Realizadas as eleições – faltam apenas apurar os votos dos círculos de emigração que provavelmente darão os habituais três deputados ao PSD e um ao PS – verifica-se que houve de facto surpresas. Algumas são possivelmente assacáveis ao quarto poder.
"Aos três poderes tradicionais – executivo, legislativo e judicial – há que acrescentar um quarto – os media –, que transforma radicalmente a forma como os outros três poderes são exercidos." A esta reflexão do professor Fernando Ilharco, há que acrescentar este ano a influência desse quarto poder durante a campanha eleitoral.
A novidade dos debates acasalados entre os líderes dos partidos representados no Parlamento, que foram interessantes, influenciou notoriamente os portugueses. O grande vencedor dos debates foi, sem dúvida, Paulo Portas. Inteligente e arguto, soube esgrimir argumentos que lhe faltarão no acto de governar mas que lhe fazem grangear pontos em termos de retórica. Não foi só bem-falante: fez com diligência o seu homework, pelo que ia preparado para saltar para áreas onde não tem experiência mas nas quais, populisticamente, encontra o apoio de muitos votantes, nomeadamente no domínio da segurança, típico da direita. Aproveitou bem a falta de jeito mediático de MFL para lhe roubar votos de que ela necessitaria no seu partido e que, face ao desastre de Santana Lopes em 2005, tinham ido nesse ano juntar-se aos dos socialistas de José Sócrates. Paulo Portas conseguiu que o seu partido fosse o terceiro em número de deputados na Assembleia, dando-se ainda ao luxo de eleger um deputado pelo círculo da Madeira, o que não sucedia há mais de 30 anos!
Sócrates pretendia firmar-se no poder, o que conseguiu após quatro anos difíceis e campanhas muito agressivas contra a sua figura. A penalização para o partido consistiu na perca de meio milhão de votos, traduzida na diminuição de duas dúzias de deputados. Mesmo assim, foi o mais votado e recuperou parcialmente do fracasso das eleições europeias.
Algo surpreendentemente, o PSD aumentou em mais de 6 mil votos o número atingido em 2005 e meteu uma lança em África ao conquistar mais 6 deputados, número que possivelmente subirá para 9 ou 10 graças aos círculos de emigração. Belo pecúlio!
Como seria previsível, o Bloco de Esquerda subiu (em mais de 192 mil votantes) graças à descida dos socialistas e ao seu mérito próprio, tendo crescido 100 por cento no número de deputados: de 8 passou para 16!
A CDU, embora tivesse descido em termos de ranking, viu aumentado o total dos seus eleitores apoiantes, o que lhe terá garantido mais um deputado relativamente às últimas eleições realizadas.
Portanto, houve contentamentos possíveis para todos os líderes. Foi uma alegria!
O que se seguirá exige de todos aquilo de que, afinal, todos os líderes deram público testemunho: responsabilidade. Responsabilidade perante a nação, sobretudo. O Parlamento português vai porventura desempenhar um papel mais importante do que na legislatura anterior. Um dos grandes problemas em Portugal reside no facto de os partidos – desde os comunistas aos socialistas – exigirem aos deputados por si eleitos total disciplina de voto, a não ser em casos esporádicos. Isto castra os deputados, como já tem sido múltiplas vezes frisado. Sem liberdade, eles deixam de ser responsáveis. Fazem o que lhes mandam fazer. "Quando o equilíbrio do barco em que viajo se encontra ameaçado por sobrecarga num dos lados, tento o mais que posso transportar o pequeno peso dos meus argumentos para o lado que possa garantir o equilíbrio," escreveu Edmund Burke, advogado e político irlandês do século XVIII, que foi durante muitos anos deputado do Parlamento britânico. Defendeu a opinião de que um deputado, uma vez eleito, passa a representar mais a nação do que os cidadãos que o elegeram. Pertencer ao Parlamento de um país significa, acima de tudo, representar os interesses da Nação. Na linha deste posicionamento, os deputados devem despojar-se da sua ideologia partidária, na eventualidade de, em consciência, notarem que a orientação de uma determinada proposta do seu partido, ou de outro, é contrária ao interesse nacional. Segundo Burke, este respeitável comportamento simboliza, em teoria, a máxima imparcialidade, desde que a honestidade mental dos deputados seja coerentemente mantida.
Ora, a compreensão desta atitude, que considero correcta, deveria fazer mudar substancialmente o comportamento dos deputados: os socialistas perderiam a prepotência e arrogância que muitas vezes denotaram durante a sua última maioria absoluta, os sociais-democratas e os restantes espelhariam uma posição mais responsável que não fosse a de um rotundo "não" inicial a cada proposta que seja submetida para aprovação. Tendo os portugueses votantes mantido uma percentagem de 60%-40% no que respeita ao posicionamento esquerda-direita, seria ajustado que os membros do parlamento respeitassem mentalmente essa tendência. Seriam mais deputados, livres e pensantes, do que meros representantes parlamentares ordeiramente disciplinados do seu partido. Ao funcionarem menos em termos "clubistas", os membros da Assembleia seriam melhores deputados da Nação.
9/29/2009
9/27/2009
Domingo, 27 de Setembro
São onze e meia da manhã. Dia de eleições. Acabo de chegar a casa de volta do local em que fui colocar o meu voto. Encontrei, como seria de esperar, longas filas de pessoas que aguardavam a sua vez. E, como seria previsível também, deparei com muitas cabeças brancas, um número apreciável de pessoas apoiadas nas suas bengalas, mulheres e homens que procuravam o descanso de um caridoso banco de madeira que estava ali à mão. Mesmo atrás de mim, acompanhado pela esposa, estava um indivíduo de setenta e tal anos, entubado, que cuidadosamente arrastava consigo um pequeno saco com rodas contendo o oxigénio de que carecia. (Alguém que o viu deu-lhe justificadamente prioridade.)
Se fôssemos calcular o número de reformados, i.e. gente que já não entra na contagem dos trabalhadores activos, encontraríamos decerto uma percentagem bastante elevada.
Toda a cena me impressionou. Porquê? Não tanto pela idade avançada e eventual decrepitude física e mental de muitos dos votantes, mas pelo simbolismo da sua presença ali. É que voto é voz. Ora, era isso que tantos dos que passam isoladamente em casa todos os seus dias, que sentem com agrura algum desprendimento dos filhos, que sabem ser vistos mais como um peso do que uma ajuda – estavam ali a dizer: “Eu conto tanto como qualquer outro!” Aquele voto era para muitos uma prova de vida e (ainda) de alguma influência no país que é o seu.
Para além de todo o significado político do acto, foi humanamente interessante ir votar.
Se fôssemos calcular o número de reformados, i.e. gente que já não entra na contagem dos trabalhadores activos, encontraríamos decerto uma percentagem bastante elevada.
Toda a cena me impressionou. Porquê? Não tanto pela idade avançada e eventual decrepitude física e mental de muitos dos votantes, mas pelo simbolismo da sua presença ali. É que voto é voz. Ora, era isso que tantos dos que passam isoladamente em casa todos os seus dias, que sentem com agrura algum desprendimento dos filhos, que sabem ser vistos mais como um peso do que uma ajuda – estavam ali a dizer: “Eu conto tanto como qualquer outro!” Aquele voto era para muitos uma prova de vida e (ainda) de alguma influência no país que é o seu.
Para além de todo o significado político do acto, foi humanamente interessante ir votar.
