Várias gerações de portugueses, incluindo aquela a que pertenço, tiveram aulas de História do seu país que, sistematicamente, prestavam muito pouca atenção aos séculos XIX e XX. A partir de 1820, o século XIX era tratado um pouco como o PREC que se seguiu ao 25 de Abril: muita bulha, muita parra e pouca uva. Por seu lado, o século que há poucos anos terminou careceria ainda de suficiente distanciamento histórico, pelo que eram estudados sem profundidade eventos, políticas e mentalidades sem dúvida relevantes. A História era muito escrita por monárquicos ou, pelo menos, por conservadores. Sobre a fundação da nacionalidade e o período dos descobrimentos sobejavam os ensinamentos, como se sabe. O liberalismo não era, por via de regra, suficientemente bem tratado, as ideias republicanas não surgiam convenientemente explicitadas. Da Maçonaria pode dizer-se que se evitava falar. Espero sinceramente que algo já tenha entretanto mudado nas nossas escolas.
É por este motivo que quem olha para a toponímia de Lisboa tem uma História contrastante pela frente. Sob o ponto de vista de nomes de ruas, avenidas e praças, Lisboa é claramente uma cidade predominantemente liberal, republicana e maçónica. "Como assim?", perguntar-se-á. De um tema que seria longo e até daria para um livro, apenas umas breves notas para que alguém as possa ler num blog como este.
Quem percorre Lisboa pela parte mais junto ao Tejo, depressa encontrará a longa e animada Avenida 24 de Julho. Porque se chama assim? Porque a data de 24 de Julho (de 1833) marca a entrada das tropas liberais sob o comando do Duque da Terceira na cidade de Lisboa, i.e., a "libertação" da cidade. Não longe desta avenida, fica o Cais do Sodré, onde está a praça dedicada ao militar Duque da Terceira. Entrando no coração da cidade, vemos que a praça mais central - o Rossio - tem outro nome oficial: Praça D. Pedro IV. Exactamente: o liberal libertador, o oposto do seu irmão Miguel, absolutista. Umas duas centenas de metros à frente, começa a avenida que ostenta o nome de Liberdade, a palavra mais importante para os liberais. É a principal artéria da cidade. Vai dar ao monumento ao Marquês de Pombal, esse estadista irreverente que tentou o mais que pôde agitar as águas na cidade e no país. Tendo estado em Londres, onde provavelmente pertenceu a uma loja maçónica, não perseguiu os maçons da cidade, expulsou os Jesuítas e reformou ou tentou reformar o ensino. O Marquês é um símbolo da transformação para os liberais. Um demónio para muitos absolutistas. Esta artéria citadina dos liberais irradia depois para vários lados. Numa outra via principal, aparece um dos ministros mais representativos do desenvolvimento do país: Fontes Pereira de Melo. Ao fundo da rua, outro liberal, parente do Marquês: o Duque de Saldanha. E, se anteriormente, tínhamos tido, a Liberdade em forma de avenida, encontramos agora a concretização dessa liberdade, a República, também ela transformada em importante avenida.
Dir-se-á: tudo é natural; foi a cidade a crescer nesse período. Talvez não seja só assim. É que os liberais, que ocuparam postos-chave na Câmara Municipal e que estiveram frequentemente ligados à Maçonaria e aos partidos políticos republicanos, sabiam como homenagear os seus. E também sabiam como deixar os outros de fora. Assim é que muitos dos nomes do século XIX que não estudámos na escola nos surgem nas ruas e nas praças da cidade. Numa breve viagem, de maneira nenhuma exaustiva, encontrei mais de cem nomes de ruas ligadas quer ao liberalismo, quer à maçonaria, quer à República. Muitos deles eu desconhecia, ou conhecia apenas como nome de rua. Perguntava-me por vezes: quem foi este? Vamos a alguns destes nomes, que "possuem" ruas nas partes laterais do longo corredor que atrás apontei: Alexandre Herculano, Castilho, Mouzinho da Silveira, Rodrigo da Fonseca, Barata Salgueiro, Rosa Araújo, Braamcamp, Duque de Palmela, Joaquim António de Aguiar, Sampaio e Pina, Duque de Loulé, Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz, Rodrigues Sampaio, Bernardo Lima, Ferreira Lapa, Conde de Redondo, Gomes Freire, Sousa Martins, Martens Ferrão, Andrade Corvo, Sidónio Pais (ex-maçon), António Augusto de Aguiar, José Fontana, Tomás Ribeiro, Latino Coelho, Pinheiro Chagas, Filipe Folque. Quando deparamos com a avenida que assinala a data da implantação da República, a Cinco de Outubro, encontramos perto a Conde de Valbom, a Conde Valmor, a Elias Garcia, a Miguel Bombarda, a António José de Almeida, a Magalhães Lima (foi Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano Unido entre 1907 e 1928), a Barbosa du Bocage (não é o poeta, mas sim o zoólogo, Ministro da Marinha e dos Negócios Estrangeiros), Marquês de Tomar (por detrás deste título esconde-se Costa Cabral), Duque d'Ávila, Marquês Sá da Bandeira e Marquês de Fronteira.
Uma outra artéria importante da cidade é a Avenida Almirante Reis. Este almirante era um oficial de Marinha bastante conhecido no seu tempo. Defensor de ideias republicanas, julgando o movimento de 1910 perdido suicidou-se no dia da vitória. A ligar a essa artéria há mais uma quantidade de liberais do século XIX, como Morais Soares, Pereira Carrilho, Alves Torgo, Pascoal de Melo, Passos Manuel e José Estêvão. Enfim, é um nunca mais acabar de personagens do século XIX ou do início do XX que aparecem aqui e ali e nos levam a perguntar quem são. Tenho aqui mais uns cinquenta em carteira, mas não quero maçar com tanto nome de rua.
Para terminar, apenas umas perguntas: porque será que Dom Miguel não tem nome em nenhuma rua, praça ou avenida? E sua mãe Carlota Joaquina? E o Duque de Cadaval, que deu forte apoio aos miguelistas? (Na realidade, alguma propriedade do Duque fica bem perto do Rossio, mas as "Escadinhas do Duque" não lhe mencionam o nome. Porque será?). É evidente que Salazar também não tem nome de rua, mas o Cardeal Cerejeira, que foi seu amigo e condiscípulo de Coimbra, tem. Convenhamos que isso já é mais normal. Como se costuma dizer: "santos e maçons não faltam nas nossas ruas."
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