4/05/2011

O país mais rico do mundo


Embora a Organização das Nações Unidas conte com 191 países membros, o número total de nações mundiais excede os 200 e atinge um número sobre o qual não existe real consenso. Verdade seja, no entanto, que determinar com exactidão esse número é mais uma curiosidade do que algo com grande relevância. O que pretendo sublinhar é, fundamentalmente, que o país mais rico do mundo não se encontra, em minha opinião, entre aqueles que todos bem conhecemos. Façamos uma pequena-grande viagem para tentar descobri-lo.
Comecemos por falar de dinheiro. Este, como Françoise Sagan gostava de dizer, não faz a felicidade, mas é sempre preferível chorar num Mercedes a chorar num autocarro. Sacha Guitry completava ironicamente a ideia: “Quando alguém diz que o dinheiro não faz a felicidade, está com certeza a referir-se ao dinheiro dos outros.” Na realidade, seja com o objectivo de atingir a felicidade que o poder confere, seja por outros motivos, o dinheiro sempre atraiu as pessoas. Aqueles que são ricos prezam-no muito. O seu pensamento número um é o de conseguirem aumentar a sua riqueza. O seu desgosto maior é o de terem de pagar impostos ao Estado. Seja onde for. Não lhes interessa muito que os impostos sejam, como realmente são, o preço da cidadania. Se for possível comprar essa cidadania mais barato, tanto melhor. Por conseguinte, pagar o menor montante de impostos possível é um desígnio primacial de quem possui vultosas fortunas e está à frente de grandes negócios. Em abono da verdade diga-se que as tentativas de evasão fiscal sempre existiram. Presentemente, porém, elas são muito mais ousadas, envolvem montantes maiores e estão, digo eu, na origem de grandes males sociais. Mas continuemos a ir por partes.
A partir de Setembro de 2008, quando se deu uma situação de ruptura na banca e nos seguros internacionais e bolhas de imobiliário rebentaram em vários países, verificou-se, preto no branco, que muito do que estava a suceder era o resultado de uma profunda falta de ética no actual sistema capitalista, que falseara a verdade ao vender gato por lebre. De pronto foram acusadas as doutrinas neo-liberais de estarem por detrás do que vinha sucedendo há anos, com um grande incremento de várias fortunas e, principalmente, com a criação de um enorme abismo entre o capital financeiro e o capital de natureza económica, sendo o primeiro pelo menos três vezes superior ao segundo. A desregulação, também denominada liberalização, estaria na raiz de tudo. Os maiores fundos não regulados – os hedge funds – teriam, juntamente com produtos financeiros derivados, sido os causadores da crise. Receita: regular a circulação de capitais no mundo. De outra forma, instalar-se-ia o caos.
Hoje, quase três anos depois da data acima mencionada, os hedge funds continuam porém sem regulação e os casos de medidas de austeridade sucedem-se em vários países, causando um custoso sofrimento à maioria dos seus habitantes. Islândia, Grécia, Irlanda, mas também o Reino Unido, agora Portugal e a Espanha atravessam períodos particularmente difíceis. Porquê?
Em minha opinião, devido de facto às doutrinas e práticas neo-liberais, a que se juntaram vários erros gravosos de governação em diversos países. Atentemos nas opiniões expressas por alguns opinion-makers sobre o neoliberalismo:
João Ferreira do Amaral, conhecido economista, foi claro: “A partir da década de 70, o furacão neoliberal varreu tudo e todos. Destruiu mais do que construiu e afectou gravemente um dos elementos essenciais de uma sociedade, que é o sentido de comunidade. Não resolveu nenhum dos problemas fundamentais, veio agravar outros e criou enormes incertezas em relação ao futuro.”
Por seu lado, o colunista do New York Herald Tribune, William Pfaff, escreveu há catorze anos: “O neoliberalismo está a destruir a prosperidade ou os meios de existência de centenas de milhares de pessoas em nome do bem-estar das gerações futuras. Tornou-se uma máquina de empobrecimento de vastos grupos sociais e de destruição do emprego, e tudo isto apenas em benefício duma exígua classe de gestores e de uma mais ampla classe de accionistas. Esta situação não é o resultado apenas de novas tecnologias, mas também de novos dogmas. O único critério de decisão deve ser a procura do lucro máximo para o capital investido. Qualquer outra consideração, seja a dos interesses dos empregados, ou da comunidade em que a empresa funciona, perverterá a racionalidade económica e comprometerá o êxito global da economia. Os custos sociais do encerramento de empresas, dos despedimentos e da flexibilização do mercado laboral são inevitáveis, mas serão compensados pelos benefícios futuros. Quais? Afinal, o neoliberalismo justifica os seus custos humanos pela sua própria visão do futuro radioso outrora prometido pelo comunismo. Por que razão deveremos dar mais crédito a esta promessa que às promessas do comunismo?”
Vejamos ainda mais três opiniões, neste caso de dois portugueses, Fernando Dacosta primeiro (há dez anos) e, depois, de Manuel Alegre (em 2004), com o professor americano Ethan B. Kapstein (em 1997), de permeio:
"Detentor de um pensamento único (a rendibilidade), de uma ideologia democrática (a massificação), de uma estratégia sedutora (o consumismo), de uma cultura colorida (o soporífero), o liberalismo selvagem desaloja e arruína, descaracteriza e esvazia as populações onde desembarca. Ao totalitarismo ideológico da ditadura sucedeu-se o totalitarismo do lucro dos mercados; ao silêncio das censuras, o chinfrim das manipulações; ao isolamento dos cárceres, o isolamento das prateleiras; ao exílio dos inconvenientes, a excedentarização dos convenientes.
Sob mantos diáfanos de chiquismo, o sistema julga-se, e comporta-se, como se fosse dono dos seres humanos, das riquezas naturais, do equilíbrio ambiental que caem sob as suas asas. Arregimenta intelectuais e políticos, criadores e comunicadores, tal como fizeram no passado o fascismo, o nazismo, o comunismo, o fundamentalismo." (F. D.)
"Talvez o mundo se encaminhe inexoravelmente para um desses momentos trágicos que levam os historiadores do futuro a perguntar por que razão nada foi feito quando ainda era tempo. Será que as elites políticas e económicas não tinham consciência das profundas implicações provocadas pela mudança técnica e económica nos trabalhadores? O que as impediu de tomar a tempo as medidas necessárias para prevenir uma crise social à escala do globo?" (E.B.K.)
"A lógica neo-liberal subverte os fundamentos humanistas da nossa civilização e mina o Estado-Providência. A ditadura dos mercados financeiros e a colonização da Europa por um modelo incompatível com os valores da sua cultura e civilização levam ao desemprego estrutural, à exclusão social e à desregulação das nossas sociedades. Passou-se do totalitarismo burocrático do comunismo de leste para o totalitarismo de mercado do ocidente. Esta é a questão de fundo." (M.A.)

