4/27/2011

Dois casos de imolação pelo fogo

No passado mês de Janeiro, na Tunísia, um pobre vendedor ambulante que procurava vender os seus produtos na rua foi de tal maneira molestado pelas autoridades que, desesperado, não resistiu. À vista de outras pessoas, imolou-se pelo fogo. A terrível cena teve o condão de ser propagada por todo a Tunísia e fez acordar o país para a prepotência das autoridades, para a injustiça social e as enormes desigualdades existentes, nomeadamente entre a família governante mais os seus corruptos amigos e a esmagadora maioria da população. Por assim dizer, o fogo que imolou o vendedor ambulante incendiou os ânimos em todo o país. Formaram-se espontaneamente grandes grupos de jovens protestando contra as poucas saídas que viam para o seu futuro, apesar de muitos deles serem a camada mais instruída do país. Daí até ao derrube do governo foi um passo. Depois, como todos sabemos, a "primavera norte-africana" estendeu-se ao Egipto, onde Mubarak teve o mesmo destino do tunisino Ben Ali. Do Egipto passou à Líbia, e a insurreição já reina no Iémen e na Síria. Tudo teve como origem a imolação do vendedor ambulante, que naturalmente não viveu para testemunhar o reboliço e as enormes transformações que o seu acto acabou por causar.
Anteontem, em França, perto de Bordéus, um trabalhador da France Telecom casado, com quatro filhos, 57 anos de idade e mais de metade da sua vida dedicada à empresa – mais de 30 anos -, não resistiu às sucessivas mudanças de posto que, inclusivamente, o forçaram a vender a sua própria casa. Ao chegar de manhã ao trabalho, imolou-se pelo fogo junto ao parque de estacionamento da France Telecom.
Não é a primeira vez que esta empresa é badalada por casos semelhantes. Entre 2008 e 2009, números oficiais acordados entre a Administração e os dirigentes sindicais referem um total de 35 trabalhadores que se suicidaram. Como a France Telecom tem um total de 100 mil trabalhadores, um comentário da Administração salientou que o número de suicídios não lhes parecia excessivo. A pressão da opinião pública fez, porém, com que, em 2009, o vice-Presidente da companhia apresentasse a sua demissão.
Este é mais um caso típico da mobilidade que é imposta aos trabalhadores e das consequências que essa mobilidade pode causar. No caso em questão, este empregado terá escrito várias vezes à Administração a expor o seu caso, mas nunca obteve qualquer resposta.
Cada vez mais, sente-se, os empregados contam não como pessoas mas como mais uma mera forma de capital: são "capital humano", alternativamente designados como "recursos humanos". O que conta basicamente para empresas deste quilate – e há muitas por esse mundo fora, como a globalização não se cansa de nos revelar – é a definição de objectivos e, posteriormente, o cumprimento desses mesmos objectivos por parte dos trabalhadores. Com que finalidade? A de garantir que a distribuição dos dividendos pelos accionistas será generosa, ou então que o valor de cada acção sofrerá um aumento substancial. Conceitos aparentemente abstractos como mobilidade e flexibilidade têm muito que se lhes diga em termos de prejuízo físico e mental para muitos trabalhadores.
Entretanto, o que ocorreu no parque de estacionamento de Merignac, nos arredores de Bordéus, não ocupou mais do que meia coluna de uma discreta página interior do jornal que regularmente leio. O caso da Tunísia foi, naturalmente, trazido para a primeira página.
Que conclusões podemos colher?

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