2/29/2008

Criação e gestão de expectativas


"Nem só de pão vive o homem" é frase comum para significar que o homem se alimenta tanto de coisas materiais como espirituais. É um facto, mas não é menos verdade que o pão - não em sentido metafórico mas real - é um elemento essencial para muitos portugueses. Talvez tendo ainda presente a memória, já longínqua, de um conjunto de greves e tumultos de vária índole que assolaram Lisboa durante mais de dois meses em 1920 devido a uma subida do custo do pão, os industriais da panificação acabam de acorrer aos media a anunciar a inevitabilidade de aumentos da ordem dos 50 por cento do preço do pão que compramos diariamente. A tonelada de farinha, que custava €350 em 2006, presentemente ronda os €450 e não admiraria muito que atingisse €500 nos próximos meses. É na base destes números que a Associação do Comércio e da Indústria de Panificação, Pastelaria e Similares lança para os media o provável aumento de 50 por cento.
Posso estar enganado, o que aliás não sucederia nem pela primeira nem pela segunda vez, mas creio que estamos perante um típico caso de condução e gestão de expectativas. De facto, mesmo imaginando que o preço do pão se baseia unicamente no preço da farinha, o que está longe de ser verdade, se aumentássemos em 50 por cento o custo da tonelada de farinha de 2006, o preço actual seria de €525. Ora, não são só as matérias-primas que constituem a base de um preço deste tipo: há, evidentemente, que contar também com a mão-de-obra, custo de instalações, aquisição e utilização de viaturas, etc. Logo, o aumento previsto parece claramente exagerado. Tem, porém, uma grande vantagem para os industriais e para o próprio governo: quando o aumento chegar e acabar por ser consideravelmente menor, o povo suspirará de alívio e dirá algo como "afinal, eles aumentaram o pão muito menos do que anunciaram. Até foram bonzinhos!"
Teremos que esperar para ver, mas estou plenamente convencido de que, neste caso, se trata de uma mera versão panificada do truque do camelo.

Nota: As olaias aí estão de novo, o que significa não só que a cidade está a ficar mais florida mas também que mais um ano passou. Para todos, votos de boa saúde e óptima disposição até ao florescimento do ano que vem!

2/26/2008

O "quiz" de Fevereiro

De quem são estas linhas?

"Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. No fim de tudo isto, o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico? Que lho digam no Parlamento inglês, onde, depois de tantas comissões de inquérito, já devia andar orçado o número de almas que é preciso vender ao diabo, número de corpos que se tem de entregar antes do tempo ao cemitério para fazer um tecelão rico e fidalgo como Sir Roberto Peel, um mineiro, um banqueiro, um granjeeiro, seja o que for: cada homem rico, abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis."

