Era uma vez uma velha senhora, viúva e sem filhos, que estava disposta a vender a sua propriedade fronteira ao mar. Dificilmente se arranjaria uma melhor localização. Com a galopante evolução dos preços, a senhora não fazia uma ideia nem aproximada do valor pelo qual a deveria vender. Tratava-se de uma casa de dois pisos, com um jardim - por sinal não muito bem tratado - a toda a volta. Pensou, com justeza, que como a casa já tinha sido construída há décadas e, devido à proximidade do mar, estava com uma certa urgência de obras, talvez o destino do local onde tinha morado no Verão com o marido fosse deitar tudo abaixo. Aí construiriam possivelmente um outro prédio de raiz. Falou para o seu advogado, que já lhe tratara de vários assuntos desde que o marido falecera. O advogado disse-lhe que iria mandar pôr no local uma placa a anunciar que a propriedade estava à venda.
Perante a placa, não demorou muito a aparecer um interessado, residente numa povoação das proximidades. Essa pessoa era o capitalista-financiador de uma sociedade de dois, em que o outro era o empreiteiro-construtor. A sociedade tinha também o seu próprio advogado.
Por sugestão dos promitentes compradores, logo os dois advogados se puseram em contacto. Conversaram e acabaram por entender-se. A senhora vendeu a sua velha residência pelo "preço possível", de facto baixíssimo em termos de mercado mas "muito razoável", segundo o seu advogado. O sócio capitalista arranjou maneira de indirectamente pagar ao advogado da senhora a quantia substancial que lhe tinha sido prometida. A senhora, enganada quanto ao montante justo, foi viver para o seu apartamento em Lisboa, com uns poucos milhares mais na sua conta bancária. Segundo o advogado, a sua cliente ficou contente por se ver finalmente livre da casa, à qual não vinha já durante o Inverno por causa do reumático que lhe afectava os ossos.
Ficaram todos satisfeitos? Aparentemente, sim. Mas só por logro. Se tivesse sabido da negociata entre ambos os advogados e os compradores e da falta de lealdade que esse negócio envolveu, a senhora teria ficado zangadíssima e deixaria de acreditar na seriedade das pessoas. Acho que nunca veio a saber. Faleceu há cerca de 15 anos. Esta história, que me foi contada pelo construtor depois de ter vendido todos os 13 apartamentos e os quatro estabelecimentos comerciais que conseguiu construir no local, nada tem de ficção. É cem por cento verídica.
E vem agora a propósito de quê? Pois vem a propósito da gestão danosa da venda da propriedade, tal como foi feita pelo advogado da senhora. Prejudicou a sua cliente. Dir-me-ão: há tantos casos assim! É verdade. Infelizmente. Mas ele foi desleal.
Vamos agora imaginar que em vez da senhora temos o Estado português. Como todos sabemos, o Estado entrega àqueles que o governam a gestão dos seus bens, dos seus negócios e, de uma maneira geral, toda a sua actividade. Num regime democrático como o nosso, os governantes são eleitos pelo povo. O povo, que é trabalhador e contribuinte do Estado através dos impostos que lhe fazem pagar, confere-lhes legitimidade através do seu voto. Esperam os eleitores que os gestores da coisa pública procedam sempre de forma honesta, como aliás se comprometem a fazer quando assinam o livro de tomada oficial de posse na Presidência da República. O juramento que têm obrigatoriamente de prestar é simples: "Juro por minha honra que cumprirei com lealdade as funções que me são confiadas."
A lealdade perante os contribuintes implica necessariamente transparência nos actos e prestação de contas fiáveis. Exceptuam-se os casos reservados, como os relacionados com serviços secretos. Ora, as revelações que vêm continuamente surgindo sobre as contas públicas nacionais têm deixado o país boquiaberto. Como é possível que nenhuma mensagem de alerta tivesse sido lançada anteriormente pelo Governo? Como se justifica a manutenção do clássico cenário róseo, em que tudo está no melhor dos mundos? Em que medida é que isso não prejudicou o país?
