2/13/2008

Índia (II)




Como é natural que suceda depois de uma viagem, há amigos que nos fazem perguntas e pedem opiniões. Ora, não só as opiniões dos próprios residentes dum país são consideravelmente diferentes de pessoa para pessoa como, obviamente, quem esteve menos de três semanas num país não está, por isso mesmo, abalizado a dar respostas categóricas. Mesmo assim, por vezes o viajante tem, a par de notórias desvantagens, alguns trunfos sobre a maioria dos residentes nativos: os seus termos de comparação são mais vastos, as suas leituras de textos preparatórios da viagem fizeram-lhe dar um salto em frente, e a maneira como depois, in loco, lê os jornais, vê televisão, conversa com habitantes locais e, principalmente, observa o dia-a-dia das pessoas e das povoações, sempre atento às diferenças relativamente às outras culturas que conhece - tudo isso permite-lhe formar uma opinião mais ou menos objectiva.
Quem, em Portugal, lê notícias sobre a Índia, recebe por vezes informações que podem desvirtuar a realidade. O neoconservadorismo que controla muitas fontes informativas assenta em vários pilares, entre os quais avulta o do Produto Interno Bruto (PIB), e chega a conclusões que podem não ser assim tão conclusivas. O facto de o PIB de um determinado país aumentar não quer necessariamente dizer que a respectiva população esteja a viver proporcionalmente melhor. De facto, a despeito daquilo que é propalado pelos tonitroantes defensores da globalização, tem havido um aumento das desigualdades à escala mundial, quer entre países, quer no seio dos próprios países, e não um maior nivelamento. Os números mostram-nos que, tomando como base de referência a década de 60, a fatia reservada aos salários auferidos pelos trabalhadores nos países desenvolvidos ocupa hoje a menor percentagem do PIB de sempre. Isto quer dizer, afinal, que a globalização tem sobretudo beneficiado as grandes multinacionais e o capital financeiro. Quanto às populações, elas recebem apenas uma parte reduzida desse benefício.
Pessoalmente, esta situação recorda-me o que uma vez presenciei numa viagem ao norte de Portugal. Na lindíssima zona das albufeiras do Cávado, constatei que, apesar da construção de grandes barragens e do transporte de muita electricidade por elas gerada, havia um número considerável de casas modestas que se limitavam a "ver" os cabos passar-lhes por cima e não possuíam elas próprias luz eléctrica. Comparativamente, o PIB também passa por cima de muitas casas nas quais não entra.
Ainda há dias, o director do jornal Público, José Manuel Fernandes (JMF), que esteve recentemente menos de 48 horas na Índia, escreveu que sentiu "a vertigem da mudança e que a inércia do imenso país que já se pôs em movimento o irá projectar, num prazo curtíssimo, para o clube daquilo que nos habituámos a designar como potências." Falou ainda de "empresas europeias e americanas que se mudam para a Índia não à procura de mão-de-obra barata, mas de mão-de-obra muito qualificada".
Se pudesse, teria muito gosto em assinar por baixo frases deste tipo. Grosso modo, constatei com grande prazer a vertigem da mudança, vi um povo imensamente activo e trabalhador e, o que é mais, motivado pela propaganda governamental. Encontrei um tom fortemente nacionalista nos jornais e apreciei a motivação da maior parte das pessoas que contactei, crentes de que dentro de uns cinco a dez anos terão um país completamente diferente, a ombrear com as nações mais desenvolvidas do mundo, as tais potências a que JMF se refere.
Infelizmente, esta parece-me ser apenas mais uma promessa (conscientemente incumprível) do pensamento neoconservador. Em certos domínios, o atraso da Índia - que poderia, naturalmente, não ser tão acentuado como é, pois tem cérebros brilhantes e teve períodos notáveis na sua história - cifra-se ainda hoje em indicadores económicos e sociais incontornáveis. O PIB per capita é, segundo os dados de que disponho, bem mais de 10 vezes inferior ao de Portugal. A esperança de vida está nos 63 anos (a nossa chega aos 78). A despeito do esforço evidente que o governo indiano faz no capítulo da educação, a taxa de alfabetização dos indivíduos com mais de 15 anos cifra-se em 61 por cento (em Portugal é de 93 por cento). A Índia gasta 4,1% do montante do PIB na educação, enquanto que Portugal investe quase 6 por cento. Os gastos públicos indianos com a saúde são da ordem de 1,3 por cento do PIB, o que é pouco se comparado com os 6 por cento do nosso país. A taxa populacional das áreas rurais é de 60 por cento, enquanto que em Portugal já é inferior a 40 por cento. Com os seus 345 habitantes por quilómetro quadrado, a Índia é um país com elevada densidade populacional (Portugal regista 114 hab/km2). Menciono ainda que nenhuma das várias pessoas que trabalharam comigo no campo do turismo e a quem coloquei a pergunta efectuava descontos para a segurança social.
Além disso, o que se vê nas estradas e nas ruas não é passível de ser mudado no "prazo curtíssimo" que JMF refere. A grande maioria dos autocarros usados nos transportes citadinos não passaria nos nossos centros de inspecção de viaturas. O transporte de pessoas empoleiradas na parte de fora de pequenos veículos é cena frequente nas estradas e nas ruas. Locais de venda de legumes e fruta em condições higiénicas que a ASAE nunca aprovaria são aos milhares. A falta de passeios em determinadas cidades é gritante. O lixo acumulado nas ruas e noutros locais é indesmentível, contrastando por vezes com o arranjo impecável dos jardins e relvados dos melhores hotéis situados dentro da mesma zona urbana.
Por outro lado, é verdade que existe uma enorme percentagem de população jovem - 70 por cento dos indianos têm menos de 35 anos de idade -, o que constitui um activo muito favorável. O país possui um vasto campo de progresso, só que é algo que não se faz com um simples estalar de dedos. É inegável, também, que existe uma azáfama constante nas urbes, com pessoas ansiosas por trabalhar. Mas é igualmente um facto que os salários são muito baixos. O que JMF diz relativamente a mão-de-obra muito qualificada não é falso, mas o que ele omite é que essa mão-de-obra, apesar de ganhar muito acima da média salarial indiana, é mesmo assim substancialmente mais barata do que a ocidental. Por outro lado, custa ver pessoas de idade, briosas mas já com muitos cabelos brancos, a terem de ganhar o seu pão pedalando penosamente nas cidades a transportar pessoas ou mercadorias de toda a ordem.
A Índia é um país fascinante, que adorei visitar, mas é preciso que não a tratem meramente como uma empresa produtora de bens e serviços. Nem só de PIB vive o homem. O fascínio da Índia deriva da grande diversidade que ela encerra, da muita cor que ostenta, do bulício tremendo das cidades, da vasta gama de religiões, da simpatia e pacifismo do povo, da sua história, dos seus belos monumentos e, muito, dos mil e um pormenores de usos e costumes que contrastam interessantemente com os nossos e podem contribuir para enriquecer a nossa filosofia de vida.

Sem comentários:

Enviar um comentário