2/25/2008

Avaliação de professores

Pode dizer-se que não há dia em que não saia alguma notícia nos media sobre a avaliação dos professores preconizada pelo Ministério da Educação para o ensino básico e secundário. Como ex-docente de escolas superiores privadas e públicas, concebi e executei avaliações (numa escola privada) durante cerca de 25 anos. Talvez por isso, não resisto a alinhavar um breve apontamento sobre o assunto.
O primeiro ponto que gostaria de frisar é o seguinte: as avaliações, se bem conduzidas, são extremamente úteis para a melhoria de uma instituição.
O segundo ponto, primordial, é que estas avaliações não devem incidir unicamente sobre professores, mas sim sobre a instituição. Um estabelecimento de ensino é um todo, no qual se integram estudantes e docentes, mas também a direcção, as instalações, o equipamento, a secretaria, a biblioteca, a cantina e salas de estudo. Uma avaliação deve abranger estes pontos, assim como o plano das disciplinas e respectivo horário. Uma avaliação que se faça exclusivamente a professores pode parecer um acto persecutório de um grupo específico de profissionais. O objectivo de uma avaliação institucional é o de detectar itens anómalos passíveis de correcção, a fim de posteriormente se efectuar essa correcção na medida do possível. Ora, o corpo docente é uma parte substancial de uma escola, mas está longe de ser ele o único a necessitar de eventuais melhorias. Em meu entender, esta é a razão principal por que a actual proposta de avaliação está a surgir como uma provocação e a suscitar uma natural agitação em profissionais que, por sua culpa ou devido ao "sistema", têm visto o seu status social baixar drasticamente nos últimos anos.
Mão amiga fez chegar à minha caixa do correio quatro documentos importantes para a avaliação pretendida pelo Ministério. São eles (1) Um conjunto de princípios e orientações gerais, assinado pela Presidente do Conselho Científico para a Avaliação de Professores, (2) Ficha de avaliação do desempenho de docentes dos 2º e 3º ciclos, a ser preenchida pelo Coordenador do Departamento, (3) Ficha de avaliação do desempenho, a executar pelo Presidente do Conselho Executivo e (4) Avaliação global do desempenho de docentes do pré-escolar, 1º, 2º e 3º ciclos do ensino secundário, a realizar pelo Ministério.
Tudo me parece um processo altamente burocratizado, que contrasta com a simplicidade das avaliações que pessoalmente conduzi. Existem, pelo menos, 15 anexos, que levam a que cada professor seja avaliado em termos de variadíssimos itens, como "capacidade de comunicação e estímulo do interesse dos alunos pela aprendizagem", "promoção de um clima favorável à aprendizagem, ao bem-estar e ao desenvolvimento afectivo, emocional e social dos alunos", "regularidade, adequação e rigor da avaliação diagnóstica, formativa e sumativa das aprendizagens, incluindo a sua apresentação em tempo útil". Como é que se pode dar uma nota rigorosa a cada professor relativamente ao seu esforço de promoção de um "desenvolvimento afectivo, emocional e social" dos alunos? Ou, como noutra ficha se avalia, se pode apreciar com justeza aquilo que é pedido: "Empenho, participação e contributo para a definição e concretização de estratégia para a prevenção e redução do abandono escolar"? Isto é newspeak do mais ridículo que tenho visto! Apetece dizer que se é assim o topo da educação - o Ministério - como querem que a educação saia bem? Repare-se que a actividade de um professor é aqui esquartejada ao milímetro, não sendo nada impossível que, desta forma, docentes que são por todos considerados bons saiam com classificações inferiores a outros de qualidades mais duvidosas. Não é feita a pergunta necessária aos alunos, algo como "Globalmente, numa escala crescente de 1 a 5, como classificarias o professor da disciplina?" O global é, de facto, muito mais do que a soma das partes!
Mesmo assim, se exceptuarmos o linguagês burocrático usado, nem tudo estará mal: parece-me correcto que se considere em termos pontuais o "progresso das aprendizagens dos alunos relativamente à avaliação diagnóstica realizada no início do ano." Só que, francamente, duvido muito que em todas as disciplinas de todas as escolas tenha sido feito um teste inicial para diagnosticar em que patamar se encontravam os conhecimentos dos alunos. Sem esta referência, como é que o item pode ser válido?
Também me parece bem que haja pontuação para as diferenças eventualmente verificadas entre as provas de exame nacionais e as classificações internas da escola - apesar de nem todas as disciplinas nem todos os anos terem esses exames nacionais. Porém, o princípio é correcto e deverá ter incidência, penalizadora ou premiável, no caso de essa diferença ser maior do que um determinado número. Esperemos que, num próximo futuro, haja mais exames nacionais.
O cúmulo da perseguição aos professores através da assiduidade às aulas - frequentemente típica do funcionário público cumpridor mas sem qualquer rasgo de inovação e originalidade - é-nos dado através da meticulosidade de uma avaliação a fazer pelo Presidente do Conselho Executivo, que tem cinco parâmetros mesquinhamente definidos com metas de cumprimento de (1) 100 por cento do serviço lectivo (O.K.), (2) de 98 por cento a 99,9, (3) de 95 por cento a 97,9, (4) de 90 por cento a 94,79 e, depois, todo o condenatório remanescente de (5) "menos de 90 por cento do serviço lectivo" (anexo XIII). Algo incongruentemente, note-se, um outro anexo (XV) pergunta se "o docente cumpriu em cada ano lectivo do período em avaliação pelo menos 95 por cento das actividades lectivas". Já agora, o patamar deveria situar-se nos 90 por cento.
Onde é que os alunos da escola, que são os grandes receptores das aulas, se podem pronunciar? Está prevista alguma folha em branco onde eles possam dizer abertamente tudo o que sentem, assinando se assim o quiserem ou permanecendo anónimos se o preferirem? Será que, pelo menos, os estudantes que estão nos anos 10º, 11º e 12º não poderiam fornecer o seu depoimento?
Se eu próprio tivesse estado sujeito a estas grelhas para ser avaliado, duvido que alguma vez tivesse alcançado as boas classificações que sempre obtive. Mais: em face deste mar de vacuidades barrocas, duvido que continuasse com vontade de ensinar. Alguns dos bons professores que tive ao longo da minha vida de estudante, e muitos mais como colegas de profissão ao longo de 41 anos, sentiriam certamente o mesmo. Aparentemente, o que interessa é andar direitinho, não fazer ondas, não se queixar de nada, entrar a horas e sair a desoras se necessário. Lamento ter que dizer que toda esta avaliação, a começar por ignorar a existência do todo da instituição, não passa de uma palhaçada monumental.

2/21/2008

Índia (III) - "It's my duty!"


Quando coloquei ao Daryl, que nos serviu de motorista-guia num dos dias da nossa estadia em Goa, a questão do relacionamento entre os católicos, como ele, e os hindus, ele não hesitou em afirmar que não havia problemas. "São duas comunidades diferentes, mas que não se agridem mutuamente. Pacíficas." Depois, acrescentou: "Mas eles são muito diferentes de nós. Faz-me impressão vê-los sempre a trabalhar, sempre a andar de um lado para o outro, apesar dos salários baixos que têm. Ao contrário de nós, não parece dar-lhes muito gosto sentar-se a uma mesa para uma boa refeição sem pensar muito nas horas; parece que não precisam de uma pausa para uma amena cavaqueira, de um descansozinho de vez em quando."
Tive ocasião de confirmar nos dias seguintes, já fora de Goa e em diversos outros locais da vasta Índia, a correcção daquele juízo. Aos indianos a quem simplesmente perguntei se viam os seus compatriotas como gente preguiçosa ou como diligentes trabalhadores, não houve um só que me referisse a indolência ou a preguiça como sendo apanágio do seu povo. Pensei para mim que, em Portugal, não encontraria por parte dos meus patrícios a mesma unanimidade de respostas a pergunta idêntica.
Foi em Jaipur que, pela primeira vez ouvi, da boca do já não jovem indiano (foto) que nos conduzia na sua bicicleta-rickshaw, a expressão "It’s my duty!" Sempre que lhe falávamos, algo constrangidos de o ver transportar pessoas devido à sua idade, ele respondia-nos com verdadeira força interior: "It’s my duty". O mesmo viria a suceder com outras pessoas, se lhes pedíamos desculpa pelo tempo que lhes levávamos, um eventual atraso ou qualquer outra coisa.
Vieram-me à memória com alguma força os ecos muito distantes de um Gunga Din, que eu já julgava completamente esquecido e que era personagem de um filme que vi com os meus 12 ou 13 anos. Já em Lisboa, procurei esse Gunga Din na Internet, incerto até que estava de ser esta a grafia. Encontrei-o no nome do filme, e fiquei a saber que se tratava de um aguadeiro indiano de umas determinadas tropas inglesas, que acorria sempre que, no meio do calor imenso de uma caminhada ou na refrega de uma batalha, alguém necessitava de água urgentemente. Solícito, extremamente prestável, Gunga Din acudia invariavelmente. Apesar de ser tratado pelos brancos não como um igual mas como um serviçal - típico do racismo europeu (e não só) - , ele vivia o seu papel intensamente. Era o seu dever. Não questionava. Um dia, uma bala atingiu-o mortalmente. No poema que Kipling lhe dedicou e que está na Net, sobressai o último verso: "Como ser humano, és melhor do que eu."
Encontrei na Índia muitas pessoas assim. Num hotel em Bombaim, calhou falar várias vezes com o ascensorista, um indivíduo simpático e com algum inglês. Quando o questionei sobre a eventual monotonia do seu trabalho, negou-a imediatamente. "Estou bem, sinto-me feliz. Trabalho aqui oito a dez horas por dia. Estou neste hotel há dezasseis anos. Gosto do que faço. Sou útil."
Admito que outras pessoas reajam diferentemente. No geral, porém, deparei com uma sociedade confiante no futuro, apesar da sua pobreza ou exactamente por causa dela. São abnegados, estão motivados para trabalhar. Conforme já deixei expresso anteriormente, não acredito que uma substancial melhoria social possa ocorrer na Índia a curto prazo, mas estou crente de que ela ocorrerá, mais tarde ou mais cedo. Ter confiança no futuro é algo tremendamente importante para a felicidade.