9/21/2009
Discordar não é mau. Pelo contrário!
Há dias, alguém que prezo como amigo, inteligente e culto, enviava-me por e-mail uma resposta a um comentário meu e admitia que tinha demorado algum tempo a remoer o que havia de escrever. Sentia que havia algumas discordâncias de fundo entre a sua forma de ver aquele tema e a minha. Entendi a questão, mas disse de mim para mim: que importância tem que haja discrepâncias entre a forma de pensar de uma pessoa e a de outra? Não é isso natural? A única coisa não recomendável entre amigos são os ataques ad hominem – tipo "És estúpido, ou quê?" ou então "É assim porque sim!".
Todavia, estas situações apoquentam muitas pessoas, que fogem às vezes de ter conversas sobre assuntos mais interessantes, com o óbvio receio de criarem conflitos. Por assim dizer, tentam abordar esses temas só com aqueles que, sabem-no antecipadamente, comungam das mesmas ideias e são concordantes com as suas observações. (Admito que com indivíduos coléricos, que reagem impulsivamente a tudo o que os contrarie, é melhor não discutir assuntos mais sérios e ficar-se pelas anedotas, pelo futebol e pelas viagens. Nunca se sabe onde aquilo vai parar!)
Pelo meu lado, adoro discutir montes de assuntos com pessoas educadas, se possível com experiência e profissão diferentes da minha. Mais: prefiro quem de mim por vezes discorda a quem comigo sempre concorda.
É fácil de entender porquê. Quem de nós discorda apresenta argumentos que, sob outra lógica, podem ser muito válidos. Cada pessoa tem a sua formatação mental, que é o resultado de um caldeamento de aprendizagens, experiências, idade, vitórias, fracassos, reflexões. É, creio eu, essa formatação que vai formar o ângulo sob o qual analisamos as coisas.
Com pessoas de meia-idade, pode essa formatação alterar-se? Certamente, embora ligeiramente e de forma esporádica. Não se espere, por exemplo, que alguém mais de esquerda comece de súbito a ver tudo sob uma óptica de direita, ou vice-versa. Mesmo assim, a excepção pode surgir quando alguém perde todos os seus haveres, perde injustamente o emprego que julgava para a vida, é forçado a emigrar para outro país em busca de sustento. Aí é comum que nele se instale um amargo sentimento de revolta, que pode provocar o que coloquialmente denominamos de "reviravolta". Todos nós conhcemos casos destes. Mas estas são as excepções.
No geral, a formatação ou sofre alguns abalos e ligeiras alterações, ou cristaliza. Esta cristalização é por regra o resultado de uma posição de intolerância, da qual surge a rejeição pronta de ideias novas, porventura contrárias.
Compreende-se que, à medida que os anos avançam, exista nas pessoas uma maior propensão para a cristalização. E não apenas porque a mente estará menos maleável, mas fundamentalmente porque mudar radicalmente seria negar o posicionamento de toda uma vida passada, que foi vivida sob uma orientação mental diversa. Quem está disposto a auto-mutilar-se mentalmente desta forma?
E, contudo, é muitas vezes um prazer receber soluções alternativas para problemas antigos sob uma nova óptica. É algo que implica uma ampliação do nosso campo de pensamento. Se bem que possamos não aderir a esse novo posicionamento proposto, a proposição per se obrigou-nos a reflectir sobre a nossa própria natureza e consequente formatação mental. Isso é bom. É fazer a”revisão da matéria dada” sobre determinado assunto, vendo-o com outros olhos. Estaremos a crescer mentalmente, apesar de fisicamente já termos parado de o fazer há muitos anos.
É por estas e por outras que prefiro quem de mim por vezes discorde a quem comigo sempre concorde.
Todavia, estas situações apoquentam muitas pessoas, que fogem às vezes de ter conversas sobre assuntos mais interessantes, com o óbvio receio de criarem conflitos. Por assim dizer, tentam abordar esses temas só com aqueles que, sabem-no antecipadamente, comungam das mesmas ideias e são concordantes com as suas observações. (Admito que com indivíduos coléricos, que reagem impulsivamente a tudo o que os contrarie, é melhor não discutir assuntos mais sérios e ficar-se pelas anedotas, pelo futebol e pelas viagens. Nunca se sabe onde aquilo vai parar!)
Pelo meu lado, adoro discutir montes de assuntos com pessoas educadas, se possível com experiência e profissão diferentes da minha. Mais: prefiro quem de mim por vezes discorda a quem comigo sempre concorda.
É fácil de entender porquê. Quem de nós discorda apresenta argumentos que, sob outra lógica, podem ser muito válidos. Cada pessoa tem a sua formatação mental, que é o resultado de um caldeamento de aprendizagens, experiências, idade, vitórias, fracassos, reflexões. É, creio eu, essa formatação que vai formar o ângulo sob o qual analisamos as coisas.
Com pessoas de meia-idade, pode essa formatação alterar-se? Certamente, embora ligeiramente e de forma esporádica. Não se espere, por exemplo, que alguém mais de esquerda comece de súbito a ver tudo sob uma óptica de direita, ou vice-versa. Mesmo assim, a excepção pode surgir quando alguém perde todos os seus haveres, perde injustamente o emprego que julgava para a vida, é forçado a emigrar para outro país em busca de sustento. Aí é comum que nele se instale um amargo sentimento de revolta, que pode provocar o que coloquialmente denominamos de "reviravolta". Todos nós conhcemos casos destes. Mas estas são as excepções.
No geral, a formatação ou sofre alguns abalos e ligeiras alterações, ou cristaliza. Esta cristalização é por regra o resultado de uma posição de intolerância, da qual surge a rejeição pronta de ideias novas, porventura contrárias.
Compreende-se que, à medida que os anos avançam, exista nas pessoas uma maior propensão para a cristalização. E não apenas porque a mente estará menos maleável, mas fundamentalmente porque mudar radicalmente seria negar o posicionamento de toda uma vida passada, que foi vivida sob uma orientação mental diversa. Quem está disposto a auto-mutilar-se mentalmente desta forma?
E, contudo, é muitas vezes um prazer receber soluções alternativas para problemas antigos sob uma nova óptica. É algo que implica uma ampliação do nosso campo de pensamento. Se bem que possamos não aderir a esse novo posicionamento proposto, a proposição per se obrigou-nos a reflectir sobre a nossa própria natureza e consequente formatação mental. Isso é bom. É fazer a”revisão da matéria dada” sobre determinado assunto, vendo-o com outros olhos. Estaremos a crescer mentalmente, apesar de fisicamente já termos parado de o fazer há muitos anos.
É por estas e por outras que prefiro quem de mim por vezes discorde a quem comigo sempre concorde.
9/20/2009
Reviravolta nos prognósticos das legislativas
Segue animada a campanha para as eleições do próximo domingo. Tão animada que creio poder dizer-se que ainda bem que não houve junção das legislativas com as autárquicas: a salganhada seria imensamente maior. Na exposição mediática - e ver o jogo político em casa tornou-se tanto um hábito como ver jogos de futebol no sofá - , sobressaíram sem surpresa o líder do CDS e o actual primeiro-ministro, de longe os mais bem-falantes e preparados para as câmaras.
