Não me considero grande fã de televisão. Há muito que não vejo telejornais, embora possa de vez em quando ser alertado para uma determinada reportagem que está a ser transmitida. Não acompanho nem telenovelas nem concursos. Por outro lado, a terrível sensação de déjà vu ao fim destes anos todos de debates políticos afasta-me desse tipo de programas, embora naturalmente não possa por vezes evitar ver passagens que estão a ser visionadas por alguém da família cá em casa. Já tenho ouvido boa música na TV e visto bom cinema. Utilizo com alguma frequência o televisor para ver DVDs que me interessam. Ciente da velha máxima que distingue a televisão do cinema apodando este último de motion, enquanto a televisão será emotion, aprecio directos e sempre que posso acompanho alguns bons jogos de futebol, desporto que pratiquei durante várias décadas.
Dentro deste quadro, o serão televisivo de ontem à noite foi uma excepção, mas uma excepção muito agradável. Pus de lado eventuais leituras e não liguei o computador. Dispus-me a ver o que estava anunciado na RTP1 e que o meu bom amigo João Miguel tinha criteriosamente incluído nas suas Sugestões publicadas neste blog. Valeu a pena. Mesmo muito.
A passagem de uma sucessão de eventos que ocorreram no período da minha vida, a minha idade actual e as recordações de momentos vividos atraíam-me para a primeira parte de um programa evocativo da figura de Zeca Afonso. A assinatura de Joaquim Vieira era uma garantia de qualidade, aliás tal como a autoria de outro Joaquim – o Furtado – costuma ser em programas sobre o período da guerra colonial.
Evocar o José Afonso, como voz possuidora de um timbre muito especial e com a criatividade consciente de um compositor que se opunha ao regime salazarista então vigente, fica sempre bem num dia que precede a data de 25 de Abril. Como tantas outras pessoas neste país, tenho praticamente toda a obra de José Afonso em CDs e facilmente me comovo ao ouvir determinadas baladas. O facto de eu ter estado na guerra colonial entre 1961 e 1963 não é certamente alheio a esse estado de espírito.
De momentos com a presença do Zeca recordo particularmente um serão que foi para mim inesquecível. Com um punhado de amigos e outros desconhecidos, integrei um grupo de pessoas que, em segredo, combinaram reunir-se para homenagear o Zeca Afonso e apoiá-lo materialmente na medida do possível (perseguido pelo regime e impedido de leccionar, ele debatia-se com dificuldades para sustentar a sua família). Pelo menos para mim, foi emocionante a sessão, com o Zeca a cantar várias das suas baladas da forma que só ele sabia, embora não se recordasse da letra de algumas canções, que o Assis Pacheco, sabedor do facto, tinha trazido e lhe colocava em frente. O Zeca cantava de pé, uma perna sobre uma cadeira e acompanhava-se a si próprio com a sua guitarra de seis cordas. O Tóssan, o do extraordinário Cãopêndio, preenchia as pausas com anedotas contadas com o humor que ele instintivamente lhes imprimia. A reunião teve lugar na sala maior de uma casa pertencente a um arquitecto mas parcialmente abandonada em S. João do Estoril, junto à Praia da Azarujinha.
Agora, no filme sobre a vida de José Afonso, o Joaquim Vieira soube escolher as pessoas certas, de familiares a amigos e a admiradores responsáveis. Todos deram através dos seus testemunhos consistência a uma biografia que é rica e emprestaram-lhe vivacidade. Foi uma reconstrução muito interessante, que simultaneamente reviveu o passado português desde os anos 30 até à década de 60. Hoje à noite haverá a continuação, a não perder.
Curiosamente, e decerto não por mera coincidência, a RTP apresentou a seguir o penúltimo episódio de uma série (Conta-me como foi) que decorre entre os anos 60 e 70. Bem interpretado por Rita Blanco e Miguel Guilherme, entre outros, o episódio retratou os tempos de Marcelo Caetano. Marcelo surgiu em duas ocasiões: primeiro a fazer uma alocução transmitida pela TV sobre o Ultramar português e, depois, na sua ida, como presidente do conselho de ministros sucessor de Salazar, a um estádio de futebol para assistir a um clássico Benfica-Sporting e receber, poucos dias antes do 25 de Abril de 1974, os aplausos de uma multidão semelhante à que o iria vaiar quando a revolução foi bem sucedida.
O meu serão televisivo na RTP1 – o mais longo de que me lembro – não terminou aqui. Dispus-me a ver o filme sobre a captura do navio Santa Maria em 1961. Embora não possa ser considerada uma obra-prima, o filme vê-se muito bem e constituiu uma estreia, o que sempre se saúda. Recria, com alguma natural ficção à mistura, um caso que deu brado e trouxe para a ribalta a situação do Ultramar português, através da visão romântica mas persistente e combativa de um homem como Henrique Galvão – que viveu durante largos anos em Angola - e de um punhado de portugueses e espanhóis opositores dos regimes ditatoriais ibéricos de Salazar e de Franco. Tudo isto ligado a mais uma safardice feita pelo governo de Salazar aquando das eleições presidenciais em que Humberto Delgado concorreu, o que levou o general a exilar-se no Brasil.
Pessoalmente, este assalto ao Santa Maria trouxe-me à memória os tempos em que trabalhei, como alferes miliciano, na Secção de Informações do Estado-Maior do Exército. Por estar nessa secção, tinha acesso a informação reservada, o que me permitiu acompanhar mais de perto a evolução dos acontecimentos. Recordo-me mesmo da vez em que, logo que soou o alarme relativo ao Santa Maria, eu ter ido a um armário de metal existente na secção onde eram guardadas fichas informativas de serviços secretos e ter retirado de lá uma informação com origem num informador da PIDE a reportar movimentos estranhos a bordo do paquete antes de o assalto se consumar. Quando mostrei o documento ao coronel chefe da repartição, ele olhou para mim e disse-me em voz baixa, em tom amigo, firme mas não autoritário: "Você nunca viu este papel!" Era assim que as coisas se passavam.
Por todo este conjunto de coisas, o serão ontem passado frente ao televisor a verem desbobinar-se estes factos e, simultaneamente, as minhas memórias, pode ter sido longo mas pareceu-me algo muito curto.
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