forma como sincera e lancinante como foi dita. Mas não discordei.
Calcula-se, dizia Fernando Dacosta em 2003, "que de cada cinco crianças que nascem hoje, três jamais irão arranjar emprego. O trabalho que se desenvolverá é o trabalho para os pobres, para os jovens, para os imigrantes, para os de meia-idade e meia-indiferenciação, gerando-se situações comparáveis às do século XIX. É a miséria que se mundializa, não é a riqueza." Talvez sejam palavras demasiado pessimistas, mas são pelo menos produto daquilo que tem vindo a suceder em resultado da transferência maciça de empregos do hemisfério norte para o hemisfério sul, basicamente em resultado dos custos de produção, que na Ásia são substancialmente inferiores, como todos sabemos. O que qualquer negociante fundamentalmente pretende é ganhar dinheiro. Ora, conseguir comprar a preços da China e lograr vender a preços da Europa representa uma maquia muito considerável de margem de lucro – que possivelmente será depois encaminhada para uma conta num centro offshore.
Do regozijo do negociante ao desespero do desempregado ocidental vai um abismo de distância. Contudo, pode suceder que ambos vivam na mesma cidade e passem um pelo outro sem se conhecerem. Pensando bem, é de crer que nem um nem outro gostassem de travar conhecimento entre si.
Ouvi uma vez um homem de quarenta e tal anos, desempregado e com pouca esperança de voltar a arranjar emprego na sua terra, onde vivia com mulher e dois filhos, dizer em voz baixa: "O dia-a-dia de um desempregado é como estar preso em liberdade." Impressionou-me muito a frase e a forma como sincera e lancinante como foi dita. Mas não discordei.
Calcula-se, dizia Fernando Dacosta em 2003, "que de cada cinco crianças que nascem hoje, três jamais irão arranjar emprego. O trabalho que se desenvolverá é o trabalho para os pobres, para os jovens, para os imigrantes, para os de meia-idade e meia-indiferenciação, gerando-se situações comparáveis às do século XIX. É a miséria que se mundializa, não é a riqueza." Talvez sejam palavras demasiado pessimistas, mas são pelo menos produto daquilo que tem vindo a suceder em resultado da transferência maciça de empregos do hemisfério norte para o hemisfério sul, basicamente em resultado dos custos de produção, que na Ásia são substancialmente inferiores, como todos sabemos. O que qualquer negociante fundamentalmente pretende é ganhar dinheiro. Ora, conseguir comprar a preços da China e lograr vender a preços da Europa representa uma maquia muito considerável de margem de lucro – que possivelmente será depois encaminhada para uma conta num centro offshore.
Do regozijo do negociante ao desespero do desempregado ocidental vai um abismo de distância. Contudo, pode suceder que ambos vivam na mesma cidade e passem um pelo outro sem se conhecerem. Pensando bem, é de crer que nem um nem outro gostassem de travar conhecimento entre si.
11/10/2010
A Fotografia
Por vezes há casos em que ao chegarmos perto de um monumento importante, que já vimos variadíssimas vezes reproduzido em livros, revistas e jornais, não temos já aquela sensação de estar a descobrir seja o que for porque, no fundo, aquele objecto nos é tão familiar que agora estamos apenas ali perto dele. A magia desapareceu. O déjà vu é real.
Noutros casos, porém, existem surpresas verdadeiras. Há poucos dias, deparei no jornal com a comparação entre uma fotografia antiga de um determinado monumento e o seu aspecto moderno. Saber já eu sabia que ao velho monumento tinham sido dados vários tratos de polé: tinha servido para armazenar artigos vários, entre os quais parece que munições, e tinha inclusivamente servido durante algum tempo como matadouro. Devo em princípio acreditar, porque quem escreve tem a obrigação de referir a documentação na qual se baseou para fazer as suas afirmações. Mas, apesar dessas explicações e desse lamentável mau uso, não somos geralmente capazes de imaginar o aspecto real que o monumento em questão teria tido nesses tempos recuados.