2/17/2008

Inglês - Adjectivação - Conceitos básicos

Pergunte-se a uma turma de alunos portugueses que estejam a aprender inglês: "Como devo expressar em inglês a ideia de cidade-museu? Deverei dizer town museum ou museum town?” O mais provável é que o professor que coloca esta questão receba respostas desencontradas. É bom que oiça as razões das diferentes escolhas para entender o raciocínio dos alunos. Depois, convém relembrar algo absolutamente fundamental na língua inglesa: o qualificativo precede aquilo que qualifica (o que representa uma ordem geralmente contrária à que se usa em português). Assim, "um homem alto" é a tall man, e "uma mulher alta" é a tall woman. "Pessoas altas" são tall people.
Estamos aqui apenas a tratar de adjectivos qualificativos, o mais simples. O título que demos foi, no entanto, "adjectivação", mais alargado. Os substantivos servem também para qualificar: "um mapa de estradas" é a road map. "Uma torre sineira" é a bell tower. "Uma fraude cometida nos impostos" a tax fraud. Como se vê, estes são exemplos de substantivos (road, bell, tax) que qualificam outros substantivos que vêm a seguir (map, tower, fraud).
Algo apenas ligeiramente mais complexo é a frase Paul loves space-related issues ("Paul adora assuntos relacionados com o espaço."). Noutro exemplo, "Eles estão hospedados num hotel de cinco estrelas", diremos They are staying at a five-star hotel. Vejamos agora uma frase mais longa, mas não necessariamente mais complexa: They had to build a 10-kilometer-long, 80-meter-wide fire break to control the conflagration. ("Viram-se forçados a construir uma barreira para o fogo com dez quilómetros de comprimento por 80 metros de largura a fim de controlar aquele incêndio de grandes proporções.")
Que conclusões significativas podemos extrair destes exemplos? 1. Os qualificativos, sejam eles adjectivos ou substantivos, precedem aquilo que qualificam. 2. Os qualificativos, sejam eles adjectivos ou substantivos, ficam imutáveis em género (masculino, feminino, neutro) e em número (singular, plural).
Aqui será talvez importante perguntar por que motivo se diz road map (e não roads map ou mesmo roads’ map, como alguns alunos decerto pretenderiam). A resposta está no enunciado atrás. O qualificativo é imutável, quer ele seja substantivo ou adjectivo. Se quisermos, trata-se de um substantivo-adjectivo. Por outro lado, não pode ser roads’ map porque as estradas não "possuem" o mapa. As coisas, dado que não têm querer, em princípio não podem possuir outras. Qualificam-nas, isso sim. Por esse motivo se diz, por exemplo, ticket office para posto de venda de bilhetes (bilheteira) e não tickets’ office.
Resulta bem junto de alunos a imagem de que o qualificativo funciona como um auto-colante pré-definido, um sticker que se cola a uma pessoa ou a uma coisa, tal como um dístico que se cole no dorso ou no peito de um atleta numa corrida. O dístico "13ª Maratona de Lisboa" é igual tanto para um homem como para uma mulher. O qualificativo é, por assim dizer, abstractizado, pelo que não muda. O que pode mudar é aquilo que é qualificado, tanto de masculino para feminino (homem/mulher), como de singular para plural ou plural para singular.
No exemplo dado - They are staying at a five-star hotel -, por que motivo não se dirá a five-stars hotel ou mesmo a five-stars’ hotel? Quem entendeu a explicação de road map é capaz de transferir aquilo que assimilou para este exemplo. Se não consegue, é porque não compreendeu a explicação anterior, que é, aliás, válida para o outro exemplo dado: They had to build a 10-kilometre-long, 80-metre-wide fire break to control the conflagration.
Nunca será demais acentuar a importância do facto de, em inglês, o último elemento ser o mais importante, como é característico das línguas germânicas. Notemos a diferença flagrante relativamente ao português no exemplo comum encontrado nas nossas estradas e ruas: "Velocidade controlada por radar." Em inglês seria, naturalmente, Radar-controlled speed. Altera-se assim a estrutura normal da frase, com o último elemento (speed) a não corresponder ao último elemento português.
Uma explicação global e simples deste género ajuda sobremaneira os alunos a entender o caso possessivo e a vê-lo sob a mesma lógica das frases atrás. Assim, em John’s mother (a mãe do João), temos exactamente a mesma coisa – é o último elemento o mais importante e não o primeiro. O apóstrofo expressa apenas aquilo a que chamamos, como se fosse algo isolado e não fizesse parte integrante da mesma estrutura da língua acima referida, "o caso possessivo" (as pessoas podem possuir, têm querer, ao contrário das coisas.) Jim’s father, Cecilia’s husband, etc. seguem o mesmo princípio, obviamente.
Insistir neste aspecto parece-me crucial - sendo a prática através de exercícios interessantes e diversificados obviamente necessária - porque a estrutura mental portuguesa é diferente e, na sua diferença, leva vários alunos por vezes razoáveis a escreverem algo como his husband e her wife, quando baralham o qualificativo e o qualificado. Eles sabem que deveriam ter escrito her husband e his wife (a não ser que se trate de casamentos entre pessoas do mesmo sexo), mas a sua ordem de palavras em inglês não está ainda suficientemente automatizada.
Uma explicação integrada mas perfeitamente acessível, em vez da simples anotação de que "os adjectivos vêm sempre antes dos substantivos e não mudam na sua forma", parece-me bastante útil. Facilita a compreensão oral e a leitura, vai ao miolo estrutural da língua e diminui os erros que, inevitavelmente, surgem aqui e ali.
Um último exemplo reúne vários dos pontos acima referidos: Gunga Din is one of Rudyard Kipling’s most famous poems, perhaps best known for its often-quoted last line, You’re a better man than I am, Gunga Din. Tente dar-se aos alunos para tradução para inglês "Gunga Din é um dos poemas mais famosos de Rudyard Kipling, talvez mais conhecido pelo seu último verso, que é frequentemente citado: És um homem melhor do que eu, Gunga Din". Compare-se depois com a frase original.
P.S. Diz-me a experiência que convém insistir em pontos que são frequentemente confundidos pelos alunos mais fracos: tanto other como different, certain e os (adjectivos) possessivos our, your e their são qualificativos. Por esse motivo, others cities, differents languages, certains aspects, ours parents, yours friends e theirs problems são coisas que têm que ser revistas urgentemente. São estruturais.

