2/02/2008

Breve nota de viagem




Há viagens que se fazem e desfazem num instante. Na memória ficam dias passados num ambiente diferente do quotidiano, umas tantas visitas culturais e algumas compras, a que se juntam fotografias e episódios engraçados para mostrar e narrar a familiares e amigos. Outras viagens há, porém, que nos marcam indelevelmente, por vezes sem sabermos definir concretamente porquê. Pessoalmente, já tive essa experiência em pelo menos dois casos: México e Brasil. Foram ambas viagens que me deixaram profundas impressões, não só pela sua relativa extensão temporal, como também pelo envolvimento directo com as populações no seu dia-a-dia e o background cultural que me foi proporcionado.
Agora, a Índia conseguiu ser ainda mais marcante. Não sei se pela experiência entretanto acumulada, sinto que o impacto foi muito profundo. A Índia, de que naturalmente visitei apenas uma parte - mesmo assim significativa - revelou-se logo à partida com uma surpresa agradabilíssima para quem temia o pior: nesta época do ano, o clima é ameno, não há chuvas nem calores excessivos. A temperatura é primaveril, os dias ensolarados. Este foi o substrato ideal para uma viagem que foi feita apenas a dois, sem aquelas maçadas de grupos e guias a condicionarem-nos o tempo. Havia um programa para cumprir, é certo, mas com a largueza suficiente para nos proporcionar liberdade de acção e alternativas. O facto de em 16 dias termos utilizados nas deslocações vários meios de transporte, desde o automóvel ao avião, passando pelo comboio e pelo barco, além de, localmente, pelos inevitáveis rickshaws e tuc-tucs, contribuiu para a ampla escala de variedade dos nossos dias de viagem.
Começar por Bombaim, cidade costeira do Mar Arábico e do Malabar, foi uma esplêndida opção. Com os seus 18 milhões de habitantes, a cidade que foi portuguesa durante algumas décadas revelou-se uma urbe de vida intensíssima e de acentuados contrastes, que são outros tantos espelhos da sociedade indiana. Existem, além disso, fortes marcas da presença inglesa de três séculos.
Goa foi o nosso segundo salto. As evocações que o próprio nome de Goa produz num português nascido antes dos anos 60 são fundas. Revelou-se terra hospitaleira, ainda com numerosos traços da presença lusa e trouxe-me nostalgicamente à memória a África colonial que conheci com os seus palmares, coqueiros, plantações de cana-de-açúcar, casas ao estilo português e até música tradicional dançada por e para indianos, como o malhão e o corridinho.
A outra Índia, quiçá menos europeia e mais mogol, revelou-se com Delhi, Jaipur e Agra, esta a menos interessante das cidades mas possuidora do justamente famoso Taj Mahal. A par de arte esteticamente muito bonita - de agrado garantido tanto para orientais como para ocidentais - deparou-se-nos a clivagem evidente entre um estilo de vida dos marajás de outrora e o patente estado de dificuldades materiais da generalidade da população, que hoje já ultrapassa mil milhões. Digamos entretanto, para não focar demasiado a nossa atenção no verdadeiro fosso existente entre os mais ricos e os mais pobres, que a cor dos saris das mulheres e a serenidade temperamental das gentes ajudam a formar uma atmosfera que pode ser fascinante e que inclui uma frenética actividade de sobrevivência em muitos locais urbanos. Inquestionavelmente, a beleza dos monumentos choca com o lixo acumulado nas povoações, com a incúria das autoridades administrativas e com animais mais ou menos sagrados à solta nas ruas e mesmo na estrada junto a localidades. O trânsito pode ser caótico, mas simultaneamente ordeiro - sem impropérios palavrosos dos automobilistas e motociclistas, embora as apitadelas sejam uma constante até depois de o sol se pôr. Não se espere da Índia um país altamente respeitador das regras de trânsito. Os traços contínuos, mesmo se duplos, são muitas vezes colocados a meio do rodado dos veículos a fim de melhor proporcionarem ultrapassagens. A lotação das viaturas é por norma excedida. Seguimos de automóvel e, ao nosso lado, está uma carroça puxada por um camelo, outra ali por bois, outra ainda por um cavalito. Em determinadas zonas podem encontrar-se elefantes na estrada. Compreendemos assim, in loco, que, com este desalinhamento todo, a Índia só pudesse nos tempos da Guerra Fria ter integrado o grupo dos países não-alinhados.
Na generalidade, os salários são muito baixos, mas existe presentemente um claro investimento na educação, aliás reconhecido pelo povo indiano. O Produto Interno Bruto do país tem aumentado a olhos vistos, em grande parte devido à mão-de-obra barata que o Ocidente vem utilizando através dos seus investimentos no país. É o outsourcing da globalização. Todavia, o PIB é, per se, um elemento enganador: a desigual distribuição da riqueza é gritante. É ainda o resquício do sistema de castas, banido da Constituição mas que se mantém actuante.
Não esqueçamos, entretanto, os odores fortes da terra e dos frutos, dos mercados e das pessoas. Na viagem a que aludo houve ainda que caminhar sobre duas poldras finais para chegarmos à outra margem: a primeira foi uma pequena povoação chamada Khajuraho, uma maravilha única para os ocidentais, que se kamassutram fotograficamente perante os grupos escultóricos mais eróticos do mundo no exterior de vários templos hindus. A outra foi a visita a Varanasi, a antiga Benares, cidade do Ganges sagrado. Foi lá que um indiano me disse: "We have four mothers: Mother Cow, Mother Ganga, motherland, and our own mother." O Ganga, esclareça-se, é o Ganges, que assume género feminino na sua estreita ligação com a espiritualidade intensa dos indianos e na sua relação com a morte por cremação.
Muito, muitíssimo mais haveria para dizer, por exemplo sobre a amálgama de religiões, com hindus, muçulmanos, sikhs, cristãos e budistas a conviverem lado a lado. "Oh, East is East, West is West, and never the twain shall meet" é a clássica frase de Rudyard Kipling, ele próprio nascido na Índia. Para mim, a viagem foi uma amálgama fascinante. Direi apenas a terminar que, uma semana depois de ter regressado, aíndia sonho com ela durante a noite.

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