Após uma derrota nas europeias que surpreendeu muita gente – a começar pelo partido mais ganhador, o PSD – os socialistas têm tentado recuperar terreno. De acordo com todas as sondagens, têm sido bem sucedidos até ao momento em que escrevo. Foi interessante ver no jornal Público de sexta-feira a declaração de um influente advogado – José Miguel Júdice – de que iria pela primeira vez votar PS nas legislativas. Mas a nota-chave veio sem dúvida ontem com a declaração pública de voto no PS feita por Manuel Alegre, durante um comício em Coimbra. Embora acentuando as suas reservas e esperanças, Alegre recusou dividir para reinar. Para os socialistas é uma notícia muito importante. Lembra-me a influente declaração do republicano Collin Powell nos Estados Unidos antes da votação em Obama. Para o BE a notícia tem algum sabor amargo.
Fiquemos entretanto a aguardar a votação real, no dia 27.
Após uma derrota nas europeias que surpreendeu muita gente – a começar pelo partido mais ganhador, o PSD – os socialistas têm tentado recuperar terreno. De acordo com todas as sondagens, têm sido bem sucedidos até ao momento em que escrevo. Foi interessante ver no jornal Público de sexta-feira a declaração de um influente advogado – José Miguel Júdice – de que iria pela primeira vez votar PS nas legislativas. Mas a nota-chave veio sem dúvida ontem com a declaração pública de voto no PS feita por Manuel Alegre, durante um comício em Coimbra. Embora acentuando as suas reservas e esperanças, Alegre recusou dividir para reinar. Para os socialistas é uma notícia muito importante. Lembra-me a influente declaração do republicano Collin Powell nos Estados Unidos antes da votação em Obama. Para o BE a notícia tem algum sabor amargo.
Fiquemos entretanto a aguardar a votação real, no dia 27.
9/15/2009
Em abstracto e no concreto
Sempre fui a favor de aulas teóricas complementadas com aulas práticas, ou então defendo que se faça na mesma aula a interligação entre teoria e prática. Já no remoto século VI antes de Cristo Confúcio dizia "Oiço e esqueço. Vejo e lembro-me. Faço e aprendo!". Mais modernamente diz-se algo parecido: "Retemos 10 por cento do que ouvimos, 50 por cento do que vemos, 90 por cento do que fazemos."
Quando estamos numa aula, numa conferência ou numa roda de amigos é muito frequente ouvirmos coisas interessantes e que são novas para nós. Se não as anotamos, arriscamo-nos a perdê-las. Se são coisas para fazer – pode ser uma simples receita culinária nova – será melhor anotarmos pelo menos as quantidades. Mas onde realmente se aprende é mesmo confeccionando a coisa.
Imaginar algo é uma coisa, realizá-lo é outra. Imaginar faz parte do abstracto. Executar tem que ver com o concreto. A vida é frequentemente composta por estas duas vertentes, tal como a fruta tem habitualmente uma casca que removemos antes de encontrarmos o fruto comestível. No abstracto, vemos o fruto completo. Na prática, o trabalho que dá a tirar a casca demove várias pessoas da escolha dessa fruta (estou convencido de que esse é um dos motivos por que a banana, fácil de abrir, é um fruto tão popular).
Esta breve introdução tem que ver com aqueles assuntos que igualmente se compõem de duas partes: uma mais teórica e abstracta, outra mais prática e concreta. O importante é que não deixemos de considerar ambas quando abordamos esses temas e que não nos confinemos a apenas uma parte.
Nimby é um acrónimo inglês que significa "not in my backyard", ou seja em tradução livre, "aqui ao pé de mim, não!" É típico, por exemplo, que quando se fala da necessidade de preservar o ambiente que todos estejamos de acordo. Haverá alguém contra a preservação do ambiente? Ora, o português típico é geralmente retratado na rua com um saco de plástico na mão, quando não são dois ou três. O que fazer a esses plásticos todos? A televisão ensina-nos: a solução está em metê-los no contentor adequado, que possivelmente não estará muito longe da nossa casa. Até aí, tudo bem. E quando o contentor está cheio, onde é ele esvaziado? E onde é destruído ou reciclado o plástico? Terá de ser em qualquer sítio. Assim que se sabe quais são os projectos do governo, de qualquer governo, os munícipes do concelho X, aqueles que concordam – como todos - que o lixo tem de ser tratado, dizem: "Aqui não!" Tenta-se outro local. Em conversações e como contrapartida, o governo adoça a boca da população: construirá um novo centro para idosos ou um novo centro de saúde. Às vezes pega. Mas a reacção lá esteve: em termos abstractos, toda a gente concordava; no concreto, levantaram-se obstáculos: aí o caso muda totalmente de figura.
É assim também frequentemente em tantas outras circunstâncias. Tomemos o tema do racismo. Claro que somos todos "iguais". Brancos, pretos, amarelos, são todos filhos de Deus. Irmãos. Todos merecem ser bem tratados. Igualdade, sim. E se a vossa filha se enamorasse de um rapaz preto, haveria qualquer objecção da vossa parte? Bem, só faltava essa! Não há para aí tanto rapaz branco?! Porquê cair de amores logo com um preto. Já é azar! E depois os filhos? É isso, é isso, o problema são os filhos. Ó Maria, já viste o nosso azar!? Já te imaginaste a ter um neto preto, tu que nunca sequer foste a África?
No entanto, pai e mãe declaravam que não eram racistas. No abstracto.
Acha bem que o Estado possa dispor automaticamente dos nossos órgãos em caso de morte? Não? A sua negativa deve-se ao facto de respeitarmos Deus e irmos para debaixo da terra como Ele cá nos pôs? Tem alguma lógica essa posição. E os seus vizinhos também concordam? Já agora, imagine a situação de uma doença sua ou de um acidente grave em que você precisa urgentemente de um órgão para substituir o seu que ficou gravemente danificado. Se esse órgão não existir, você morrerá. Se existir, graças à lei promulgada pelo Estado, você sobreviverá. Já considera agora que talvez fosse uma boa ideia que um órgão do seu corpo sem vida pudesse ajudar outra pessoa? Afinal, quem morre não precisa mais de determinado órgão vital. Já concorda mais? Pois é, existe uma diferença entre a abstracção e a realidade concreta.
Daí que ao processo de pensamento abstracto devamos esforçar-nos por juntar o concreto, nomeadamente quando nos toca directamente a nós. Se está a discutir um ataque ao Irão ou ao Iraque, imagine-o logo na vertente de ataque ao seu próprio país. Só assim será mais concreta a sua reacção, que possivelmente passará de fria ou morna no caso de outros países e ficará a ferver se for o seu país que estiver em questão. É o nimby ampliado a outra escala. Curiosamente, se o fizermos veremos que as nossas reacções em diversos estádios territoriais de pensamento – mundo, continente, país, cidade, bairro, rua, casa – passam a ser mais moderadas, menos extremistas. Afinal, tudo é relativo.
Neste sentido, creio que os governantes, os empresários e, de uma maneira geral, todos os que têm poder e dão ordens deveriam fazer sempre a pergunta a si próprios: e se fosse comigo? Seria humildade a mais da parte deles? Mas não é a humildade algo essencial para se ser solidário? E não é a solidariedade um valor a defender? Se não somos solidários com os outros, como podemos esperar que eles sejam um dia solidários connosco?
Quando estamos numa aula, numa conferência ou numa roda de amigos é muito frequente ouvirmos coisas interessantes e que são novas para nós. Se não as anotamos, arriscamo-nos a perdê-las. Se são coisas para fazer – pode ser uma simples receita culinária nova – será melhor anotarmos pelo menos as quantidades. Mas onde realmente se aprende é mesmo confeccionando a coisa.