2/16/2008

A poluítica está cada vez mais actual

Confesso estar a ficar seriamente preocupado com a credibilidade dos governantes e dos políticos em geral. Ouço cada vez mais falar em tachos de políticos e actos lesivos do interesse público que esses mesmos políticos cometem. Acabo de receber por e-mail uma lista, muito incompleta como o seu autor afirma, recheada de nomes de ex-políticos que se alaparam em empresas privadas e públicas, com óptimos lugares e esplêndidas remunerações.
O conflito entre a coisa pública e o sector privado agudiza-se e é do domínio geral que muitos dos políticos prometedores de mundos e fundos aquando de eleições soçobram no lamaçal da promiscuidade. O juramento de fidelidade à nação que prestam na altura da sua tomada de posse é demasiadas vezes esquecido em face da necessidade de fidelidade ao partido ou, eventualmente, de promessas feitas pessoalmente a financiadores privados. A imprensa traz-nos histórias sem fim. O leitor já nem antegoza o prazer de ver o mau ou o vilão serem punidos. Revolta-se, pelo contrário, com aquilo que a experiência lhe tem mostrado ser bem mais frequente: levantamento de inquéritos que em nada resultam ou arrastamento de processos judiciais sem verdadeiros culpados no final. Como que em resposta, os políticos saem com mais legislação, corroborando o velhíssimo corruptissima republicae, plurimae leges. Agora até a transcrição nos media de escutas telefónicas é proibida por lei!
Com um país cada vez mais escandalosamente desigual no que respeita à distribuição de rendimentos, a situação torna-se perigosa. Relembro uma frase recente de T. Mbeka: "Uma sociedade caracterizada por ilhas de riqueza rodeadas por um mar de pobreza é insustentável." Enquanto a maioria da população assiste a uma crescente precariedade dos seus empregos, nota que os privilegiados caminham sobre a água, indiferentes a tudo. As pessoas honestas são rotuladas de parvas por não quererem nem saberem recorrer a estratagemas. Entende-se que, no presente cenário deste país, a honestidade de pessoas seja mais vista como empecilho do que como trunfo. Há uma outra honestidade que interessa. Essa escreve-se mentalmente sem h- inicial: "onestidade" (como se já tivesse havido uma revisão ortográfica). Esta onestidade é a das pesoas que proclamam a correcção das suas acções perante a lei. Insistirão sempre que os seus actos não foram ilegais. Se inquiridos se esses mesmos actos foram éticos, descartarão a impertinência com uma despudorada insistência: "Foram ilegais?" E por aí fora caminham, endireitando-se a si próprios materialmente ao mesmo tempo que entortam a população na sua crença nas pessoas que deveriam servir de bom exemplo. Conseguem ser suficientemente desavergonhados para insinuar que o que leva a população a questioná-los é apenas um sentimento de inveja. Estão tão envenenados no seu cérebro e tão cegos na sua arrogância e impunidade que é isso que lhes ocorre, talvez sinceramente até. Com isso se auto-desculpam. Até quando isto durará é impossível dizer. Mas de que se está a construir um país apodrecido, inimigo do trabalho e desconfiado de tudo e de todos, não tenho a mínima dúvida.

