9/11/2009
Três é a conta que Deus fez
Numa pequena povoação a cerca de quatro quilómetros de Alcobaça fica o velho convento de Cós, que foi habitado durante largos anos por freiras cistercienses. Para quem eventualmente não o conheça, uma visita não deixa de ser interessante. Estive lá no final de Agosto. Apesar de os claustros não poderem ser visitados porque vão ser sujeitos a grandes obras de restauro, a igreja está em boas condições e é recomendável. Possui uma única nave, com o cadeiral do coro no mesmo piso. Uma das fotos que incluo pretende dar uma ideia do aspecto geral da igreja, embora não inclua o coro, que fica na parte de trás da habitual grade que separa as religiosas dos comuns fiéis que vão apenas assistir à missa ou rezar.
Chamou-me particularmente a atenção o quadro que representa o Purgatório, que aqui também reproduzo. Ocupa uma parte significativa da parede do lado esquerdo.
Pessoalmente, sempre achei muito curiosa a utilização do número 3 para vários itens ligados à religião católica. Desde a Santíssima Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo -, passando pelo popular dito "Três é a conta que Deus fez" até à divisão tripartida do período pós-morte em Céu, Purgatório e Inferno, acho que o 3 adquire um simbolismo muito especial. Para começar, 3 é número primo, o que lhe empresta desde logo um certo cunho mágico. Esta magia faz dele um número de sorte associado a Deus, como oposto ao mal e ao Diabo. Também os Reis Magos eram três; para afastarmos os maus espíritos batemos três vezes com a mão em algo que seja de madeira (como a cruz em que Cristo foi crucificado). A fórmula do nosso Totobola é a de 1, X, 2, ligada à nossa formatação habitual de tri- (vitória, empate ou derrota). Igualmente no nosso dia-a-dia há muitos três deste género, v.g. sim, não, talvez; direita, esquerda, meio/centro; tese, antítese, síntese. E assim chegamos também ao nosso destino de 1, X, 2 após a nossa morte.
Os diferentes destinos que nos são oferecidos quando, ainda pequenos, vamos à catequese, são três: o Céu, o Inferno e, no meio, o Purgatório. Quem tem a alma limpa vai direitinho para o Céu, quem a tem negra expiará até à eternidade no Inferno. Quem se portou assim-assim, irá parar ao Purgatório. Aí terá que ser expurgado de todo e qualquer mal que possua a fim de poder entrar no céu. Sofrerá muito, entretanto, pelos pecados cometidos na Terra. Só então pode ser repescado, se o for, e ir para o paradisíaco Céu.
No quadro da igreja de Cós, o sofrimento é expresso, tradicionalmente, pelo calor infernal das chamas que lambem implacavelmente o corpo das pecaminosas criaturas. O sofrimento é a um tempo uma punição, uma purificação e um elemento desincentivador para quem contempla, ainda em vida, o quadro realista. Desta forma pedagógica, os eventuais pecadores já sabem o que os espera. Dado que a esperança é a última a morrer, felizmente mantém-se a possibilidade de resgate daquelas almas para o Céu: na parte superior do quadro vêem-se anjos a estenderem os braços para elevarem para o seu Céu um ou outro dos ex-pecadores. E onde fica esse Céu? Dentro da nossa formatação mental, ele fica na parte superior, enquanto o Inferno se situa nas profundezas. Este Purgatório de que o quadro nos dá uma ideia pungente fica no meio. (Tamném na vaticana Capela Sistina, Miguel Ângelo mostrou de forma irrepreensível estes três mesmos estádios. Num deles, interessantemente para os portugueses, surge um anjo com o escudo da nação portuguesa a resgatar um indígena: é o apadrinhamento papal da acção colonizadora das lusas gentes em terras recém-descobertas além-Atlântico.)
Aquando da visita a Cós, tentei imaginar os pensamentos que poderiam passar pela cabeça das freiras à vista deste quadro. O sexo, uma actividade perfeitamente comum em todo o reino animal para assegurar a continuação da espécie – e não só – era-lhes mentalmente reprimido de forma brutal. As alterosas e punitivas chamas mostravam-lhes que o único caminho a seguir era o da sublimação do desejo. Nas santas criaturas era incutida pictoricamente a noção tão concreta quanto possível da punição que aguardava todo o transgressor – homem ou mulher. Já naquela altura se sabia que uma imagem vale mais do que mil palavras.
Sabe bem, por comparação com os tempos de hoje, constatar o avanço que entretanto a nossa sociedade fez em termos de libertação da mente e, em grande medida, do corpo.
Se for a Cós, não deixe de ver o quadro. E, já agora, repare também nas "misericórdias", aquelas pequenas mas sólidas peças de madeira na parte de baixo dos assentos do cadeiral. Misericordiosamente, para que as freiras não estivessem de pé muito tempo, elas podiam sentar-se mais ou menos confortavelmente nessas peças de madeira, dando embora a impressão de que estavam de pé. Foi decerto uma alma generosa da Igreja que concebeu esta forma de evitar sacrifícios ainda maiores. Já bastavam as vistas do Purgatório!
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