Imaginar algo é uma coisa, realizá-lo é outra. Imaginar faz parte do abstracto. Executar tem que ver com o concreto. A vida é frequentemente composta por estas duas vertentes, tal como a fruta tem habitualmente uma casca que removemos antes de encontrarmos o fruto comestível. No abstracto, vemos o fruto completo. Na prática, o trabalho que dá a tirar a casca demove várias pessoas da escolha dessa fruta (estou convencido de que esse é um dos motivos por que a banana, fácil de abrir, é um fruto tão popular).
Esta breve introdução tem que ver com aqueles assuntos que igualmente se compõem de duas partes: uma mais teórica e abstracta, outra mais prática e concreta. O importante é que não deixemos de considerar ambas quando abordamos esses temas e que não nos confinemos a apenas uma parte.
Nimby é um acrónimo inglês que significa "not in my backyard", ou seja em tradução livre, "aqui ao pé de mim, não!" É típico, por exemplo, que quando se fala da necessidade de preservar o ambiente que todos estejamos de acordo. Haverá alguém contra a preservação do ambiente? Ora, o português típico é geralmente retratado na rua com um saco de plástico na mão, quando não são dois ou três. O que fazer a esses plásticos todos? A televisão ensina-nos: a solução está em metê-los no contentor adequado, que possivelmente não estará muito longe da nossa casa. Até aí, tudo bem. E quando o contentor está cheio, onde é ele esvaziado? E onde é destruído ou reciclado o plástico? Terá de ser em qualquer sítio. Assim que se sabe quais são os projectos do governo, de qualquer governo, os munícipes do concelho X, aqueles que concordam – como todos - que o lixo tem de ser tratado, dizem: "Aqui não!" Tenta-se outro local. Em conversações e como contrapartida, o governo adoça a boca da população: construirá um novo centro para idosos ou um novo centro de saúde. Às vezes pega. Mas a reacção lá esteve: em termos abstractos, toda a gente concordava; no concreto, levantaram-se obstáculos: aí o caso muda totalmente de figura.
É assim também frequentemente em tantas outras circunstâncias. Tomemos o tema do racismo. Claro que somos todos "iguais". Brancos, pretos, amarelos, são todos filhos de Deus. Irmãos. Todos merecem ser bem tratados. Igualdade, sim. E se a vossa filha se enamorasse de um rapaz preto, haveria qualquer objecção da vossa parte? Bem, só faltava essa! Não há para aí tanto rapaz branco?! Porquê cair de amores logo com um preto. Já é azar! E depois os filhos? É isso, é isso, o problema são os filhos. Ó Maria, já viste o nosso azar!? Já te imaginaste a ter um neto preto, tu que nunca sequer foste a África?
No entanto, pai e mãe declaravam que não eram racistas. No abstracto.
Acha bem que o Estado possa dispor automaticamente dos nossos órgãos em caso de morte? Não? A sua negativa deve-se ao facto de respeitarmos Deus e irmos para debaixo da terra como Ele cá nos pôs? Tem alguma lógica essa posição. E os seus vizinhos também concordam? Já agora, imagine a situação de uma doença sua ou de um acidente grave em que você precisa urgentemente de um órgão para substituir o seu que ficou gravemente danificado. Se esse órgão não existir, você morrerá. Se existir, graças à lei promulgada pelo Estado, você sobreviverá. Já considera agora que talvez fosse uma boa ideia que um órgão do seu corpo sem vida pudesse ajudar outra pessoa? Afinal, quem morre não precisa mais de determinado órgão vital. Já concorda mais? Pois é, existe uma diferença entre a abstracção e a realidade concreta.
Daí que ao processo de pensamento abstracto devamos esforçar-nos por juntar o concreto, nomeadamente quando nos toca directamente a nós. Se está a discutir um ataque ao Irão ou ao Iraque, imagine-o logo na vertente de ataque ao seu próprio país. Só assim será mais concreta a sua reacção, que possivelmente passará de fria ou morna no caso de outros países e ficará a ferver se for o seu país que estiver em questão. É o nimby ampliado a outra escala. Curiosamente, se o fizermos veremos que as nossas reacções em diversos estádios territoriais de pensamento – mundo, continente, país, cidade, bairro, rua, casa – passam a ser mais moderadas, menos extremistas. Afinal, tudo é relativo.
Neste sentido, creio que os governantes, os empresários e, de uma maneira geral, todos os que têm poder e dão ordens deveriam fazer sempre a pergunta a si próprios: e se fosse comigo? Seria humildade a mais da parte deles? Mas não é a humildade algo essencial para se ser solidário? E não é a solidariedade um valor a defender? Se não somos solidários com os outros, como podemos esperar que eles sejam um dia solidários connosco?
9/11/2009
Três é a conta que Deus fez
Numa pequena povoação a cerca de quatro quilómetros de Alcobaça fica o velho convento de Cós, que foi habitado durante largos anos por freiras cistercienses. Para quem eventualmente não o conheça, uma visita não deixa de ser interessante. Estive lá no final de Agosto. Apesar de os claustros não poderem ser visitados porque vão ser sujeitos a grandes obras de restauro, a igreja está em boas condições e é recomendável. Possui uma única nave, com o cadeiral do coro no mesmo piso. Uma das fotos que incluo pretende dar uma ideia do aspecto geral da igreja, embora não inclua o coro, que fica na parte de trás da habitual grade que separa as religiosas dos comuns fiéis que vão apenas assistir à missa ou rezar.
Chamou-me particularmente a atenção o quadro que representa o Purgatório, que aqui também reproduzo. Ocupa uma parte significativa da parede do lado esquerdo.
Pessoalmente, sempre achei muito curiosa a utilização do número 3 para vários itens ligados à religião católica. Desde a Santíssima Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo -, passando pelo popular dito "Três é a conta que Deus fez" até à divisão tripartida do período pós-morte em Céu, Purgatório e Inferno, acho que o 3 adquire um simbolismo muito especial. Para começar, 3 é número primo, o que lhe empresta desde logo um certo cunho mágico. Esta magia faz dele um número de sorte associado a Deus, como oposto ao mal e ao Diabo. Também os Reis Magos eram três; para afastarmos os maus espíritos batemos três vezes com a mão em algo que seja de madeira (como a cruz em que Cristo foi crucificado). A fórmula do nosso Totobola é a de 1, X, 2, ligada à nossa formatação habitual de tri- (vitória, empate ou derrota). Igualmente no nosso dia-a-dia há muitos três deste género, v.g. sim, não, talvez; direita, esquerda, meio/centro; tese, antítese, síntese. E assim chegamos também ao nosso destino de 1, X, 2 após a nossa morte.
Os diferentes destinos que nos são oferecidos quando, ainda pequenos, vamos à catequese, são três: o Céu, o Inferno e, no meio, o Purgatório. Quem tem a alma limpa vai direitinho para o Céu, quem a tem negra expiará até à eternidade no Inferno. Quem se portou assim-assim, irá parar ao Purgatório. Aí terá que ser expurgado de todo e qualquer mal que possua a fim de poder entrar no céu. Sofrerá muito, entretanto, pelos pecados cometidos na Terra. Só então pode ser repescado, se o for, e ir para o paradisíaco Céu.
