A palavra "Cantuária" produz em mim sentimentos contraditórios. A melhor memória que ela me traz é, sem dúvida, a dos Canterbury Tales, da autoria do consagrado pai da literatura inglesa, Geoffrey Chaucer, contemporâneo da nossa rainha Filipa de Lencastre. A pior, para além da trágica história de Saint Thomas Becket, é a tradução do nome para português, que me lembra que os mesmos puristas que fizeram a tradução de Canterbury para Cantuária também pretendiam que Oxford fosse Oxónia e Cambridge Cantabrígia. Felizmente que a sua proposta não pegou.
Entretanto, quem pegou agora na palavra foi o arcebispo de Cantuária que, ficámos a saber, se chama Rowan Williams e botou discurso na BBC Radio sobre a comunidade muçulmana no Reino Unido. Para pasmo de muita gente, manifestou-se a favor da introdução da Sharia no seu país. A Sharia, que este blogue já abordou pelo menos uma vez a propósito de investimentos de países do Médio Oriente, é a lei islâmica, baseada na interpretação do Corão. Como código de conduta, regula múltiplos aspectos da vida dos muçulmanos, desde a sua alimentação à maneira de vestir, punindo situações como o adultério, o roubo e o consumo de bebidas alcoólicas. Alguns dos princípios corânicos estão instituídos sob a forma de leis, que são aplicadas pelos tribunais, v.g. heranças, contratos, investimentos, casamentos. O que o arcebispo disse foi que os muçulmanos devem poder escolher entre a lei britânica e a Sharia em assuntos tão diversos como disputas conjugais e questões económico-financeiras.
Há, entre nós, um ditado bem conhecido que nos diz: "Em Roma, sê romano". A comunidade emigrante portuguesa tem cumprido este preceito à risca. Passa geralmente despercebida noutros países. Integra-se nas sociedades estrangeiras sem fazer grandes ondas.
Como professor, tive vários alunos muçulmanos que cumpriam as suas regras mas estavam igualmente integrados nas nossas. Os feriados portugueses eram os seus feriados, o que não queria dizer que não tivessem as suas festas próprias, o seu Ramadão, etc. Tive também alunos de outros credos, que contestavam exames ao sábado, e que submetiam ao Conselho Directivo a sua pretensão de não realizar exames nesse dia. Acredito que, para um grande número de pessoas, a procura de melhores condições de trabalho num país estrangeiro implique alguns constrangimentos, mas esse é, certamente, o preço a pagar por benefícios que elas também colhem. Afinal, são os emigrantes que procuram voluntariamente um determinado país, e não é esse país que vai buscá-los à sua origem.
Se a existência de uma lei, com todas as suas interpretações possíveis, já causa embaraços, imagine-se agora a coexistência de leis diversas no mesmo mercado de trabalho!
Regressei há semanas de um país estrangeiro, a Índia, onde desde há séculos existem, com altos e baixos, problemas entre a comunidade hindu e a muçulmana. A hindu é bem mais numerosa - cerca de 80 por cento da população -, mas os 12 por cento de muçulmanos constituem qualquer coisa como 130 milhões de pessoas. Em Delhi notei algo que, admito, me fez pensar um bocado. Junto ao hotel onde fiquei, existia uma mesquita, o que nada tem de extraordinário. De extraordinário - para mim, pelo menos - teve no entanto o facto de, diariamente, um pouco antes das 6 horas da manhã surgir a voz do muezzin, amplificada por poderosos altifalantes, com o seu chamamento dos fiéis à oração. Suponho que acordava toda a vizinhança. Pensei para mim que se a cena se passasse no nosso Bairro Azul, aqui em Lisboa, ela causaria decerto alguma perturbação. Em Delhi, talvez pela existência naquele bairro de uma larguíssima comunidade muçulmana, não me pareceu causar grande polémica.
À memória vem-me um episódio que vivi na guerra colonial, em Angola. Como comandante das primeiras tropas que se instalaram em Cabo Ledo, a sul de Luanda, para proteger as riquíssimas jazidas de petróleo da zona e, obviamente, as pessoas que lá trabalhavam, notei que o pessoal trabalhava por turnos, muitos dos quais eram durante a noite. Como o nosso aquartelamento ficava dentro da zona do acampamento da companhia petrolífera, disse para mim que seria melhor não acordar toda aquela gente com o cornetim matinal. Assim, o corneteiro tocava apenas aos domingos, cerca das 11 horas, quando era hasteada a bandeira nacional. A minha decisão foi bem recebida, tanto pelas tropas como pelo pessoal do acampamento. Talvez por este motivo eu tivesse tido que reflectir agora quando, na capital indiana, acordei sobressaltado ao som da voz do muezzin do alto da torre da mesquita.
Considero que o arcebispo não reflectiu bem na sua proposta, ou então cedeu apenas ao politicamente correcto. Democraticamente, aquilo que propõe para os muçulmanos teria de ser válido para outras comunidades que o requeressem. Já se pensou na balbúrdia que isso causaria? The rule of law é uma coisa, já de si não fácil. A comunidade judaica teria também direito à sua própria lei? E a chinesa? A italiana? Recomenda-se ao arcebispo que não vá para Espanha proclamar o mesmo. Arrisca-se a que Juan Carlos lhe lance a sua tirada mais célebre.
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