Eis que agora me chega esta foto, para mim inédita. Surpreendeu-me, de facto. Dificilmente imaginaria o monumento assim. A fotografia que aqui reproduzo, tirada do jornal, é naturalmente a preto e branco, e foi feita em 1869 por um fotógrafo francês de nome J. Laurent. Se quem está a ler estas linhas não viu o jornal em questão, é capaz de descobrir qual é o monumento que lá se esconde?
11/09/2010
Schadenfreude e Fair-Play
Que me perdoe a Isabel, que não gosta de futebol, mas vou voltar ao tema num post que não vai ser longo. Presentemente, os famosos três FFs, (Fado, Fátima e Futebol) tão criticados no regime salazarista, não só se mantêm como se têm acentuado. No que ao futebol diz respeito, as transmissões televisivas fizeram aumentar a exposição das pessoas ao desporto-espectáculo na sua própria casa. De sexta-feira à noite até segunda-feira igualmente à noite, há jogos do campeonato principal português. E quem não gosta do futebol nacional, passa para o estrangeiro, onde estão os melhores jogadores (entre os quais muitos portugueses).
Ora, no passado fim-de-semana futebolístico havia um jogo-grande ao domingo e um outro, menor mas também importante, na segunda-feira. A rivalidade entre o Norte e o Sul acendeu-se com o combate dos dois chefes: o campeão habitual, que é o FC Porto, e o campeão actual, que é o Benfica. Um jogo desta ordem é sempre um tira-teimas para ver quem é o melhor. As duas cidades maiores do país estão em compita também: Lisboa versus Porto. Os resultados costumam ser equilibrados. Neste domingo, contudo, não houve qualquer equilíbrio. Sem apelo nem agravo, os do Porto infligiram cinco golos aos benfiquistas, que ficaram a zero.
É aqui que vem a Schadenfreude, uma daquelas poucas palavras alemãs que passaram para o vocabulário internacional. Schadenfreude significa o regozijo que alguém sente perante o desaire de um rival ou inimigo. Os sportinguistas embandeiraram em arco e na segunda-feira de manhã cumprimentaram os seus colegas benfiquistas com o habitual aperto-de-mão, desta vez maldosamente enfeitado com as palavras “Mais cinco!” e um risinho malandro ao estilo do Muttley.
À noite o Sporting jogava para chegar ao segundo lugar. Contra uma equipa do Norte, i.e. tratava-se de mais um Norte-Sul. Jogado em casa do Sporting. Os adeptos sportinguistas vibraram com o seu primeiro golo, que suscitou algumas dúvidas perante a possibilidade de partir de um fora-de-jogo. Foi dado o benefício da dúvida ao atacante. O Sporting até jogava bem. A outra equipa, vimaranense, parecia algo desnorteada. E mais desnorteada decerto ficou quando surgiu o segundo golo do Sporting, conseguido através de um canto directo que, porém, não fez a bola entrar na baliza. Foi um falso golo. Mas como o árbitro o validou, passou a contar. Os vimaranenses protestaram com razão e levaram cartões amarelos.
Descansaram os sportinguistas na segunda parte. Eis senão quando entra um novo jogador para os nortenhos. A equipa visitante empertiga-se. Estão motivados para pelo menos vingar a injustiça daquele falso golo. Há entretanto um jogador sportinguista que pontapeia um adversário e é justamente expulso. De súbito, não só há alma nova na equipa visitante como o desnorte acaba por atacar a equipa do Sul que, por sua própria culpa, joga apenas com dez. E, num curtíssimo espaço de tempo, os visitantes marcam três golos. Vencem a partida.
A Schadenfreude sentida pelos sportinguistas na véspera transforma-se em monco caído, mas para os mais desportistas a existência de um golo injustamente validado contra os visitantes também tinha caído muito mal. Esses aceitaram a derrota com outra atitude, aquela que diz que o fair-play é uma coisa linda mas tem um pequeno senão: é preciso perder para o mostrar. Tiveram ocasião para o fazer.