No quadro da igreja de Cós, o sofrimento é expresso, tradicionalmente, pelo calor infernal das chamas que lambem implacavelmente o corpo das pecaminosas criaturas. O sofrimento é a um tempo uma punição, uma purificação e um elemento desincentivador para quem contempla, ainda em vida, o quadro realista. Desta forma pedagógica, os eventuais pecadores já sabem o que os espera. Dado que a esperança é a última a morrer, felizmente mantém-se a possibilidade de resgate daquelas almas para o Céu: na parte superior do quadro vêem-se anjos a estenderem os braços para elevarem para o seu Céu um ou outro dos ex-pecadores. E onde fica esse Céu? Dentro da nossa formatação mental, ele fica na parte superior, enquanto o Inferno se situa nas profundezas. Este Purgatório de que o quadro nos dá uma ideia pungente fica no meio. (Tamném na vaticana Capela Sistina, Miguel Ângelo mostrou de forma irrepreensível estes três mesmos estádios. Num deles, interessantemente para os portugueses, surge um anjo com o escudo da nação portuguesa a resgatar um indígena: é o apadrinhamento papal da acção colonizadora das lusas gentes em terras recém-descobertas além-Atlântico.)
Aquando da visita a Cós, tentei imaginar os pensamentos que poderiam passar pela cabeça das freiras à vista deste quadro. O sexo, uma actividade perfeitamente comum em todo o reino animal para assegurar a continuação da espécie – e não só – era-lhes mentalmente reprimido de forma brutal. As alterosas e punitivas chamas mostravam-lhes que o único caminho a seguir era o da sublimação do desejo. Nas santas criaturas era incutida pictoricamente a noção tão concreta quanto possível da punição que aguardava todo o transgressor – homem ou mulher. Já naquela altura se sabia que uma imagem vale mais do que mil palavras.
Sabe bem, por comparação com os tempos de hoje, constatar o avanço que entretanto a nossa sociedade fez em termos de libertação da mente e, em grande medida, do corpo.
Se for a Cós, não deixe de ver o quadro. E, já agora, repare também nas "misericórdias", aquelas pequenas mas sólidas peças de madeira na parte de baixo dos assentos do cadeiral. Misericordiosamente, para que as freiras não estivessem de pé muito tempo, elas podiam sentar-se mais ou menos confortavelmente nessas peças de madeira, dando embora a impressão de que estavam de pé. Foi decerto uma alma generosa da Igreja que concebeu esta forma de evitar sacrifícios ainda maiores. Já bastavam as vistas do Purgatório!
9/10/2009
Colocando os pontos nos ii
Para que não se diga que sou um acrítico leitor do novo jonal i que refiro no meu último post, aqui vai o que se me oferece dizer muito brevemente sobre o tema de capa do dia de hoje: "O que os portugueses querem de Ferreira Leite."
Começo por lembrar que sondagens de opinião são formas muito antigas de influenciar a opinião pública. Já nos áureos tempos da civilização helénica, vários dos famosos oráculos faziam o favor de prever aquilo que algum poderoso lhes pedia.
Neste caso, o jornal é feito por pessoas inteligentes, que usam técnicas modernas para abordagens de temas que são de sempre. A orientação do periódico vai, embora de forma relativamente bem doseada, para a direita, favorecendo nomeadamente o PSD.
Nos tempos da guerra colonial, se, por volta da hora do jantar, Salazar aparecia a fazer um discurso aos microfones da rádio ou da televisão, já se sabia que no dia seguinte de manhã um jornal como o Diário de Notícias informava em grandes parangonas: "Angola está com Salazar!" Era extraordinário como no espaço de pouquíssimas horas tinha sido possível auscultar a opinião de uma amostra significativa da população angolana e fornecê-la assim, fresquinha e consoladora, a quem lia o jornal enquanto tomava o seu pequeno-almoço. Mas era assim mesmo!
Os tempos são outros, as firmas de sondagens em Portugal ficaram um pouco desacreditadas após o fracasso das previsões dos resultados das últimas eleições europeias. Talvez por isso e porque este tipo de entrevistas-blitz ao povo é menos científico mas mais facilmente manipulável, o i apresenta-nos, como se vê na foto de capa, um altifalante (empunhado por alguém do povo) a gritar os desejos da população do país. Para amenizar o realce dado a MFL, é anunciado que no dia seguinte o jornal publicará o mesmo tipo de questionário rápido sobre aquilo que os portugueses querem de Sócrates.
Permito-me fazer aqui uma breve citação de um politólogo estudioso do tema - Francis Szpiner - no seu livro Les Moutons de Panel. "A utilização das sondagens para substituir a decisão política dá ao povo a impressão de que está sempre a ser consultado. O poder relaciona-se com as sondagens como um tóxico-dependente (há quem encomende sondagens todas as semanas) e como traficante (introduzindo na opinião pública os temas que lhe interessam). As sondagens indicam ao poder o que deve fazer a seguir e, se as manipularem, servem para extrair da opinião pública o que querem impor-lhe."
Ora, o que faz aqui o i de uma assentada? Ao restringir (aparentemente) a MFL e ao actual primeiro-ministro a dita consulta popular, está a excluir todos os restantes candidatos. Temos assim "O Combate dos Chefes", à boa maneira de Astérix e Obélix. Muito mais do que uma short-list, é já um apuramento para a final. Democrático? Nem por isso! Jornalístico? Sim.
Depois, no texto, o jornal apresenta, em quatro páginas, fotos de 20 potenciais eleitores, cada um deles segurando uma ardósia onde escreveu com a sua própria letra a mensagem do que queria ou não queria que MFL fizesse. Mais uma vez: é uma abordagem mediática e assume aspectos de credibilidade. Contudo, ter 20 pessoas a representarem vários milhões de votantes é praticamente igual a zero! Adiante.
Em maior detalhe, nota-se que um dos textos que acompanham a reportagem diz: "Fernanda, que não quis revelar o seu nome "por ser funcionária pública", é rápida na resposta. Pega na ardósia e deixa um recado a Manuela Ferreira Leite: "Não faça agora o mesmo que fez quando esteve no governo" como ministra." Supunha eu, como leitor, que essa Fernanda que não se queria identificar por ser funcionária do Estado - o medo instaurado por Sócrates! - , não aparecesse nas fotos por razões óbvias. Estava enganado. Aparece! E com idade (58 anos) e local de trabalho (Leiria). Entretanto, o texto que ela escreveu na ardósia é que não bate exactamente certo com o que o jornal refere: "Quero que faça aquilo que não fez." Admitamos que parece haver aqui alguma manipulaçãozinha, ou será apenas o meu céptico cartesianismo a funcionar?
Quanto ao resto, a técnica foi a de fazer o cotejo entre os pedidos e o que está no programa do PSD. Daqui resulta uma informação bastante positiva do programa, como se vê, por exemplo, na comparação entre o pedido de aumento das pensões mínimas de uma senhora com 77 anos, da Maia: "Faremos uma revisão das pensões de velhice do regime não contributivo apoiada numa visão completa do rendimento e património do agregado familiar dos idosos, para poder aumentar o apoio aos mais carenciados." "Está escrito", acrescenta o jornal.
O i como opinion-maker? O que é que se podia esperar?
