11/19/2010

Questões de concorrência

Uma das coisas que me atraem na Matemática é a possibilidade de, em problemas, chegar através de desdobramentos simplificativos a factores ou conjuntos menos complexos, que permitem encontrar soluções pelo menos aceitáveis. Não sei bem se isto vem a propósito do que pretendo abordar mas, adiante!
Leio a notícia no jornal, que me faz pensar logo noutros exemplos. A notícia é simples. Diz, no título, que a Irlanda se recusa a mexer na taxa de IRC (sobre as empresas) em troca de eventual ajuda financeira. A pergunta coloca-se desde logo: o que tem a ver a taxa de IRC da Irlanda com o auxílio financeiro a eventualmente prestar pelos países da União Europeia àquele país? Talvez tenha. A taxa irlandesa de IRC é apenas de 12,5 por cento e tem sido crucial para atrair empresas estrangeiras. É uma taxa consideravelmente baixa (embora tenha havido frequentes variações na taxa portuguesa homóloga, creio que ela se situa nos 25 por cento). É óbvio que um imposto mais baixo atrai mais capitais. Por outras palavras, se pusermos em questão a atracção de investimentos em Portugal em comparação com a Irlanda, verificaremos que esta se encontra numa situação privilegiada.
Contudo, quando se debate ou negoceia um investimento estrangeiro de forte volume, os governos fazem o mesmo que os bancos: oferecem taxas mais favoráveis a quem traz mais vantagens. No caso da banca, a quem depositar mais dinheiro. No caso dos governos, a quem trouxer maior investimento para o país e prometa criar um maior número de empregos. É frequente que exista um tax holiday de um determinado período de tempo, i.e. um período de total isenção de IRC, que acaba por compensar a taxa em princípio mais elevada. Uma alternativa é a concessão de largos subsídios a esses investidores.
Ora, no caso da Irlanda, os seus 12,5 por cento são regularmente criticados por vários países da União Europeia, designadamente a Alemanha, o Reino Unido e a Áustria. Qual é o nome que estes países dão aos 12,5 por cento irlandeses? Chamam-lhe "concorrência desleal no mercado interno comunitário". Apetece por vezes dizer: olha quem fala! Pois não é verdade que cada um dos países utiliza para si truques que não são tão visíveis mas que acabam por ser tão eficazes como uma taxa reduzida? Seja como for, à Alemanha e ao Reino Unido causa engulhos o facto de a Irlanda praticar a taxa de 12,5 por cento, na medida em que as suas são mais elevadas e portanto ambos os países ficam a perder nesse domínio. E como eles vão entrar no bail-out salvador da Irlanda...
Esta é uma história que me traz à memória o caso da abolição da escravatura. Tal como os portugueses e outros povos, os ingleses praticaram largamente o transporte de escravos. No seu caso, para a América, para ilhas como a Jamaica e outros locais. Os escravos constituíam mão-de-obra quase gratuita. Os seus custos eram muito inferiores aos praticados na Inglaterra, por exemplo, com mão-de-obra branca. Com a Revolução Industrial, a que se juntou a Revolução Agrária e a consequente menor necessidade de pessoas para o labor nas fábricas e nos campos, os ingleses começaram a precisar menos de escravos – apenas nas suas colónias. Só que algumas destas colónias, como foi o caso dos Estados Unidos, se tornaram independentes, pelo que deixaram de ser um problema inglês. Aí, a poderosa Inglaterra decidiu abolir a escravatura no início do século XIX. Porém, ficava com um problema: se os outros países directamente concorrentes continuassem a praticar a escravatura, esses países passariam a auferir de uma importante vantagem competitiva: conseguiriam matérias-primas como o açúcar, o cacau, o algodão, a preços mais baixos do que os seus. Para que isto não sucedesse, a Inglaterra exerceu forte pressão sobre os países seus aliados para que terminassem a escravatura. Portugal esteve incluído nesse grupo.
Aqueles que leram o romance Equador ou viram a série televisiva com o mesmo nome lembram-se de que a questão à volta da colónia portuguesa de S. Tomé era exactamente essa: os ingleses da Cadbury queriam à viva força que a escravatura terminasse para que os portugueses não usufruíssem de vantagem na venda do seu chocolate ou cacau. É evidente que o que salientavam eram os direitos humanos, mas isto é o que sempre se faz em casos como este: invocam-se razões nobres para colher benefícios materiais concretos. Além disso, podiam exercer a referida pressão porque eram mais fortes, possuíam uma armada fortíssima e tinham a possibilidade real de exercer acções extremas de retaliação.
Este problema, que é do passado, traz à baila um outro, que é muito actual: a desvalorização que cada país tenta fazer da sua moeda para que as suas exportações aumentem. Portugal, por exemplo, teria outra capacidade de aumentar as suas exportações se pudesse desvalorizar unilateralmente o euro, o que se sabe ser impossível. Em crises anteriores – e não foram poucas -, Portugal recorreu sempre à desvalorização da sua moeda. Embora estivesse a retirar poder de compra aos portugueses, que no entanto não viam alteração numérica nos seus cheques e apenas sentiam a diferença no seu poder aquisitivo, os sucessivos Governos propalavam invariavelmente as vantagens da medida: aumento das exportações, aumento do número de turistas estrangeiros e da respectiva receita turística.
Presentemente, assistimos no mundo à existência de vários potentados de grandes dimensões, como os Estados Unidos da América, a China, a União Europeia, a Índia, que procuram exportar e se queixam de concorrência desleal através da moeda. A guerra cambial entre os EUA e a China já dura há anos, com os EUA a fazerem pressão sobre o governo chinês para que valorize a sua moeda, que estará com um valor abaixo do seu valor real. O problema não é, porém, tão simples como isso, e possivelmente está longe de ser a panaceia para os restantes males, como a história económica tem demonstrado em casos anteriores. A China só valorizará a sua moeda quando souber que a Índia, a Coreia, o Vietname, a Indonésia, etc. irão fazer o mesmo; caso contrário, fica a perder e os investimentos estrangeiros poderão encaminhar-se mais para os países seus concorrentes. E quem gosta de perder?
Afinal, somos todos bons quando não nos tocam no bolso. Se o fizerem, protestamos. À mesa, a tomarmos as nossas refeições, é possível que façamos exactamente o mesmo com a comida. Se virmos alguém a servir-se muito substancialmente da travessa que contém comidinha que adoramos, franzimos o sobrolho ou protestamos mesmo em voz alta. Diremos qualquer coisa como: "Estás-te a servir tanto, com medo que a comida acabe?" Na realidade, nós é que estamos com medo de que a comida não vá chegar em doses tão substanciais para nós. É sempre assim. Um problema que parece complexo como o do IRC da Irlanda, ou o do cacau de S. Tomé, ou o da escravatura versus a sua abolição, ou o da valorização/desvalorização da moeda, reduz-se muito à escala do comer à mesa, um acto diário o mais simples e comum possível. Já agora, se não gostarmos do prato de que o outro se está a servir abundantemente e por esse motivo tivermos especialmente para nós um bifinho com batatas fritas, até poderemos censurar quem faz o reparo crítico: "Tu é que estás com medo que a comida não chegue! E nunca te ensinaram que é feio olhar para o prato dos outros?!" É a nobreza do nosso gesto em todo o seu esplendor. Pudera! Quem está de fora é sempre bonzinho.

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