Além disso, todos puderam ver uma, duas, três, quatro vezes o treinador da equipa do Sporting atrapalhado, com um tique que possivelmente lhe vem de miúdo: colocar o dedo entre os lábios e o nariz, quase como se fosse a chuchar. Também ele ficou com boas razões para o fazer.
Ora, no passado fim-de-semana futebolístico havia um jogo-grande ao domingo e um outro, menor mas também importante, na segunda-feira. A rivalidade entre o Norte e o Sul acendeu-se com o combate dos dois chefes: o campeão habitual, que é o FC Porto, e o campeão actual, que é o Benfica. Um jogo desta ordem é sempre um tira-teimas para ver quem é o melhor. As duas cidades maiores do país estão em compita também: Lisboa versus Porto. Os resultados costumam ser equilibrados. Neste domingo, contudo, não houve qualquer equilíbrio. Sem apelo nem agravo, os do Porto infligiram cinco golos aos benfiquistas, que ficaram a zero.
É aqui que vem a Schadenfreude, uma daquelas poucas palavras alemãs que passaram para o vocabulário internacional. Schadenfreude significa o regozijo que alguém sente perante o desaire de um rival ou inimigo. Os sportinguistas embandeiraram em arco e na segunda-feira de manhã cumprimentaram os seus colegas benfiquistas com o habitual aperto-de-mão, desta vez maldosamente enfeitado com as palavras “Mais cinco!” e um risinho malandro ao estilo do Muttley.
À noite o Sporting jogava para chegar ao segundo lugar. Contra uma equipa do Norte, i.e. tratava-se de mais um Norte-Sul. Jogado em casa do Sporting. Os adeptos sportinguistas vibraram com o seu primeiro golo, que suscitou algumas dúvidas perante a possibilidade de partir de um fora-de-jogo. Foi dado o benefício da dúvida ao atacante. O Sporting até jogava bem. A outra equipa, vimaranense, parecia algo desnorteada. E mais desnorteada decerto ficou quando surgiu o segundo golo do Sporting, conseguido através de um canto directo que, porém, não fez a bola entrar na baliza. Foi um falso golo. Mas como o árbitro o validou, passou a contar. Os vimaranenses protestaram com razão e levaram cartões amarelos.
Descansaram os sportinguistas na segunda parte. Eis senão quando entra um novo jogador para os nortenhos. A equipa visitante empertiga-se. Estão motivados para pelo menos vingar a injustiça daquele falso golo. Há entretanto um jogador sportinguista que pontapeia um adversário e é justamente expulso. De súbito, não só há alma nova na equipa visitante como o desnorte acaba por atacar a equipa do Sul que, por sua própria culpa, joga apenas com dez. E, num curtíssimo espaço de tempo, os visitantes marcam três golos. Vencem a partida.
A Schadenfreude sentida pelos sportinguistas na véspera transforma-se em monco caído, mas para os mais desportistas a existência de um golo injustamente validado contra os visitantes também tinha caído muito mal. Esses aceitaram a derrota com outra atitude, aquela que diz que o fair-play é uma coisa linda mas tem um pequeno senão: é preciso perder para o mostrar. Tiveram ocasião para o fazer.
Além disso, todos puderam ver uma, duas, três, quatro vezes o treinador da equipa do Sporting atrapalhado, com um tique que possivelmente lhe vem de miúdo: colocar o dedo entre os lábios e o nariz, quase como se fosse a chuchar. Também ele ficou com boas razões para o fazer.
11/05/2010
Gestão opaca e ruinosa
Era uma vez uma velha senhora, viúva e sem filhos, que estava disposta a vender a sua propriedade fronteira ao mar. Dificilmente se arranjaria uma melhor localização. Com a galopante evolução dos preços, a senhora não fazia uma ideia nem aproximada do valor pelo qual a deveria vender. Tratava-se de uma casa de dois pisos, com um jardim - por sinal não muito bem tratado - a toda a volta. Pensou, com justeza, que como a casa já tinha sido construída há décadas e, devido à proximidade do mar, estava com uma certa urgência de obras, talvez o destino do local onde tinha morado no Verão com o marido fosse deitar tudo abaixo. Aí construiriam possivelmente um outro prédio de raiz. Falou para o seu advogado, que já lhe tratara de vários assuntos desde que o marido falecera. O advogado disse-lhe que iria mandar pôr no local uma placa a anunciar que a propriedade estava à venda.