9/08/2009
ELOGIO
Nada é perfeito, como todos sabemos, mas creio que neste caso as eventuais falhas residem mais em quem procura encontrar a perfeição do que no produto em si. Vem isto a propósito de um jornal diário ainda recente (publicou há dias a sua edição número 100). Tem o nome mais curto que conheço numa publicação diária: i. Assim, pisanamente inclinado como o i que conhecemos dos postos de informação nas cidades.
É um jornal bem feito sob muitos aspectos. Tendo como base gente inteligente - uns formados na Católica e já com experiência jornalística, outros jornalistas de profissão com bom nível, docentes portugueses no estrangeiro, colaboradores que sabem escrever e escolher temas interessantes, jornalistas desportivos diferentes do tradicional no modo de abordagem dos seus artigos e entrevistas - o jornal não assenta necessariamente em temas do dia, embora os forneça também. Com tanta fonte informativa que hoje existe - no computador, na rádio que ouvimos no carro, no telemóvel, na televisão, em outros jornais, nas estações do Metro e sei lá mais onde - as notícias da queda do avião, da derrota (imerecida) do nosso clube, de mais um atentado no Iraque que vitimou 40 pessoas, etc. é aquilo que se sabe primeiro. No i a notícia é incluída, mas por via de regra sem extraordinário pormenor. É depois o conjunto de temas actuais do diário, o qual se apresenta com um bom formato e possui dois fortes agrafes que não permitem que as folhas se soltem, que constitui a pièce de résistance. E os assuntos abordados debatem ideias e práticas apelativas, ocupam o mínimo de uma página inteira e são frequentemente ilustrados por fotografias e também por desenhos, o que os torna mais pessoais. Aliás, graficamente, o jornal é inovador em vários aspectos.
Fui leitor do Público durante cerca de 20 anos. A sua leitura deu-me geralmente prazer e ensinou-me um número grande de coisas. Contudo, tanto a presença do actual director como o abandono de uns habituais colaboradores de peso afectaram negativamente o jornal. Desgostou-me ver o apadrinhamento demasiado fiel da linha Bush pelo director do jornal antes, durante e após a invasão do Iraque. Desgosta-me agora ver a forma como certas figuras portuguesas são tratadas, sem conta, peso e medida. Mais com eubjectividade do que com objectividade. Em face da situação, o aparecimento do i constituiu para mim um alívio. Continuo a comprar o Público ao domingo, o único dia em que o i não se publica, mas nos restantes dias da semana pretiro-o relativamente ao novo periódico.
Não concordo com tudo na orientação do i, mas isso seria impossível. Às vezes parece-me favorecer a direita, mas admito que, de forma inteligente, esse favorecimento não é excessivo. Até ao momento tem conseguido ser razoavelmente fair no seu tratamento de notícias políticas.
A separata de sábado - edição de fim-de-semana - sobre características dos portugueses, é não só um exemplo de bom planeamento como é geralmente alvo de um tratamento refrescante.
Por este conjunto de razões, esta pareceu-me ser uma notícia digna de elogio.
9/02/2009
Homem versus máquina
A leitura deste título pode fazer imaginar um daqueles temas que são de há muito tratados em ensaios. Justificadamente, aliás, pois a contenda há séculos existente entre a máquina e o homem tem produzido efeitos decisivos em múltiplos países do mundo. Não é, no entanto, de tractores, gruas, computadores, frigoríficos, robôs ou aviões que me proponho reflectir um pouco. Aqui, o tema homem-máquina tem outra vertente: a política, a do indivíduo versus a máquina partidária.
Acabo de ler uma entrevista dada por um consagrado candidato socialista do norte de Portugal. Dentro de semanas realizar-se-ão eleições autárquicas, razão por que o tema se revela de interesse. Para este texto, não será importante indicar o nome do entrevistado. Mais importantes são as suas declarações. Mesmo assim, sempre adianto que a pessoa em questão foi presidente da câmara durante 26 anos. Após um interregno de quatro anos, candidata-se de novo. Como independente. Utiliza uma linguagem calma mas forte, de revolta e de alguma desilusão partidária. Sabe que as pessoas estão cansadas dos partidos no seu país. Pessoalmente, ele considera que existe uma flagrante tendência para proteger a vida partidária. Um exemplo concreto: enquanto os partidos estão isentos de IVA, os candidatos independentes não. Um candidato independente não pode utilizar um símbolo nos boletins de voto; a sua designação será a de um número de 1 a 20 escolhido por sorteio.
O principal, porém, parece-me ser a confissão do candidato de que aprendeu muito durante estes últimos quatro anos em que não esteve no poder. Viu de fora muita coisa. Aprendeu a rever os seus próprios erros enquanto foi presidente. "Chega de betão armado nesta terra", promete. Irá, se for eleito, ser financeiramente rigoroso. Reduzirá o número de chefes e de directores. Sabe que há mais de 100 milhões de euros em facturas por pagar, o que coloca em risco várias empresas. Depois, diz: "Recusei tachos políticos que o meu partido me oferecia. Na vida política os valores não existem. Quem está à espera de gratidão na vida política falha. Não é saudável que líderes se considerem donos de toda a verdade e do país. Não respeitam quem, dentro do partido, tem opiniões diferentes."
O que acho particularmente interessante neste caso é o facto de o candidato, revoltado não contra o seu partido mas sim contra os seus líderes, sentir que tem aqui uma oportunidade de realizar um acto de renascimento político e fazer perante a população que o elegeu consecutivamente em anos anteriores um acto parcial de contrição. É um homem revoltado contra a máquina partidária, que subjuga e desencenfala o indivíduo. Hoje, ele possui todo o know-how de que um autarca necessita e, o que é mais, possui decerto o desafogo suficiente para lutar localmente contra a máquina. Espelha, por outro lado, a luta que o político mais maduro por vezes trava entre a imagem de integridade que gostaria de ter e a ambição de poder que frequentemente o embriaga. Este não é um homem rico, mas não deixa de falar naquilo que há muito se sabe: as grandes fortunas não se fazem à custa de trabalho, mas sim com o encosto ao Estado, às mordomias e negociatas que esse posicionamento permite. Estaremos, pois, perante um rebate de consciência.
Chegados aqui, vejamos um outro caso bem mais conhecido e mediático: o de Felgueiras, também no Norte. Fátima Felgueiras deveria ter sido presa e punida pela sua fuga à justiça aquando da sua viagem para o Brasil. Não foi. Candidatou-se de novo e foi eleita para novo mandato. Impressionará muita gente ver a sua força. Independentemente de vários processos judiciais que tem ainda de enfrentar após ter sido ilibada num deles, a sua grande revolta vai contra a máquina partidária que não a apoiou como ela considerou que deveria. Os autarcas trabalham para si próprios mas também devem contribuições ao partido à sombra do qual foram eleitos. A máquina não esquece. Quando são algumas dessas contribuições monetárias que estão em causa, terá que se admitir alguma legitimidade por parte de quem não recebe o apoio devido. A candidatura como independente é uma solução.
Extraordinária é também a força de Isaltino Morais, autarca de Oeiras. É arguido de uma boa série de fraudes. Confessou publicamente que não fazia coisas (entenda-se "jogadas") muito diferentes das de outros autarcas, e que se orgulhava da obra desenvolvida no seu concelho. Pediu que investigassem a sério um colega do seu partido – aquele que lhe retirou há anos a possibilidade de se candidatar pelos sociais-democratas – pois encontrariam uma situação semelhante à sua. Vai de novo a eleições este ano. Também ele se ressente da falta de apoio que o seu partido lhe deu: a máquina partidária não hesitou em jogá-lo fora, desumanamente, quando se sentiu eventualmente prejudicado pela imagem.
