2/06/2008

O sistema e a liberdade

Tomemos a seguinte asserção: um cargo elevado representa um acréscimo de responsabilidade para quem o detém e confere a essa pessoa maior liberdade. Certo? Não necessariamente. De facto, uma nomeação ou uma promoção implica geralmente uma maior dose de responsabilidade, mas quanto a maior liberdade é muito duvidoso que isso aconteça. Direi mesmo que a liberdade, pelo menos em determinados domínios, tende a ficar diminuída. A linguagem informal e descontraída de que anteriormente o indivíduo usufruía perde-se. As palavras passam a ser mais sopesadas, o à-vontade do discurso espontâneo desaparece. Entra a langue de bois ou o newspeak. Só mesmo numa roda de amigos íntimos e com a família é que a mesma pessoa de sempre pode a espaços surgir, franca e aberta. A supressão da liberdade é o resultado directo da entrada no famoso "sistema", onde as verdades mais cruas existem e onde se aprende a vender mentiras doces como rebuçados convenientemente embrulhados para desviar as atenções dos objectivos reais.
F.S. não é um grande amigo meu, mas conhecemo-nos há longos anos, jogámos futebol juntos muitas vezes, sempre nos tratámos por tu. Ele é mais novo do que eu, inteligente e com um doutoramento de prestígio. Há poucos anos foi nomeado para um cargo governamental importante. Embora a sua simpatia se mantivesse, ele modificou-se. O F. , que sempre teve gargalhada fácil, ria-se menos. Um dia, uma remodelação afastou-o. "Felizmente!", desabafou ele comigo. "Fazes lá ideia! Tens que ter muito cuidado com a língua. Então o que dizes aos jornais pode ser fogo!" Gostei de o ver no verão passado festejar com um vibrante salto o golo que acabava de marcar no nosso jogo de praia.
Há uns sete anos, calhei ir ao Hotel Ritz, por convite puramente ocasional, a uma conferência organizada por um jornal económico. Estava lá a fina flor da nossa economia e finança. O primeiro-ministro era na altura o António Guterres, que foi aliás o primeiro orador devido a outros compromissos. Descontraído e num meio cuidadosamente seleccionado, referiu a certo passo do seu improviso que a União Europeia pretendia, naturalmente, rivalizar com os Estados Unidos. Teve de imediato, e em jeito de brincadeira, um reparo, feito em voz baixa mas audível pelo microfone, do seu vizinho de mesa, Belmiro de Azevedo: "Atenção, isso não se pode dizer!"
É isso. Há coisas que se podem dizer e outras que não. No geral, há que ter mais cuidado com a língua. Ninguém espera que um indivíduo com alta responsabilidade condene o sistema. Foi, afinal, isto o que sucedeu com o actual bastonário da Ordem dos Advogados, Marinho Pinto. Fresco no lugar e impulsivo por natureza, trompeteou cá para fora aquilo que costumava dizer antes e que várias vezes tinha escrito em artigos. Teve, mais uma vez, toda a razão no que disse. A reacção do sistema, atacando-o, foi sintomática. Será preciso perguntar porquê?

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