Perante a placa, não demorou muito a aparecer um interessado, residente numa povoação das proximidades. Essa pessoa era o capitalista-financiador de uma sociedade de dois, em que o outro era o empreiteiro-construtor. A sociedade tinha também o seu próprio advogado.
Por sugestão dos promitentes compradores, logo os dois advogados se puseram em contacto. Conversaram e acabaram por entender-se. A senhora vendeu a sua velha residência pelo "preço possível", de facto baixíssimo em termos de mercado mas "muito razoável", segundo o seu advogado. O sócio capitalista arranjou maneira de indirectamente pagar ao advogado da senhora a quantia substancial que lhe tinha sido prometida. A senhora, enganada quanto ao montante justo, foi viver para o seu apartamento em Lisboa, com uns poucos milhares mais na sua conta bancária. Segundo o advogado, a sua cliente ficou contente por se ver finalmente livre da casa, à qual não vinha já durante o Inverno por causa do reumático que lhe afectava os ossos.
Ficaram todos satisfeitos? Aparentemente, sim. Mas só por logro. Se tivesse sabido da negociata entre ambos os advogados e os compradores e da falta de lealdade que esse negócio envolveu, a senhora teria ficado zangadíssima e deixaria de acreditar na seriedade das pessoas. Acho que nunca veio a saber. Faleceu há cerca de 15 anos. Esta história, que me foi contada pelo construtor depois de ter vendido todos os 13 apartamentos e os quatro estabelecimentos comerciais que conseguiu construir no local, nada tem de ficção. É cem por cento verídica.
E vem agora a propósito de quê? Pois vem a propósito da gestão danosa da venda da propriedade, tal como foi feita pelo advogado da senhora. Prejudicou a sua cliente. Dir-me-ão: há tantos casos assim! É verdade. Infelizmente. Mas ele foi desleal.
Vamos agora imaginar que em vez da senhora temos o Estado português. Como todos sabemos, o Estado entrega àqueles que o governam a gestão dos seus bens, dos seus negócios e, de uma maneira geral, toda a sua actividade. Num regime democrático como o nosso, os governantes são eleitos pelo povo. O povo, que é trabalhador e contribuinte do Estado através dos impostos que lhe fazem pagar, confere-lhes legitimidade através do seu voto. Esperam os eleitores que os gestores da coisa pública procedam sempre de forma honesta, como aliás se comprometem a fazer quando assinam o livro de tomada oficial de posse na Presidência da República. O juramento que têm obrigatoriamente de prestar é simples: "Juro por minha honra que cumprirei com lealdade as funções que me são confiadas."
A lealdade perante os contribuintes implica necessariamente transparência nos actos e prestação de contas fiáveis. Exceptuam-se os casos reservados, como os relacionados com serviços secretos. Ora, as revelações que vêm continuamente surgindo sobre as contas públicas nacionais têm deixado o país boquiaberto. Como é possível que nenhuma mensagem de alerta tivesse sido lançada anteriormente pelo Governo? Como se justifica a manutenção do clássico cenário róseo, em que tudo está no melhor dos mundos? Em que medida é que isso não prejudicou o país?
Foi nos finais do passado mês de Outubro publicado no Porto um livro curioso, que já tive ocasião de folhear. Intitula-se Como o Estado Gasta o Nosso Dinheiro. O seu autor é um ex-juiz do Tribunal de Contas (TC), Carlos Moreno. Destaco aquilo que para o jornal Público, que entrevistou o autor, parece igualmente ser o mais importante: as chamadas "parcerias público-privadas" (PPP). Já todos ouvimos falar destas parcerias, fosse a propósito da gestão do hospital Amadora-Sintra, fosse da construção da Ponte Vasco da Gama, fosse ainda das famosas SCUT. Há 18 anos que se praticam estas parcerias, que são, como seria previsível, objecto de um contrato firmado entre o Estado e o consórcio privado que avança com o dinheiro. Digamos que o Governo, ansioso por mostrar obra feita e podendo lançar mão de fundos europeus, sente que não possui a disponibilidade financeira para avançar sozinho com o projecto e recorre a instituições privadas. A questão que se coloca aqui é se o Governo acautela suficientemente bem os interesses do Estado ou se, pelo contrário, não zela esses interesses como deveria.
