A inegável tendência que a generalidade das pessoas possui para chegar mentalmente a conclusões simplistas – as mais aprofundadas são complexas, dão trabalho e não estão ao alcance de todos – conduz a fórmulas simples de "culpados" e "salvadores", que são especialmente úteis em períodos eleitorais como o actual.
Tomemos vários títulos de jornais - "Emigrantes cortam nas remessas. Menos 300 milhões por semestre", "Desemprego não cessa de aumentar em Portugal", "Segurança Social vê o seu Fundo de Segurança diminuir", "Área de floresta ardida foi superior à do ano passado", "Número de pessoas endividadas continua a crescer". Para si próprias, as pessoas questionam-se: "Quem é o culpado destas calamidades?" A pergunta em si mesma diz mais sobre quem a formula do que a questão que ela levanta. Quem a formula tem um objectivo inconfessado: apontar a culpa a alguém, se possível a uma pessoa só, e eximir-se pessoalmente de toda e qualquer sombra de culpabilidade: se ele/ela até denuncia esses problemas é porque a culpa não pode ser sua!
A citação já mil vezes feita da frase de John F. Kennedy dirigida a cada um dos seus compatriotas – "Não perguntes o que o teu país pode fazer por ti, mas sim o que tu podes fazer pelo teu país" – justificou-se numa nação como os Estados Unidos. Por maioria de razões, num país há muito Estado-dependente como Portugal, ela deveria ser assimilada por toda a população. Sabemos bem que o não é. Logo, a tendência é a de arranjar um culpado. O chefe ou a chefe do governo é quem leva com tudo às costas. Se foi eleito por larga maioria, o desapontamento e a raiva serão naturalmente maiores. O tribunal dos cidadãos-eleitores aponta o dedo e lê o veredicto: é ele o culpado! Ainda me lembro de há uns anos, quando o Partido Socialista estava no governo, aliás como agora sucede, se dizer constantemente: "A culpa é do Guterres!" O Guterres era culpado de coisas como as apontadas acima e de muitas mais. Num país de calimeros, que adora fazer o choradinho das suas penas e mágoas – quem critica crê, naturalmente, estar acima da pessoa criticada – este é o prato do dia. Muito excepcionalmente, neste caso a justiça é célere em Portugal - é o tribunal da praça pública a actuar. "O culpado é..."
Contudo, olhando para questões como as acima apontadas, poderia chegar-se a outras conclusões. Quanto às receitas dos emigrantes, por exemplo, estudos demonstram que a entrada de remessas provindas de emigrantes no estrangeiro acompanha, em Portugal e noutros países, o ritmo de crescimento do produto interno bruto. Em 2002 e 2003, anos de dificuldades na maioria das economias europeias, as remessas cederam de forma notória em Portugal: menos 25% e 14%, respectivamente. Agora as dificuldades económicas e financeiras são ainda mais graves. A questão do desemprego também está muito longe de ser unicamente apanágio do país chamado Portugal. Ao nosso lado, em Espanha, a situação não é, pelo menos aparentemente, mais favorável. E na Irlanda? E na Grécia? No que concerne a questão do Fundo da Segurança Social, o facto de ele ter sido parcialmente investido em offshores já há vários anos fez com que o ano passado, com a queda abrupta das cotações, o seu montante tivesse baixado notoriamente. Etc.
Explicações aparte, há de facto sempre culpas de quem nos governa. Mas há também méritos, que são humanamente esquecidos. Entretanto, espetar as farpas do nosso descontentamento sempre no mesmo bode expiatório pode ser fácil mas cria um óbvio problema: a necessidade de encontrar um salvador, alguém que levante a pátria de novo e a faça erguer ao pedestal que as nossas expectativas contemplam. E, já agora, que não deixe de nos beneficiar pessoalmente. A este propósito, ocorre-me a "oração ao sol acima das nuvens" do dinamarquês Piet Hein:
Ó sol, que dás luz a todas as coisas,
Brilha sobre tudo o que há na Terra!
Se isso é pedir muito,
Brilha ao menos no nosso país!
Se ainda é muito para ti,
Brilha um pouco sobre mim.
E o salvador? Bem, o salvador vai repor as coisas no seu devido lugar. Esperamos nós. Vai ficar em estado de graça durante algum tempo. Se não cumprir aquilo que prevíamos e começar a desapontar-nos, o seu estado de graça desaparecerá mais cedo do que o previsto. É salvador, ma non troppo. E nós, em que medida colaboramos com ele? Todos sabemos por experiência própria que é difícil ou mesmo impossível agradar a gregos e a troianos, mas acusar é a coisa mais fácil do mundo. "Se alguém é capaz de sorrir quando tudo corre mal é porque já sabe sobre quem deitar as culpas."
O ciclo renova-se. Já vimos este filme mais do que uma vez, não é verdade?
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