11/21/2010
A diluição da responsabilidade
O elogio e a censura actuam em palcos opostos. Contudo, são ambos tão característicos da natureza humana que não é de todo despropositado pô-los a actuar no mesmo palco. Há coisas em que são semelhantes. Por exemplo: "Elogiar toda a gente é não elogiar ninguém", lembrava o velho Samuel Johnson; censurar toda a gente é não censurar ninguém, dirá o senso comum. Seja num, seja no outro caso, dilui-se o elogio, dilui-se a censura.
Já cá voltaremos. Nalgumas festas de aniversário, causa-me sempre espanto ver que o aniversariante, após a entoação em conjunto pelos seus familiares e amigos do Parabéns a você!, bate palmas tal como os outros. Está a bater palmas a quem? A si próprio? Seria um gesto de puro narcisismo que me custa a admitir. Inclino-me generosamente a pensar que é mais um reflexo pavloviano desencadeado pelo verso final do Parabéns! Como está habituado a ir a outras festas de aniversário e a bater palmas no final, na sua própria festinha acaba por fazer o mesmo. Se fosse um acto narcisista, seria grave; assim, pode causar algum espanto, mas... Aliás, festa é festa!
Goethe, por seu lado, fez-nos notar uma outra grande verdade sobre as louvações: "Quem elogia coloca-se ao mesmo nível das pessoas cujo elogio faz". Nem mais. Aliás, muito bom orador entrecorta o seu discurso com um elogio a A ou a B, com isso recebendo uma calorosa salva de palmas, ou então no final das suas palavras pede um forte aplauso para uma determinada pessoa ou grupo, com isso recebendo a ovação global para o seu discurso, que assim termina em glória.
E a censura, vulgarmente chamada "crítica"? Essa tem características algo diferentes. Enquanto que no elogio existe um contentamento comum ao elogiador e ao elogiado, a censura termina com dois humores bem diversos: o bem-estar de quem censura e o mal-estar de quem é censurado. O amor-próprio, tanto de um como do outro, é posto à prova: o de um para se congratular a si mesmo pela sua franqueza e coragem, o do outro para se defender da melhor maneira que puder daquilo que lhe é apontado, mostrando assim igualmente a sua coragem, mas também a sua inteligência.
Dado que tanto o elogio como a censura fazem desde o início dos tempos parte da natureza humana no seu relacionamento com o "outro", são conhecidas numerosas maneiras que possibilitam a quem é censurado escapar a situações embaraçosas. "Sacudir a água do capote" é a expressão que o povo há muito arranjou para este conjunto de soluções escapatórias. É que quando se sacode a água do capote, este pode parecer que, afinal, nem molhado foi. Está sequinho, genuíno e virgem como tudo o que é virginal e puro. A mais comum das maneiras de sacudir a água do capote é através da mentira ou da inverdade, atribuindo determinado facto a outra pessoa ou, mais inteligentemente, a todo um conjunto de circunstâncias que lembram a ira dos deuses e que provocaram, por razões complexas e difíceis de entender, a situação embaraçosa a que se chegou e pela qual agora se é criticado.
Sob o ponto de vista político, em regimes ditatoriais é relativamente fácil atribuir as culpas por uma situação pouco ou nada confortável a reais ou imaginários inimigos externos que, em tenebroso conluio, terão provocado o statu quo actual. A oposição não pode falar: não lhe é dada voz para o fazer.
Em regimes democráticos, a situação é diferente. Todos podem falar. Então, o melhor método para sacudir a água do capote parece ser o de diluir as responsabilidades. Quem são os culpados da incómoda situação, para além do evidente complot da estrangeirada que, neste mundo globalizado, tem um enorme poder sobre nós? Os culpados somos nós todos. Todos, sem excepção. E não se admite que uns sejam mais ou menos do que outros. A culpa recai sobre todos nós. Uniformemente. Como é óbvio através de um exemplo fácil como o do café, o qual ficará tanto menos forte quanto mais água se lhe juntar, também aqui quantos mais arcarem com a culpa, tanto menor será a responsabilidade de cada um. E como não podemos contar com o bíblico bode expiatório (foto) que depois desaparece no deserto com todos os pecados do mundo, cada um arca com a sua quota-parte de responsabilidade, sendo implicitamente levado a pensar que, ao culpar os outros, está a culpar-se a si próprio, pelo que provavelmente o melhor é ficar calado.
A diluição da responsabilidade passa por aqui. Lembra um inteligente slogan formulado pelos ricos americanos há já umas boas décadas: "Os pobres não invejam os ricos; querem apenas ser tão ricos como eles." Se não o conseguem, de quem é a culpa? Dos pobres, de quem havia de ser?
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