Segundo Carlos Moreno, os sucessivos governos que ao longo de quase duas décadas têm entrado nestas PPP não têm acautelado da maneira mais correcta nem mais transparente os superiores interesses da Nação. Existirão, como é normal, casos mais escandalosos e outros mais aceitáveis, mas fica-se a saber que, na generalidade, os bancos financiadores exigem taxas cada vez mais elevadas de remuneração e só aceitam financiar PPP quando o sector público assume riscos que na figura original eram típicos do parceiro privado. Se o Estado satisfizer as condições propostas, a banca prefere aplicar os seus fundos disponíveis em PPP que são garantidas pelo Estado a canalizá-las para a economia das PME e das famílias. Não se poderá dizer que a culpa seja de assacar à banca, que faz o seu melhor para garantir bons réditos para os seus accionistas. Afinal, desempenha o seu papel. O que não se pode admitir é que o Estado embarque em aventuras que resultem em custos elevados para os contribuintes, actuais e futuros, e com isso permita lucros igualmente elevados para os privados financiadores.
Somos informados pelo Dr. Carlos Moreno que o Estado tem recorrido desde o início destas PPP a consultores externos, pagos a peso de ouro. Antes de afirmar que presentemente o Estado já possui técnicos reputados em várias instituições, como por exemplo na unidade de PPP da Parpública, lembra que a experiência adquirida por esses consultores externos acaba por não ficar no Estado e, pelo contrário, se queda no sector privado. À custa dos contribuintes, como é evidente.
Quanto às SCUT, os contratos leoninos são os feitos pelas instituições financiadoras. Sem riscos. Mesmo que não haja o movimento que cálculos optimistas previam, as entidades privadas negoceiam contratualmente uma taxa fixa independente do tráfego que se registe.
A concluir, Carlos Moreno salienta aquilo com que não posso deixar de concordar em absoluto: "A palavra responsabilidade é inerente a quem exerce cargos em representação do contribuinte e a quem gere um bem escasso como é o dinheiro. Quem exerce esses cargos tem a obrigação indeclinável de contar a verdade com transparência. Não deve apenas apresentar o resultado contabilístico de uma gestão. Tem de dizer o que se gastou, por que se gastou, quanto é que se vai gastar, quanto é que vai custar. E não basta dizê-lo com frases de retórica política, mas com explicações acessíveis ao cidadão médio, que é quem paga a grande factura do despesismo do Estado."
Gostei de ver a postura de Carlos Moreno, assim como tenho apreciado ao longo dos anos a postura do Prof. Oliveira Martins, Presidente do TC. Carlos Moreno tem 70 anos. Jubilou-se no presente ano de 2010. Trabalhou para o Estado durante 44 anos. Foi o primeiro juiz português a integrar o Tribunal de Contas Europeu. Assinou mais de cem relatórios de auditoria, analisou os grandes contratos de empreitadas de obras públicas e grandes eventos nacionais.
Sabendo-se da promiscuidade que existe entre os sectores públicos e privados, não raramente com antigos governantes a desempenharem funções na administração de importantes empresas privadas, é bom que nos questionemos em que medida a lealdade jurada está sempre presente. Onde está a lealdade primeira: à nação, ao partido, a amigos do partido? Ou, num jogo de palavras que já repeti várias vezes: qual é a ética praticada? A ética de valores ou a ética de favores?