Nestes casos, como noutros, vem ao de cima uma democracia local, um bairrismo que também é mais do que notório no insularismo de Alberto João Jardim. Ao analisarmos estes casos pelo lado dos homens e das mulheres envolvidos, constatamos que a maioria se mantém fiel à máquina partidária: não possuem ainda experiência e peso suficientes para se revoltarem. Para aqueles que, calejados e com traquejo, se revoltam, ignorar e vencer a máquina partidária – o polvo que tudo pretende controlar – deve dar um gozo muito especial!
Acabo de ler uma entrevista dada por um consagrado candidato socialista do norte de Portugal. Dentro de semanas realizar-se-ão eleições autárquicas, razão por que o tema se revela de interesse. Para este texto, não será importante indicar o nome do entrevistado. Mais importantes são as suas declarações. Mesmo assim, sempre adianto que a pessoa em questão foi presidente da câmara durante 26 anos. Após um interregno de quatro anos, candidata-se de novo. Como independente. Utiliza uma linguagem calma mas forte, de revolta e de alguma desilusão partidária. Sabe que as pessoas estão cansadas dos partidos no seu país. Pessoalmente, ele considera que existe uma flagrante tendência para proteger a vida partidária. Um exemplo concreto: enquanto os partidos estão isentos de IVA, os candidatos independentes não. Um candidato independente não pode utilizar um símbolo nos boletins de voto; a sua designação será a de um número de 1 a 20 escolhido por sorteio.
O principal, porém, parece-me ser a confissão do candidato de que aprendeu muito durante estes últimos quatro anos em que não esteve no poder. Viu de fora muita coisa. Aprendeu a rever os seus próprios erros enquanto foi presidente. "Chega de betão armado nesta terra", promete. Irá, se for eleito, ser financeiramente rigoroso. Reduzirá o número de chefes e de directores. Sabe que há mais de 100 milhões de euros em facturas por pagar, o que coloca em risco várias empresas. Depois, diz: "Recusei tachos políticos que o meu partido me oferecia. Na vida política os valores não existem. Quem está à espera de gratidão na vida política falha. Não é saudável que líderes se considerem donos de toda a verdade e do país. Não respeitam quem, dentro do partido, tem opiniões diferentes."
O que acho particularmente interessante neste caso é o facto de o candidato, revoltado não contra o seu partido mas sim contra os seus líderes, sentir que tem aqui uma oportunidade de realizar um acto de renascimento político e fazer perante a população que o elegeu consecutivamente em anos anteriores um acto parcial de contrição. É um homem revoltado contra a máquina partidária, que subjuga e desencenfala o indivíduo. Hoje, ele possui todo o know-how de que um autarca necessita e, o que é mais, possui decerto o desafogo suficiente para lutar localmente contra a máquina. Espelha, por outro lado, a luta que o político mais maduro por vezes trava entre a imagem de integridade que gostaria de ter e a ambição de poder que frequentemente o embriaga. Este não é um homem rico, mas não deixa de falar naquilo que há muito se sabe: as grandes fortunas não se fazem à custa de trabalho, mas sim com o encosto ao Estado, às mordomias e negociatas que esse posicionamento permite. Estaremos, pois, perante um rebate de consciência.
Chegados aqui, vejamos um outro caso bem mais conhecido e mediático: o de Felgueiras, também no Norte. Fátima Felgueiras deveria ter sido presa e punida pela sua fuga à justiça aquando da sua viagem para o Brasil. Não foi. Candidatou-se de novo e foi eleita para novo mandato. Impressionará muita gente ver a sua força. Independentemente de vários processos judiciais que tem ainda de enfrentar após ter sido ilibada num deles, a sua grande revolta vai contra a máquina partidária que não a apoiou como ela considerou que deveria. Os autarcas trabalham para si próprios mas também devem contribuições ao partido à sombra do qual foram eleitos. A máquina não esquece. Quando são algumas dessas contribuições monetárias que estão em causa, terá que se admitir alguma legitimidade por parte de quem não recebe o apoio devido. A candidatura como independente é uma solução.
Extraordinária é também a força de Isaltino Morais, autarca de Oeiras. É arguido de uma boa série de fraudes. Confessou publicamente que não fazia coisas (entenda-se "jogadas") muito diferentes das de outros autarcas, e que se orgulhava da obra desenvolvida no seu concelho. Pediu que investigassem a sério um colega do seu partido – aquele que lhe retirou há anos a possibilidade de se candidatar pelos sociais-democratas – pois encontrariam uma situação semelhante à sua. Vai de novo a eleições este ano. Também ele se ressente da falta de apoio que o seu partido lhe deu: a máquina partidária não hesitou em jogá-lo fora, desumanamente, quando se sentiu eventualmente prejudicado pela imagem.
Nestes casos, como noutros, vem ao de cima uma democracia local, um bairrismo que também é mais do que notório no insularismo de Alberto João Jardim. Ao analisarmos estes casos pelo lado dos homens e das mulheres envolvidos, constatamos que a maioria se mantém fiel à máquina partidária: não possuem ainda experiência e peso suficientes para se revoltarem. Para aqueles que, calejados e com traquejo, se revoltam, ignorar e vencer a máquina partidária – o polvo que tudo pretende controlar – deve dar um gozo muito especial!
9/01/2009
Quem é o culpado? Quem é o salvador?
A inegável tendência que a generalidade das pessoas possui para chegar mentalmente a conclusões simplistas – as mais aprofundadas são complexas, dão trabalho e não estão ao alcance de todos – conduz a fórmulas simples de "culpados" e "salvadores", que são especialmente úteis em períodos eleitorais como o actual.
Tomemos vários títulos de jornais - "Emigrantes cortam nas remessas. Menos 300 milhões por semestre", "Desemprego não cessa de aumentar em Portugal", "Segurança Social vê o seu Fundo de Segurança diminuir", "Área de floresta ardida foi superior à do ano passado", "Número de pessoas endividadas continua a crescer". Para si próprias, as pessoas questionam-se: "Quem é o culpado destas calamidades?" A pergunta em si mesma diz mais sobre quem a formula do que a questão que ela levanta. Quem a formula tem um objectivo inconfessado: apontar a culpa a alguém, se possível a uma pessoa só, e eximir-se pessoalmente de toda e qualquer sombra de culpabilidade: se ele/ela até denuncia esses problemas é porque a culpa não pode ser sua!
A citação já mil vezes feita da frase de John F. Kennedy dirigida a cada um dos seus compatriotas – "Não perguntes o que o teu país pode fazer por ti, mas sim o que tu podes fazer pelo teu país" – justificou-se numa nação como os Estados Unidos. Por maioria de razões, num país há muito Estado-dependente como Portugal, ela deveria ser assimilada por toda a população. Sabemos bem que o não é. Logo, a tendência é a de arranjar um culpado. O chefe ou a chefe do governo é quem leva com tudo às costas. Se foi eleito por larga maioria, o desapontamento e a raiva serão naturalmente maiores. O tribunal dos cidadãos-eleitores aponta o dedo e lê o veredicto: é ele o culpado! Ainda me lembro de há uns anos, quando o Partido Socialista estava no governo, aliás como agora sucede, se dizer constantemente: "A culpa é do Guterres!" O Guterres era culpado de coisas como as apontadas acima e de muitas mais. Num país de calimeros, que adora fazer o choradinho das suas penas e mágoas – quem critica crê, naturalmente, estar acima da pessoa criticada – este é o prato do dia. Muito excepcionalmente, neste caso a justiça é célere em Portugal - é o tribunal da praça pública a actuar. "O culpado é..."