Foi nos finais do passado mês de Outubro publicado no Porto um livro curioso, que já tive ocasião de folhear. Intitula-se Como o Estado Gasta o Nosso Dinheiro. O seu autor é um ex-juiz do Tribunal de Contas (TC), Carlos Moreno. Destaco aquilo que para o jornal Público, que entrevistou o autor, parece igualmente ser o mais importante: as chamadas "parcerias público-privadas" (PPP). Já todos ouvimos falar destas parcerias, fosse a propósito da gestão do hospital Amadora-Sintra, fosse da construção da Ponte Vasco da Gama, fosse ainda das famosas SCUT. Há 18 anos que se praticam estas parcerias, que são, como seria previsível, objecto de um contrato firmado entre o Estado e o consórcio privado que avança com o dinheiro. Digamos que o Governo, ansioso por mostrar obra feita e podendo lançar mão de fundos europeus, sente que não possui a disponibilidade financeira para avançar sozinho com o projecto e recorre a instituições privadas. A questão que se coloca aqui é se o Governo acautela suficientemente bem os interesses do Estado ou se, pelo contrário, não zela esses interesses como deveria.
Segundo Carlos Moreno, os sucessivos governos que ao longo de quase duas décadas têm entrado nestas PPP não têm acautelado da maneira mais correcta nem mais transparente os superiores interesses da Nação. Existirão, como é normal, casos mais escandalosos e outros mais aceitáveis, mas fica-se a saber que, na generalidade, os bancos financiadores exigem taxas cada vez mais elevadas de remuneração e só aceitam financiar PPP quando o sector público assume riscos que na figura original eram típicos do parceiro privado. Se o Estado satisfizer as condições propostas, a banca prefere aplicar os seus fundos disponíveis em PPP que são garantidas pelo Estado a canalizá-las para a economia das PME e das famílias. Não se poderá dizer que a culpa seja de assacar à banca, que faz o seu melhor para garantir bons réditos para os seus accionistas. Afinal, desempenha o seu papel. O que não se pode admitir é que o Estado embarque em aventuras que resultem em custos elevados para os contribuintes, actuais e futuros, e com isso permita lucros igualmente elevados para os privados financiadores.
Somos informados pelo Dr. Carlos Moreno que o Estado tem recorrido desde o início destas PPP a consultores externos, pagos a peso de ouro. Antes de afirmar que presentemente o Estado já possui técnicos reputados em várias instituições, como por exemplo na unidade de PPP da Parpública, lembra que a experiência adquirida por esses consultores externos acaba por não ficar no Estado e, pelo contrário, se queda no sector privado. À custa dos contribuintes, como é evidente.
Quanto às SCUT, os contratos leoninos são os feitos pelas instituições financiadoras. Sem riscos. Mesmo que não haja o movimento que cálculos optimistas previam, as entidades privadas negoceiam contratualmente uma taxa fixa independente do tráfego que se registe.
A concluir, Carlos Moreno salienta aquilo com que não posso deixar de concordar em absoluto: "A palavra responsabilidade é inerente a quem exerce cargos em representação do contribuinte e a quem gere um bem escasso como é o dinheiro. Quem exerce esses cargos tem a obrigação indeclinável de contar a verdade com transparência. Não deve apenas apresentar o resultado contabilístico de uma gestão. Tem de dizer o que se gastou, por que se gastou, quanto é que se vai gastar, quanto é que vai custar. E não basta dizê-lo com frases de retórica política, mas com explicações acessíveis ao cidadão médio, que é quem paga a grande factura do despesismo do Estado."
Gostei de ver a postura de Carlos Moreno, assim como tenho apreciado ao longo dos anos a postura do Prof. Oliveira Martins, Presidente do TC. Carlos Moreno tem 70 anos. Jubilou-se no presente ano de 2010. Trabalhou para o Estado durante 44 anos. Foi o primeiro juiz português a integrar o Tribunal de Contas Europeu. Assinou mais de cem relatórios de auditoria, analisou os grandes contratos de empreitadas de obras públicas e grandes eventos nacionais.
Sabendo-se da promiscuidade que existe entre os sectores públicos e privados, não raramente com antigos governantes a desempenharem funções na administração de importantes empresas privadas, é bom que nos questionemos em que medida a lealdade jurada está sempre presente. Onde está a lealdade primeira: à nação, ao partido, a amigos do partido? Ou, num jogo de palavras que já repeti várias vezes: qual é a ética praticada? A ética de valores ou a ética de favores?
Embora estejamos num caso de "depois da casa arrombada, trancas à porta", em sinal de protesto exijamos mais. E, quanto a votar, poderemos sempre votar de forma a não legitimar quem não nos merece confiança. Mas este será tema de um outro post, em ocasião mais oportuna.
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