Embora estejamos num caso de "depois da casa arrombada, trancas à porta", em sinal de protesto exijamos mais. E, quanto a votar, poderemos sempre votar de forma a não legitimar quem não nos merece confiança. Mas este será tema de um outro post, em ocasião mais oportuna.
Perante a placa, não demorou muito a aparecer um interessado, residente numa povoação das proximidades. Essa pessoa era o capitalista-financiador de uma sociedade de dois, em que o outro era o empreiteiro-construtor. A sociedade tinha também o seu próprio advogado.
Por sugestão dos promitentes compradores, logo os dois advogados se puseram em contacto. Conversaram e acabaram por entender-se. A senhora vendeu a sua velha residência pelo "preço possível", de facto baixíssimo em termos de mercado mas "muito razoável", segundo o seu advogado. O sócio capitalista arranjou maneira de indirectamente pagar ao advogado da senhora a quantia substancial que lhe tinha sido prometida. A senhora, enganada quanto ao montante justo, foi viver para o seu apartamento em Lisboa, com uns poucos milhares mais na sua conta bancária. Segundo o advogado, a sua cliente ficou contente por se ver finalmente livre da casa, à qual não vinha já durante o Inverno por causa do reumático que lhe afectava os ossos.
Ficaram todos satisfeitos? Aparentemente, sim. Mas só por logro. Se tivesse sabido da negociata entre ambos os advogados e os compradores e da falta de lealdade que esse negócio envolveu, a senhora teria ficado zangadíssima e deixaria de acreditar na seriedade das pessoas. Acho que nunca veio a saber. Faleceu há cerca de 15 anos. Esta história, que me foi contada pelo construtor depois de ter vendido todos os 13 apartamentos e os quatro estabelecimentos comerciais que conseguiu construir no local, nada tem de ficção. É cem por cento verídica.
E vem agora a propósito de quê? Pois vem a propósito da gestão danosa da venda da propriedade, tal como foi feita pelo advogado da senhora. Prejudicou a sua cliente. Dir-me-ão: há tantos casos assim! É verdade. Infelizmente. Mas ele foi desleal.
Vamos agora imaginar que em vez da senhora temos o Estado português. Como todos sabemos, o Estado entrega àqueles que o governam a gestão dos seus bens, dos seus negócios e, de uma maneira geral, toda a sua actividade. Num regime democrático como o nosso, os governantes são eleitos pelo povo. O povo, que é trabalhador e contribuinte do Estado através dos impostos que lhe fazem pagar, confere-lhes legitimidade através do seu voto. Esperam os eleitores que os gestores da coisa pública procedam sempre de forma honesta, como aliás se comprometem a fazer quando assinam o livro de tomada oficial de posse na Presidência da República. O juramento que têm obrigatoriamente de prestar é simples: "Juro por minha honra que cumprirei com lealdade as funções que me são confiadas."
A lealdade perante os contribuintes implica necessariamente transparência nos actos e prestação de contas fiáveis. Exceptuam-se os casos reservados, como os relacionados com serviços secretos. Ora, as revelações que vêm continuamente surgindo sobre as contas públicas nacionais têm deixado o país boquiaberto. Como é possível que nenhuma mensagem de alerta tivesse sido lançada anteriormente pelo Governo? Como se justifica a manutenção do clássico cenário róseo, em que tudo está no melhor dos mundos? Em que medida é que isso não prejudicou o país?
Foi nos finais do passado mês de Outubro publicado no Porto um livro curioso, que já tive ocasião de folhear. Intitula-se Como o Estado Gasta o Nosso Dinheiro. O seu autor é um ex-juiz do Tribunal de Contas (TC), Carlos Moreno. Destaco aquilo que para o jornal Público, que entrevistou o autor, parece igualmente ser o mais importante: as chamadas "parcerias público-privadas" (PPP). Já todos ouvimos falar destas parcerias, fosse a propósito da gestão do hospital Amadora-Sintra, fosse da construção da Ponte Vasco da Gama, fosse ainda das famosas SCUT. Há 18 anos que se praticam estas parcerias, que são, como seria previsível, objecto de um contrato firmado entre o Estado e o consórcio privado que avança com o dinheiro. Digamos que o Governo, ansioso por mostrar obra feita e podendo lançar mão de fundos europeus, sente que não possui a disponibilidade financeira para avançar sozinho com o projecto e recorre a instituições privadas. A questão que se coloca aqui é se o Governo acautela suficientemente bem os interesses do Estado ou se, pelo contrário, não zela esses interesses como deveria.