Contudo, olhando para questões como as acima apontadas, poderia chegar-se a outras conclusões. Quanto às receitas dos emigrantes, por exemplo, estudos demonstram que a entrada de remessas provindas de emigrantes no estrangeiro acompanha, em Portugal e noutros países, o ritmo de crescimento do produto interno bruto. Em 2002 e 2003, anos de dificuldades na maioria das economias europeias, as remessas cederam de forma notória em Portugal: menos 25% e 14%, respectivamente. Agora as dificuldades económicas e financeiras são ainda mais graves. A questão do desemprego também está muito longe de ser unicamente apanágio do país chamado Portugal. Ao nosso lado, em Espanha, a situação não é, pelo menos aparentemente, mais favorável. E na Irlanda? E na Grécia? No que concerne a questão do Fundo da Segurança Social, o facto de ele ter sido parcialmente investido em offshores já há vários anos fez com que o ano passado, com a queda abrupta das cotações, o seu montante tivesse baixado notoriamente. Etc.
Explicações aparte, há de facto sempre culpas de quem nos governa. Mas há também méritos, que são humanamente esquecidos. Entretanto, espetar as farpas do nosso descontentamento sempre no mesmo bode expiatório pode ser fácil mas cria um óbvio problema: a necessidade de encontrar um salvador, alguém que levante a pátria de novo e a faça erguer ao pedestal que as nossas expectativas contemplam. E, já agora, que não deixe de nos beneficiar pessoalmente. A este propósito, ocorre-me a "oração ao sol acima das nuvens" do dinamarquês Piet Hein:
Ó sol, que dás luz a todas as coisas,
Brilha sobre tudo o que há na Terra!
Se isso é pedir muito,
Brilha ao menos no nosso país!
Se ainda é muito para ti,
Brilha um pouco sobre mim.
E o salvador? Bem, o salvador vai repor as coisas no seu devido lugar. Esperamos nós. Vai ficar em estado de graça durante algum tempo. Se não cumprir aquilo que prevíamos e começar a desapontar-nos, o seu estado de graça desaparecerá mais cedo do que o previsto. É salvador, ma non troppo. E nós, em que medida colaboramos com ele? Todos sabemos por experiência própria que é difícil ou mesmo impossível agradar a gregos e a troianos, mas acusar é a coisa mais fácil do mundo. "Se alguém é capaz de sorrir quando tudo corre mal é porque já sabe sobre quem deitar as culpas."
O ciclo renova-se. Já vimos este filme mais do que uma vez, não é verdade?
Tomemos vários títulos de jornais - "Emigrantes cortam nas remessas. Menos 300 milhões por semestre", "Desemprego não cessa de aumentar em Portugal", "Segurança Social vê o seu Fundo de Segurança diminuir", "Área de floresta ardida foi superior à do ano passado", "Número de pessoas endividadas continua a crescer". Para si próprias, as pessoas questionam-se: "Quem é o culpado destas calamidades?" A pergunta em si mesma diz mais sobre quem a formula do que a questão que ela levanta. Quem a formula tem um objectivo inconfessado: apontar a culpa a alguém, se possível a uma pessoa só, e eximir-se pessoalmente de toda e qualquer sombra de culpabilidade: se ele/ela até denuncia esses problemas é porque a culpa não pode ser sua!
A citação já mil vezes feita da frase de John F. Kennedy dirigida a cada um dos seus compatriotas – "Não perguntes o que o teu país pode fazer por ti, mas sim o que tu podes fazer pelo teu país" – justificou-se numa nação como os Estados Unidos. Por maioria de razões, num país há muito Estado-dependente como Portugal, ela deveria ser assimilada por toda a população. Sabemos bem que o não é. Logo, a tendência é a de arranjar um culpado. O chefe ou a chefe do governo é quem leva com tudo às costas. Se foi eleito por larga maioria, o desapontamento e a raiva serão naturalmente maiores. O tribunal dos cidadãos-eleitores aponta o dedo e lê o veredicto: é ele o culpado! Ainda me lembro de há uns anos, quando o Partido Socialista estava no governo, aliás como agora sucede, se dizer constantemente: "A culpa é do Guterres!" O Guterres era culpado de coisas como as apontadas acima e de muitas mais. Num país de calimeros, que adora fazer o choradinho das suas penas e mágoas – quem critica crê, naturalmente, estar acima da pessoa criticada – este é o prato do dia. Muito excepcionalmente, neste caso a justiça é célere em Portugal - é o tribunal da praça pública a actuar. "O culpado é..."
Contudo, olhando para questões como as acima apontadas, poderia chegar-se a outras conclusões. Quanto às receitas dos emigrantes, por exemplo, estudos demonstram que a entrada de remessas provindas de emigrantes no estrangeiro acompanha, em Portugal e noutros países, o ritmo de crescimento do produto interno bruto. Em 2002 e 2003, anos de dificuldades na maioria das economias europeias, as remessas cederam de forma notória em Portugal: menos 25% e 14%, respectivamente. Agora as dificuldades económicas e financeiras são ainda mais graves. A questão do desemprego também está muito longe de ser unicamente apanágio do país chamado Portugal. Ao nosso lado, em Espanha, a situação não é, pelo menos aparentemente, mais favorável. E na Irlanda? E na Grécia? No que concerne a questão do Fundo da Segurança Social, o facto de ele ter sido parcialmente investido em offshores já há vários anos fez com que o ano passado, com a queda abrupta das cotações, o seu montante tivesse baixado notoriamente. Etc.
Explicações aparte, há de facto sempre culpas de quem nos governa. Mas há também méritos, que são humanamente esquecidos. Entretanto, espetar as farpas do nosso descontentamento sempre no mesmo bode expiatório pode ser fácil mas cria um óbvio problema: a necessidade de encontrar um salvador, alguém que levante a pátria de novo e a faça erguer ao pedestal que as nossas expectativas contemplam. E, já agora, que não deixe de nos beneficiar pessoalmente. A este propósito, ocorre-me a "oração ao sol acima das nuvens" do dinamarquês Piet Hein:
Ó sol, que dás luz a todas as coisas,
Brilha sobre tudo o que há na Terra!
Se isso é pedir muito,
Brilha ao menos no nosso país!
Se ainda é muito para ti,
Brilha um pouco sobre mim.
E o salvador? Bem, o salvador vai repor as coisas no seu devido lugar. Esperamos nós. Vai ficar em estado de graça durante algum tempo. Se não cumprir aquilo que prevíamos e começar a desapontar-nos, o seu estado de graça desaparecerá mais cedo do que o previsto. É salvador, ma non troppo. E nós, em que medida colaboramos com ele? Todos sabemos por experiência própria que é difícil ou mesmo impossível agradar a gregos e a troianos, mas acusar é a coisa mais fácil do mundo. "Se alguém é capaz de sorrir quando tudo corre mal é porque já sabe sobre quem deitar as culpas."
O ciclo renova-se. Já vimos este filme mais do que uma vez, não é verdade?
Subscrever:
Mensagens (Atom)