4/25/2011

Um serão televisivo

Não me considero grande fã de televisão. Há muito que não vejo telejornais, embora possa de vez em quando ser alertado para uma determinada reportagem que está a ser transmitida. Não acompanho nem telenovelas nem concursos. Por outro lado, a terrível sensação de déjà vu ao fim destes anos todos de debates políticos afasta-me desse tipo de programas, embora naturalmente não possa por vezes evitar ver passagens que estão a ser visionadas por alguém da família cá em casa. Já tenho ouvido boa música na TV e visto bom cinema. Utilizo com alguma frequência o televisor para ver DVDs que me interessam. Ciente da velha máxima que distingue a televisão do cinema apodando este último de motion, enquanto a televisão será emotion, aprecio directos e sempre que posso acompanho alguns bons jogos de futebol, desporto que pratiquei durante várias décadas.
Dentro deste quadro, o serão televisivo de ontem à noite foi uma excepção, mas uma excepção muito agradável. Pus de lado eventuais leituras e não liguei o computador. Dispus-me a ver o que estava anunciado na RTP1 e que o meu bom amigo João Miguel tinha criteriosamente incluído nas suas Sugestões publicadas neste blog. Valeu a pena. Mesmo muito.
A passagem de uma sucessão de eventos que ocorreram no período da minha vida, a minha idade actual e as recordações de momentos vividos atraíam-me para a primeira parte de um programa evocativo da figura de Zeca Afonso. A assinatura de Joaquim Vieira era uma garantia de qualidade, aliás tal como a autoria de outro Joaquim – o Furtado – costuma ser em programas sobre o período da guerra colonial.
Evocar o José Afonso, como voz possuidora de um timbre muito especial e com a criatividade consciente de um compositor que se opunha ao regime salazarista então vigente, fica sempre bem num dia que precede a data de 25 de Abril. Como tantas outras pessoas neste país, tenho praticamente toda a obra de José Afonso em CDs e facilmente me comovo ao ouvir determinadas baladas. O facto de eu ter estado na guerra colonial entre 1961 e 1963 não é certamente alheio a esse estado de espírito.
De momentos com a presença do Zeca recordo particularmente um serão que foi para mim inesquecível. Com um punhado de amigos e outros desconhecidos, integrei um grupo de pessoas que, em segredo, combinaram reunir-se para homenagear o Zeca Afonso e apoiá-lo materialmente na medida do possível (perseguido pelo regime e impedido de leccionar, ele debatia-se com dificuldades para sustentar a sua família). Pelo menos para mim, foi emocionante a sessão, com o Zeca a cantar várias das suas baladas da forma que só ele sabia, embora não se recordasse da letra de algumas canções, que o Assis Pacheco, sabedor do facto, tinha trazido e lhe colocava em frente. O Zeca cantava de pé, uma perna sobre uma cadeira e acompanhava-se a si próprio com a sua guitarra de seis cordas. O Tóssan, o do extraordinário Cãopêndio, preenchia as pausas com anedotas contadas com o humor que ele instintivamente lhes imprimia. A reunião teve lugar na sala maior de uma casa pertencente a um arquitecto mas parcialmente abandonada em S. João do Estoril, junto à Praia da Azarujinha.
Agora, no filme sobre a vida de José Afonso, o Joaquim Vieira soube escolher as pessoas certas, de familiares a amigos e a admiradores responsáveis. Todos deram através dos seus testemunhos consistência a uma biografia que é rica e emprestaram-lhe vivacidade. Foi uma reconstrução muito interessante, que simultaneamente reviveu o passado português desde os anos 30 até à década de 60. Hoje à noite haverá a continuação, a não perder.
Curiosamente, e decerto não por mera coincidência, a RTP apresentou a seguir o penúltimo episódio de uma série (Conta-me como foi) que decorre entre os anos 60 e 70. Bem interpretado por Rita Blanco e Miguel Guilherme, entre outros, o episódio retratou os tempos de Marcelo Caetano. Marcelo surgiu em duas ocasiões: primeiro a fazer uma alocução transmitida pela TV sobre o Ultramar português e, depois, na sua ida, como presidente do conselho de ministros sucessor de Salazar, a um estádio de futebol para assistir a um clássico Benfica-Sporting e receber, poucos dias antes do 25 de Abril de 1974, os aplausos de uma multidão semelhante à que o iria vaiar quando a revolução foi bem sucedida.
O meu serão televisivo na RTP1 – o mais longo de que me lembro – não terminou aqui. Dispus-me a ver o filme sobre a captura do navio Santa Maria em 1961. Embora não possa ser considerada uma obra-prima, o filme vê-se muito bem e constituiu uma estreia, o que sempre se saúda. Recria, com alguma natural ficção à mistura, um caso que deu brado e trouxe para a ribalta a situação do Ultramar português, através da visão romântica mas persistente e combativa de um homem como Henrique Galvão – que viveu durante largos anos em Angola - e de um punhado de portugueses e espanhóis opositores dos regimes ditatoriais ibéricos de Salazar e de Franco. Tudo isto ligado a mais uma safardice feita pelo governo de Salazar aquando das eleições presidenciais em que Humberto Delgado concorreu, o que levou o general a exilar-se no Brasil.
Pessoalmente, este assalto ao Santa Maria trouxe-me à memória os tempos em que trabalhei, como alferes miliciano, na Secção de Informações do Estado-Maior do Exército. Por estar nessa secção, tinha acesso a informação reservada, o que me permitiu acompanhar mais de perto a evolução dos acontecimentos. Recordo-me mesmo da vez em que, logo que soou o alarme relativo ao Santa Maria, eu ter ido a um armário de metal existente na secção onde eram guardadas fichas informativas de serviços secretos e ter retirado de lá uma informação com origem num informador da PIDE a reportar movimentos estranhos a bordo do paquete antes de o assalto se consumar. Quando mostrei o documento ao coronel chefe da repartição, ele olhou para mim e disse-me em voz baixa, em tom amigo, firme mas não autoritário: "Você nunca viu este papel!" Era assim que as coisas se passavam.
Por todo este conjunto de coisas, o serão ontem passado frente ao televisor a verem desbobinar-se estes factos e, simultaneamente, as minhas memórias, pode ter sido longo mas pareceu-me algo muito curto.

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