A leitura deste título pode fazer imaginar um daqueles temas que são de há muito tratados em ensaios. Justificadamente, aliás, pois a contenda há séculos existente entre a máquina e o homem tem produzido efeitos decisivos em múltiplos países do mundo. Não é, no entanto, de tractores, gruas, computadores, frigoríficos, robôs ou aviões que me proponho reflectir um pouco. Aqui, o tema homem-máquina tem outra vertente: a política, a do indivíduo versus a máquina partidária.
Acabo de ler uma entrevista dada por um consagrado candidato socialista do norte de Portugal. Dentro de semanas realizar-se-ão eleições autárquicas, razão por que o tema se revela de interesse. Para este texto, não será importante indicar o nome do entrevistado. Mais importantes são as suas declarações. Mesmo assim, sempre adianto que a pessoa em questão foi presidente da câmara durante 26 anos. Após um interregno de quatro anos, candidata-se de novo. Como independente. Utiliza uma linguagem calma mas forte, de revolta e de alguma desilusão partidária. Sabe que as pessoas estão cansadas dos partidos no seu país. Pessoalmente, ele considera que existe uma flagrante tendência para proteger a vida partidária. Um exemplo concreto: enquanto os partidos estão isentos de IVA, os candidatos independentes não. Um candidato independente não pode utilizar um símbolo nos boletins de voto; a sua designação será a de um número de 1 a 20 escolhido por sorteio.
O principal, porém, parece-me ser a confissão do candidato de que aprendeu muito durante estes últimos quatro anos em que não esteve no poder. Viu de fora muita coisa. Aprendeu a rever os seus próprios erros enquanto foi presidente. "Chega de betão armado nesta terra", promete. Irá, se for eleito, ser financeiramente rigoroso. Reduzirá o número de chefes e de directores. Sabe que há mais de 100 milhões de euros em facturas por pagar, o que coloca em risco várias empresas. Depois, diz: "Recusei tachos políticos que o meu partido me oferecia. Na vida política os valores não existem. Quem está à espera de gratidão na vida política falha. Não é saudável que líderes se considerem donos de toda a verdade e do país. Não respeitam quem, dentro do partido, tem opiniões diferentes."
O que acho particularmente interessante neste caso é o facto de o candidato, revoltado não contra o seu partido mas sim contra os seus líderes, sentir que tem aqui uma oportunidade de realizar um acto de renascimento político e fazer perante a população que o elegeu consecutivamente em anos anteriores um acto parcial de contrição. É um homem revoltado contra a máquina partidária, que subjuga e desencenfala o indivíduo. Hoje, ele possui todo o know-how de que um autarca necessita e, o que é mais, possui decerto o desafogo suficiente para lutar localmente contra a máquina. Espelha, por outro lado, a luta que o político mais maduro por vezes trava entre a imagem de integridade que gostaria de ter e a ambição de poder que frequentemente o embriaga. Este não é um homem rico, mas não deixa de falar naquilo que há muito se sabe: as grandes fortunas não se fazem à custa de trabalho, mas sim com o encosto ao Estado, às mordomias e negociatas que esse posicionamento permite. Estaremos, pois, perante um rebate de consciência.
Chegados aqui, vejamos um outro caso bem mais conhecido e mediático: o de Felgueiras, também no Norte. Fátima Felgueiras deveria ter sido presa e punida pela sua fuga à justiça aquando da sua viagem para o Brasil. Não foi. Candidatou-se de novo e foi eleita para novo mandato. Impressionará muita gente ver a sua força. Independentemente de vários processos judiciais que tem ainda de enfrentar após ter sido ilibada num deles, a sua grande revolta vai contra a máquina partidária que não a apoiou como ela considerou que deveria. Os autarcas trabalham para si próprios mas também devem contribuições ao partido à sombra do qual foram eleitos. A máquina não esquece. Quando são algumas dessas contribuições monetárias que estão em causa, terá que se admitir alguma legitimidade por parte de quem não recebe o apoio devido. A candidatura como independente é uma solução.
Extraordinária é também a força de Isaltino Morais, autarca de Oeiras. É arguido de uma boa série de fraudes. Confessou publicamente que não fazia coisas (entenda-se "jogadas") muito diferentes das de outros autarcas, e que se orgulhava da obra desenvolvida no seu concelho. Pediu que investigassem a sério um colega do seu partido – aquele que lhe retirou há anos a possibilidade de se candidatar pelos sociais-democratas – pois encontrariam uma situação semelhante à sua. Vai de novo a eleições este ano. Também ele se ressente da falta de apoio que o seu partido lhe deu: a máquina partidária não hesitou em jogá-lo fora, desumanamente, quando se sentiu eventualmente prejudicado pela imagem.
Nestes casos, como noutros, vem ao de cima uma democracia local, um bairrismo que também é mais do que notório no insularismo de Alberto João Jardim. Ao analisarmos estes casos pelo lado dos homens e das mulheres envolvidos, constatamos que a maioria se mantém fiel à máquina partidária: não possuem ainda experiência e peso suficientes para se revoltarem. Para aqueles que, calejados e com traquejo, se revoltam, ignorar e vencer a máquina partidária – o polvo que tudo pretende controlar – deve dar um gozo muito especial!
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