2/13/2008

Índia (II)




Como é natural que suceda depois de uma viagem, há amigos que nos fazem perguntas e pedem opiniões. Ora, não só as opiniões dos próprios residentes dum país são consideravelmente diferentes de pessoa para pessoa como, obviamente, quem esteve menos de três semanas num país não está, por isso mesmo, abalizado a dar respostas categóricas. Mesmo assim, por vezes o viajante tem, a par de notórias desvantagens, alguns trunfos sobre a maioria dos residentes nativos: os seus termos de comparação são mais vastos, as suas leituras de textos preparatórios da viagem fizeram-lhe dar um salto em frente, e a maneira como depois, in loco, lê os jornais, vê televisão, conversa com habitantes locais e, principalmente, observa o dia-a-dia das pessoas e das povoações, sempre atento às diferenças relativamente às outras culturas que conhece - tudo isso permite-lhe formar uma opinião mais ou menos objectiva.
Quem, em Portugal, lê notícias sobre a Índia, recebe por vezes informações que podem desvirtuar a realidade. O neoconservadorismo que controla muitas fontes informativas assenta em vários pilares, entre os quais avulta o do Produto Interno Bruto (PIB), e chega a conclusões que podem não ser assim tão conclusivas. O facto de o PIB de um determinado país aumentar não quer necessariamente dizer que a respectiva população esteja a viver proporcionalmente melhor. De facto, a despeito daquilo que é propalado pelos tonitroantes defensores da globalização, tem havido um aumento das desigualdades à escala mundial, quer entre países, quer no seio dos próprios países, e não um maior nivelamento. Os números mostram-nos que, tomando como base de referência a década de 60, a fatia reservada aos salários auferidos pelos trabalhadores nos países desenvolvidos ocupa hoje a menor percentagem do PIB de sempre. Isto quer dizer, afinal, que a globalização tem sobretudo beneficiado as grandes multinacionais e o capital financeiro. Quanto às populações, elas recebem apenas uma parte reduzida desse benefício.
Pessoalmente, esta situação recorda-me o que uma vez presenciei numa viagem ao norte de Portugal. Na lindíssima zona das albufeiras do Cávado, constatei que, apesar da construção de grandes barragens e do transporte de muita electricidade por elas gerada, havia um número considerável de casas modestas que se limitavam a "ver" os cabos passar-lhes por cima e não possuíam elas próprias luz eléctrica. Comparativamente, o PIB também passa por cima de muitas casas nas quais não entra.
Ainda há dias, o director do jornal Público, José Manuel Fernandes (JMF), que esteve recentemente menos de 48 horas na Índia, escreveu que sentiu "a vertigem da mudança e que a inércia do imenso país que já se pôs em movimento o irá projectar, num prazo curtíssimo, para o clube daquilo que nos habituámos a designar como potências." Falou ainda de "empresas europeias e americanas que se mudam para a Índia não à procura de mão-de-obra barata, mas de mão-de-obra muito qualificada".
Se pudesse, teria muito gosto em assinar por baixo frases deste tipo. Grosso modo, constatei com grande prazer a vertigem da mudança, vi um povo imensamente activo e trabalhador e, o que é mais, motivado pela propaganda governamental. Encontrei um tom fortemente nacionalista nos jornais e apreciei a motivação da maior parte das pessoas que contactei, crentes de que dentro de uns cinco a dez anos terão um país completamente diferente, a ombrear com as nações mais desenvolvidas do mundo, as tais potências a que JMF se refere.
Infelizmente, esta parece-me ser apenas mais uma promessa (conscientemente incumprível) do pensamento neoconservador. Em certos domínios, o atraso da Índia - que poderia, naturalmente, não ser tão acentuado como é, pois tem cérebros brilhantes e teve períodos notáveis na sua história - cifra-se ainda hoje em indicadores económicos e sociais incontornáveis. O PIB per capita é, segundo os dados de que disponho, bem mais de 10 vezes inferior ao de Portugal. A esperança de vida está nos 63 anos (a nossa chega aos 78). A despeito do esforço evidente que o governo indiano faz no capítulo da educação, a taxa de alfabetização dos indivíduos com mais de 15 anos cifra-se em 61 por cento (em Portugal é de 93 por cento). A Índia gasta 4,1% do montante do PIB na educação, enquanto que Portugal investe quase 6 por cento. Os gastos públicos indianos com a saúde são da ordem de 1,3 por cento do PIB, o que é pouco se comparado com os 6 por cento do nosso país. A taxa populacional das áreas rurais é de 60 por cento, enquanto que em Portugal já é inferior a 40 por cento. Com os seus 345 habitantes por quilómetro quadrado, a Índia é um país com elevada densidade populacional (Portugal regista 114 hab/km2). Menciono ainda que nenhuma das várias pessoas que trabalharam comigo no campo do turismo e a quem coloquei a pergunta efectuava descontos para a segurança social.
Além disso, o que se vê nas estradas e nas ruas não é passível de ser mudado no "prazo curtíssimo" que JMF refere. A grande maioria dos autocarros usados nos transportes citadinos não passaria nos nossos centros de inspecção de viaturas. O transporte de pessoas empoleiradas na parte de fora de pequenos veículos é cena frequente nas estradas e nas ruas. Locais de venda de legumes e fruta em condições higiénicas que a ASAE nunca aprovaria são aos milhares. A falta de passeios em determinadas cidades é gritante. O lixo acumulado nas ruas e noutros locais é indesmentível, contrastando por vezes com o arranjo impecável dos jardins e relvados dos melhores hotéis situados dentro da mesma zona urbana.
Por outro lado, é verdade que existe uma enorme percentagem de população jovem - 70 por cento dos indianos têm menos de 35 anos de idade -, o que constitui um activo muito favorável. O país possui um vasto campo de progresso, só que é algo que não se faz com um simples estalar de dedos. É inegável, também, que existe uma azáfama constante nas urbes, com pessoas ansiosas por trabalhar. Mas é igualmente um facto que os salários são muito baixos. O que JMF diz relativamente a mão-de-obra muito qualificada não é falso, mas o que ele omite é que essa mão-de-obra, apesar de ganhar muito acima da média salarial indiana, é mesmo assim substancialmente mais barata do que a ocidental. Por outro lado, custa ver pessoas de idade, briosas mas já com muitos cabelos brancos, a terem de ganhar o seu pão pedalando penosamente nas cidades a transportar pessoas ou mercadorias de toda a ordem.
A Índia é um país fascinante, que adorei visitar, mas é preciso que não a tratem meramente como uma empresa produtora de bens e serviços. Nem só de PIB vive o homem. O fascínio da Índia deriva da grande diversidade que ela encerra, da muita cor que ostenta, do bulício tremendo das cidades, da vasta gama de religiões, da simpatia e pacifismo do povo, da sua história, dos seus belos monumentos e, muito, dos mil e um pormenores de usos e costumes que contrastam interessantemente com os nossos e podem contribuir para enriquecer a nossa filosofia de vida.

