- Sonha-se sempre. Em menino sonhaste ser ...
- Corredor de automóveis. Era o speed, o andar à frente dos outros naquela guita toda! E as máquinas!
- No teu ofício continuas ligado a automóveis ...
- Mas arrumar carros nas ruas não é a mesma coisa que conduzi-los. E há para aí cada bomba!
- Achas que ser arrumador de carros é uma profissão como outra qualquer?
- Não há duas coisas iguais, de modo que não é como outra qualquer. Esta é especial.
- Especial em quê ?
- Sempre detestei trabalhar em escritórios. Quem me tira o ar livre, tira-me tudo. Assim, pelo menos ar livre não me falta!
- Mas tens montes de poluição. Os escapes, vrum mete o carro, vrum tira o carro, acelera. Isto não te complica?
- Esse é o fumo que eu não quero. É por isso que ando sempre de paivante na boca. Já que tenho que engolir, ao menos que engula aquele fumo que me dá prazer.
- Em qualquer actividade, a gente gosta de ser útil. Tu achas que és útil?
- Como não! O desespero de alguém que quer arrumar o carro porque não o pode levar às costas para o sítio onde vai, é uma coisa que a gente nem consegue imaginar. Os cem ou duzentos pauzitos que nos dão compensam o alívio que eles sentem. É um grande bem contra o stress. Vale mais deixar-nos o dinheirinho na mão do que gastá-lo na farmácia em comprimidos.
- Não tens medo da polícia?
- Não estou a fazer nada de mal. Estou só a ajudar, a minha missão é profundamente social.
- Tens estudos?
- Estudei até ao 9º Ano, depois larguei. Ainda gosto de ler. Há clientes muito simpáticos que me deixam o jornal.
- Tu não tens uma profissão legal. Isso não te incomoda?
- Faz o bem e não olhes a quem, esse é o meu lema. Tudo o resto são cantigas. Arrumo os carros dos ricos e dos pobres, faço bem a distribuição dos espaços. Tanto faz ser um velho Fiat 127 como um BMW último modelo. Fossem os governos como eu e tudo estaria melhor!
- Queres dar lições ao Governo, tu que não pagas impostos?
- Não ia passar recibos de cinquenta cêntimos ou de um euro! Se oficialmente não recebo nada, porque é que havia de pagar? Também ninguém desconta para mim. A minha missão social é o meu IRS! E o frio e a chuva, ou então o calor e o sol ?! A gente sofre um bocado aqui. E, aliás, o mercado já não é o que era. Com os parquímetros já há muito desemprego nesta profissão. A gente chega a ter de trabalhar aos fins de semana. São sete dias a fio!
- Mas há tantas ruas em Lisboa e noutras terras!
- Isso é uma ilusão. Para muita gente o carro não é um auto-móvel, é um auto-parado. Arrumam-no ao sábado ou ao domingo e nunca mais lhe tocam. Estão a roubar o espaço para o nosso servicinho. Estou a pensar em vender uns cartõezinhos auto-colantes a garantir que os carros parados estão debaixo da nossa vigilância. E é que a gente vigia-os mesmo! Quem é que vinha roubar um carro nas nossas barbas?
- Vocês ainda são mais importantes do que a polícia!
- E somos! Onde é que já se viu bófia em todos as ruas? Nós às vezes estamos três e quatro na mesma rua. É isso também que faz a crise.
- Posso tirar-te uma fotografia para ilustrar a entrevista?
- À vontade, mas que seja ali ao pé daquele Ferrari. Não estava a mangar quando disse que sempre gostei de carros de corrida. Talvez um dia!
- Talvez um dia. Boa sorte!
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