Segundo Carlos Moreno, os sucessivos governos que ao longo de quase duas décadas têm entrado nestas PPP não têm acautelado da maneira mais correcta nem mais transparente os superiores interesses da Nação. Existirão, como é normal, casos mais escandalosos e outros mais aceitáveis, mas fica-se a saber que, na generalidade, os bancos financiadores exigem taxas cada vez mais elevadas de remuneração e só aceitam financiar PPP quando o sector público assume riscos que na figura original eram típicos do parceiro privado. Se o Estado satisfizer as condições propostas, a banca prefere aplicar os seus fundos disponíveis em PPP que são garantidas pelo Estado a canalizá-las para a economia das PME e das famílias. Não se poderá dizer que a culpa seja de assacar à banca, que faz o seu melhor para garantir bons réditos para os seus accionistas. Afinal, desempenha o seu papel. O que não se pode admitir é que o Estado embarque em aventuras que resultem em custos elevados para os contribuintes, actuais e futuros, e com isso permita lucros igualmente elevados para os privados financiadores.
Somos informados pelo Dr. Carlos Moreno que o Estado tem recorrido desde o início destas PPP a consultores externos, pagos a peso de ouro. Antes de afirmar que presentemente o Estado já possui técnicos reputados em várias instituições, como por exemplo na unidade de PPP da Parpública, lembra que a experiência adquirida por esses consultores externos acaba por não ficar no Estado e, pelo contrário, se queda no sector privado. À custa dos contribuintes, como é evidente.
Quanto às SCUT, os contratos leoninos são os feitos pelas instituições financiadoras. Sem riscos. Mesmo que não haja o movimento que cálculos optimistas previam, as entidades privadas negoceiam contratualmente uma taxa fixa independente do tráfego que se registe.
A concluir, Carlos Moreno salienta aquilo com que não posso deixar de concordar em absoluto: "A palavra responsabilidade é inerente a quem exerce cargos em representação do contribuinte e a quem gere um bem escasso como é o dinheiro. Quem exerce esses cargos tem a obrigação indeclinável de contar a verdade com transparência. Não deve apenas apresentar o resultado contabilístico de uma gestão. Tem de dizer o que se gastou, por que se gastou, quanto é que se vai gastar, quanto é que vai custar. E não basta dizê-lo com frases de retórica política, mas com explicações acessíveis ao cidadão médio, que é quem paga a grande factura do despesismo do Estado."
Gostei de ver a postura de Carlos Moreno, assim como tenho apreciado ao longo dos anos a postura do Prof. Oliveira Martins, Presidente do TC. Carlos Moreno tem 70 anos. Jubilou-se no presente ano de 2010. Trabalhou para o Estado durante 44 anos. Foi o primeiro juiz português a integrar o Tribunal de Contas Europeu. Assinou mais de cem relatórios de auditoria, analisou os grandes contratos de empreitadas de obras públicas e grandes eventos nacionais.
Sabendo-se da promiscuidade que existe entre os sectores públicos e privados, não raramente com antigos governantes a desempenharem funções na administração de importantes empresas privadas, é bom que nos questionemos em que medida a lealdade jurada está sempre presente. Onde está a lealdade primeira: à nação, ao partido, a amigos do partido? Ou, num jogo de palavras que já repeti várias vezes: qual é a ética praticada? A ética de valores ou a ética de favores?
Embora estejamos num caso de "depois da casa arrombada, trancas à porta", em sinal de protesto exijamos mais. E, quanto a votar, poderemos sempre votar de forma a não legitimar quem não nos merece confiança. Mas este será tema de um outro post, em ocasião mais oportuna.
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