2/09/2008

O arcebispo

A palavra "Cantuária" produz em mim sentimentos contraditórios. A melhor memória que ela me traz é, sem dúvida, a dos Canterbury Tales, da autoria do consagrado pai da literatura inglesa, Geoffrey Chaucer, contemporâneo da nossa rainha Filipa de Lencastre. A pior, para além da trágica história de Saint Thomas Becket, é a tradução do nome para português, que me lembra que os mesmos puristas que fizeram a tradução de Canterbury para Cantuária também pretendiam que Oxford fosse Oxónia e Cambridge Cantabrígia. Felizmente que a sua proposta não pegou.
Entretanto, quem pegou agora na palavra foi o arcebispo de Cantuária que, ficámos a saber, se chama Rowan Williams e botou discurso na BBC Radio sobre a comunidade muçulmana no Reino Unido. Para pasmo de muita gente, manifestou-se a favor da introdução da Sharia no seu país. A Sharia, que este blogue já abordou pelo menos uma vez a propósito de investimentos de países do Médio Oriente, é a lei islâmica, baseada na interpretação do Corão. Como código de conduta, regula múltiplos aspectos da vida dos muçulmanos, desde a sua alimentação à maneira de vestir, punindo situações como o adultério, o roubo e o consumo de bebidas alcoólicas. Alguns dos princípios corânicos estão instituídos sob a forma de leis, que são aplicadas pelos tribunais, v.g. heranças, contratos, investimentos, casamentos. O que o arcebispo disse foi que os muçulmanos devem poder escolher entre a lei britânica e a Sharia em assuntos tão diversos como disputas conjugais e questões económico-financeiras.
Há, entre nós, um ditado bem conhecido que nos diz: "Em Roma, sê romano". A comunidade emigrante portuguesa tem cumprido este preceito à risca. Passa geralmente despercebida noutros países. Integra-se nas sociedades estrangeiras sem fazer grandes ondas.
Como professor, tive vários alunos muçulmanos que cumpriam as suas regras mas estavam igualmente integrados nas nossas. Os feriados portugueses eram os seus feriados, o que não queria dizer que não tivessem as suas festas próprias, o seu Ramadão, etc. Tive também alunos de outros credos, que contestavam exames ao sábado, e que submetiam ao Conselho Directivo a sua pretensão de não realizar exames nesse dia. Acredito que, para um grande número de pessoas, a procura de melhores condições de trabalho num país estrangeiro implique alguns constrangimentos, mas esse é, certamente, o preço a pagar por benefícios que elas também colhem. Afinal, são os emigrantes que procuram voluntariamente um determinado país, e não é esse país que vai buscá-los à sua origem.
Se a existência de uma lei, com todas as suas interpretações possíveis, já causa embaraços, imagine-se agora a coexistência de leis diversas no mesmo mercado de trabalho!
Regressei há semanas de um país estrangeiro, a Índia, onde desde há séculos existem, com altos e baixos, problemas entre a comunidade hindu e a muçulmana. A hindu é bem mais numerosa - cerca de 80 por cento da população -, mas os 12 por cento de muçulmanos constituem qualquer coisa como 130 milhões de pessoas. Em Delhi notei algo que, admito, me fez pensar um bocado. Junto ao hotel onde fiquei, existia uma mesquita, o que nada tem de extraordinário. De extraordinário - para mim, pelo menos - teve no entanto o facto de, diariamente, um pouco antes das 6 horas da manhã surgir a voz do muezzin, amplificada por poderosos altifalantes, com o seu chamamento dos fiéis à oração. Suponho que acordava toda a vizinhança. Pensei para mim que se a cena se passasse no nosso Bairro Azul, aqui em Lisboa, ela causaria decerto alguma perturbação. Em Delhi, talvez pela existência naquele bairro de uma larguíssima comunidade muçulmana, não me pareceu causar grande polémica.
À memória vem-me um episódio que vivi na guerra colonial, em Angola. Como comandante das primeiras tropas que se instalaram em Cabo Ledo, a sul de Luanda, para proteger as riquíssimas jazidas de petróleo da zona e, obviamente, as pessoas que lá trabalhavam, notei que o pessoal trabalhava por turnos, muitos dos quais eram durante a noite. Como o nosso aquartelamento ficava dentro da zona do acampamento da companhia petrolífera, disse para mim que seria melhor não acordar toda aquela gente com o cornetim matinal. Assim, o corneteiro tocava apenas aos domingos, cerca das 11 horas, quando era hasteada a bandeira nacional. A minha decisão foi bem recebida, tanto pelas tropas como pelo pessoal do acampamento. Talvez por este motivo eu tivesse tido que reflectir agora quando, na capital indiana, acordei sobressaltado ao som da voz do muezzin do alto da torre da mesquita.
Considero que o arcebispo não reflectiu bem na sua proposta, ou então cedeu apenas ao politicamente correcto. Democraticamente, aquilo que propõe para os muçulmanos teria de ser válido para outras comunidades que o requeressem. Já se pensou na balbúrdia que isso causaria? The rule of law é uma coisa, já de si não fácil. A comunidade judaica teria também direito à sua própria lei? E a chinesa? A italiana? Recomenda-se ao arcebispo que não vá para Espanha proclamar o mesmo. Arrisca-se a que Juan Carlos lhe lance a sua tirada mais célebre.

2/08/2008

Luta pela vida


Pouco passava das oito da manhã. Temperatura amena, a rondar os 18º C., que os habitantes locais consideravam baixa. De Inverno, embora ensolarado. Pacificamente, dois cães buscavam restos de comida nos sacos que se acumulavam junto de um grande contentor. Um homem dos serviços municipais ia varrendo o espaço à volta, limpando o mais que podia. O asseio nunca é muito nas ruas de Jaipur, mas uma varridela sempre melhora as coisas. Os cães farejavam tudo. A certa altura, um deles deu com um saco de plástico, fechado e ainda com restos de comida. Antegozou decerto um lauto pequeno-almoço. Sem olhar para o colega de ofício - amigos, amigos, negócios à parte - abocanhou o saco e correu velozmente dali para fora. O outro olhou e, por breves momentos, ensaiou uma corrida no encalço do felizardo. Ter-lhe-á passado depois qualquer coisa pela cabeça ou ter-lhe-ão faltado as forças e, na pacífica e resignada Índia, desistiu da corrida. Voltou sozinho para o contentor. O primeiro prémio já não apanharia, mas talvez tivesse ainda direito a alguma terminação.
Só vi a cena nesse dia, mas não me custa imaginar que ela é algo recorrente. Os baldes de rua, as latas e os contentores são, a determinadas horas, os locais preferidos de cães, cabrinhas e até das consagradas vacas, que cheguei a ver comer sacos de plástico vazios. A luta pela sobrevivência é grande.

2/06/2008

O sistema e a liberdade

Tomemos a seguinte asserção: um cargo elevado representa um acréscimo de responsabilidade para quem o detém e confere a essa pessoa maior liberdade. Certo? Não necessariamente. De facto, uma nomeação ou uma promoção implica geralmente uma maior dose de responsabilidade, mas quanto a maior liberdade é muito duvidoso que isso aconteça. Direi mesmo que a liberdade, pelo menos em determinados domínios, tende a ficar diminuída. A linguagem informal e descontraída de que anteriormente o indivíduo usufruía perde-se. As palavras passam a ser mais sopesadas, o à-vontade do discurso espontâneo desaparece. Entra a langue de bois ou o newspeak. Só mesmo numa roda de amigos íntimos e com a família é que a mesma pessoa de sempre pode a espaços surgir, franca e aberta. A supressão da liberdade é o resultado directo da entrada no famoso "sistema", onde as verdades mais cruas existem e onde se aprende a vender mentiras doces como rebuçados convenientemente embrulhados para desviar as atenções dos objectivos reais.
F.S. não é um grande amigo meu, mas conhecemo-nos há longos anos, jogámos futebol juntos muitas vezes, sempre nos tratámos por tu. Ele é mais novo do que eu, inteligente e com um doutoramento de prestígio. Há poucos anos foi nomeado para um cargo governamental importante. Embora a sua simpatia se mantivesse, ele modificou-se. O F. , que sempre teve gargalhada fácil, ria-se menos. Um dia, uma remodelação afastou-o. "Felizmente!", desabafou ele comigo. "Fazes lá ideia! Tens que ter muito cuidado com a língua. Então o que dizes aos jornais pode ser fogo!" Gostei de o ver no verão passado festejar com um vibrante salto o golo que acabava de marcar no nosso jogo de praia.
Há uns sete anos, calhei ir ao Hotel Ritz, por convite puramente ocasional, a uma conferência organizada por um jornal económico. Estava lá a fina flor da nossa economia e finança. O primeiro-ministro era na altura o António Guterres, que foi aliás o primeiro orador devido a outros compromissos. Descontraído e num meio cuidadosamente seleccionado, referiu a certo passo do seu improviso que a União Europeia pretendia, naturalmente, rivalizar com os Estados Unidos. Teve de imediato, e em jeito de brincadeira, um reparo, feito em voz baixa mas audível pelo microfone, do seu vizinho de mesa, Belmiro de Azevedo: "Atenção, isso não se pode dizer!"
É isso. Há coisas que se podem dizer e outras que não. No geral, há que ter mais cuidado com a língua. Ninguém espera que um indivíduo com alta responsabilidade condene o sistema. Foi, afinal, isto o que sucedeu com o actual bastonário da Ordem dos Advogados, Marinho Pinto. Fresco no lugar e impulsivo por natureza, trompeteou cá para fora aquilo que costumava dizer antes e que várias vezes tinha escrito em artigos. Teve, mais uma vez, toda a razão no que disse. A reacção do sistema, atacando-o, foi sintomática. Será preciso perguntar porquê?

2/02/2008

Breve nota de viagem




Há viagens que se fazem e desfazem num instante. Na memória ficam dias passados num ambiente diferente do quotidiano, umas tantas visitas culturais e algumas compras, a que se juntam fotografias e episódios engraçados para mostrar e narrar a familiares e amigos. Outras viagens há, porém, que nos marcam indelevelmente, por vezes sem sabermos definir concretamente porquê. Pessoalmente, já tive essa experiência em pelo menos dois casos: México e Brasil. Foram ambas viagens que me deixaram profundas impressões, não só pela sua relativa extensão temporal, como também pelo envolvimento directo com as populações no seu dia-a-dia e o background cultural que me foi proporcionado.
Agora, a Índia conseguiu ser ainda mais marcante. Não sei se pela experiência entretanto acumulada, sinto que o impacto foi muito profundo. A Índia, de que naturalmente visitei apenas uma parte - mesmo assim significativa - revelou-se logo à partida com uma surpresa agradabilíssima para quem temia o pior: nesta época do ano, o clima é ameno, não há chuvas nem calores excessivos. A temperatura é primaveril, os dias ensolarados. Este foi o substrato ideal para uma viagem que foi feita apenas a dois, sem aquelas maçadas de grupos e guias a condicionarem-nos o tempo. Havia um programa para cumprir, é certo, mas com a largueza suficiente para nos proporcionar liberdade de acção e alternativas. O facto de em 16 dias termos utilizados nas deslocações vários meios de transporte, desde o automóvel ao avião, passando pelo comboio e pelo barco, além de, localmente, pelos inevitáveis rickshaws e tuc-tucs, contribuiu para a ampla escala de variedade dos nossos dias de viagem.
Começar por Bombaim, cidade costeira do Mar Arábico e do Malabar, foi uma esplêndida opção. Com os seus 18 milhões de habitantes, a cidade que foi portuguesa durante algumas décadas revelou-se uma urbe de vida intensíssima e de acentuados contrastes, que são outros tantos espelhos da sociedade indiana. Existem, além disso, fortes marcas da presença inglesa de três séculos.
Goa foi o nosso segundo salto. As evocações que o próprio nome de Goa produz num português nascido antes dos anos 60 são fundas. Revelou-se terra hospitaleira, ainda com numerosos traços da presença lusa e trouxe-me nostalgicamente à memória a África colonial que conheci com os seus palmares, coqueiros, plantações de cana-de-açúcar, casas ao estilo português e até música tradicional dançada por e para indianos, como o malhão e o corridinho.
A outra Índia, quiçá menos europeia e mais mogol, revelou-se com Delhi, Jaipur e Agra, esta a menos interessante das cidades mas possuidora do justamente famoso Taj Mahal. A par de arte esteticamente muito bonita - de agrado garantido tanto para orientais como para ocidentais - deparou-se-nos a clivagem evidente entre um estilo de vida dos marajás de outrora e o patente estado de dificuldades materiais da generalidade da população, que hoje já ultrapassa mil milhões. Digamos entretanto, para não focar demasiado a nossa atenção no verdadeiro fosso existente entre os mais ricos e os mais pobres, que a cor dos saris das mulheres e a serenidade temperamental das gentes ajudam a formar uma atmosfera que pode ser fascinante e que inclui uma frenética actividade de sobrevivência em muitos locais urbanos. Inquestionavelmente, a beleza dos monumentos choca com o lixo acumulado nas povoações, com a incúria das autoridades administrativas e com animais mais ou menos sagrados à solta nas ruas e mesmo na estrada junto a localidades. O trânsito pode ser caótico, mas simultaneamente ordeiro - sem impropérios palavrosos dos automobilistas e motociclistas, embora as apitadelas sejam uma constante até depois de o sol se pôr. Não se espere da Índia um país altamente respeitador das regras de trânsito. Os traços contínuos, mesmo se duplos, são muitas vezes colocados a meio do rodado dos veículos a fim de melhor proporcionarem ultrapassagens. A lotação das viaturas é por norma excedida. Seguimos de automóvel e, ao nosso lado, está uma carroça puxada por um camelo, outra ali por bois, outra ainda por um cavalito. Em determinadas zonas podem encontrar-se elefantes na estrada. Compreendemos assim, in loco, que, com este desalinhamento todo, a Índia só pudesse nos tempos da Guerra Fria ter integrado o grupo dos países não-alinhados.
Na generalidade, os salários são muito baixos, mas existe presentemente um claro investimento na educação, aliás reconhecido pelo povo indiano. O Produto Interno Bruto do país tem aumentado a olhos vistos, em grande parte devido à mão-de-obra barata que o Ocidente vem utilizando através dos seus investimentos no país. É o outsourcing da globalização. Todavia, o PIB é, per se, um elemento enganador: a desigual distribuição da riqueza é gritante. É ainda o resquício do sistema de castas, banido da Constituição mas que se mantém actuante.
Não esqueçamos, entretanto, os odores fortes da terra e dos frutos, dos mercados e das pessoas. Na viagem a que aludo houve ainda que caminhar sobre duas poldras finais para chegarmos à outra margem: a primeira foi uma pequena povoação chamada Khajuraho, uma maravilha única para os ocidentais, que se kamassutram fotograficamente perante os grupos escultóricos mais eróticos do mundo no exterior de vários templos hindus. A outra foi a visita a Varanasi, a antiga Benares, cidade do Ganges sagrado. Foi lá que um indiano me disse: "We have four mothers: Mother Cow, Mother Ganga, motherland, and our own mother." O Ganga, esclareça-se, é o Ganges, que assume género feminino na sua estreita ligação com a espiritualidade intensa dos indianos e na sua relação com a morte por cremação.
Muito, muitíssimo mais haveria para dizer, por exemplo sobre a amálgama de religiões, com hindus, muçulmanos, sikhs, cristãos e budistas a conviverem lado a lado. "Oh, East is East, West is West, and never the twain shall meet" é a clássica frase de Rudyard Kipling, ele próprio nascido na Índia. Para mim, a viagem foi uma amálgama fascinante. Direi apenas a terminar que, uma semana depois de ter regressado, aíndia sonho com ela durante a noite.