O neo-liberalismo defende, como todo o liberalismo, uma máxima de Adam Smith do século XVIII: Quanto menos Estado, melhor Estado. Só que, como bem lembra J. Kenneth Galbraith, a guerra e o Estado moderno tecnologicamente competitivo, e armado, modificaram muito o mundo de Smith, pois os governos destes Estados não podem ser nem baratos nem pequenos.
Creio que daqui se infere, em resumo ultra-simplificado, que a política neoliberal privilegia acima de tudo o lucro e defende a existência de Estados reduzidos. Como conseguir lucros vultosos, reduzindo simultaneamente o poder dos Estados? A resposta a esta pergunta fornece-nos a chave.
Se alguém tiver a oportunidade de fabricar fora de portas produtos a um custo muito mais baixo do que aquele que consegue no seu país, para depois os vender sensivelmente ao mesmo preço ou um pouco menos, os seus lucros subirão. Se lograr vender em grande escala, os seus lucros crescerão ainda mais. Porque não explorar essa possibilidade? As empresas sempre exploraram a mão-de-obra barata existente em países como a Espanha, Portugal e Irlanda. Depois da queda do muro de Berlim, os países do leste europeu surgiram também como muito apelativos devido aos baixos salários dos seus trabalhadores e a incentivos oferecidos pelos governos locais para a construção e fixação de fábricas. E se fosse possível arranjar ainda mais barato do que nos países menos desenvolvidos da Europa ou da América Latina, mesmo que se tivesse de lidar com regimes ditatoriais e eventualmente comunistas? Ideologias desse tipo não contam. O que conta é o lucro. Se os lucros forem bons, que importa o resto?
Foi assim que o eixo mais populoso do mundo, o qual, grosso modo, vai de Bombaim a Xangai, englobando, entre outros países menores, a Índia (1,2 biliões de habitantes) e a China (1,3 biliões), passou a deter mais de 50 por cento da produção mundial. Novo colonialismo? Sem dúvida. Mas um colonialismo de trabalho, de servidão humana. Sem pesadas administrações, sem exércitos. E também, frise-se, sem qualquer tentativa de mudar o estado de coisas nesses gigantescos países. Os neo-liberais aprenderam bem a lição ministrada pelos ingleses quando estes dominaram a Índia sem procurarem, no entanto, alterar o sistema de castas, imiscuir-se nas diferentes religiões praticadas, melhorar a distribuição da riqueza, etc. Os britânicos foram suficientemente inteligentes para concluír que nunca seriam bem sucedidos nessas tarefas. Daí que tivessem naturalmente deixado que as grandes fortunas dos marajás indianos se mantivessem, enquanto a mais aguda das pobrezas grassava em diversas regiões. Ainda hoje, a Índia, com o seu Produto Interno Bruto muito aumentado relativamente ao que era – mas continuando com um baixo PIB per capita devido à sua enorme população – é dos países do mundo com maior número de bilionários. São os "descendentes" dos marajás, dos nababos de antigamente. Com uma população predominantemente jovem (70 por cento têm menos de 35 anos de idade), a Índia constitui um bom local para investimentos estrangeiros, a baixo custo. Tal como a China. Se a Índia possui um regime democrático algo sui generis, pode dizer-se que a China possui um regime comunista igualmente sui generis. É natural que na China surjam também grandes fortunas; tão natural, de facto, como que se mantenha um acentuado fosso entre os chineses mais ricos e os mais pobres.
Mas não é isso que importa aos empresários e investidores neo-liberais. Deficientes condições de trabalho, falta de segurança social, disciplina férrea, são coisas que não lhes desagradam. O fundamental é que os objectivos inicialmente traçados sejam cumpridos. E isso tem sucedido. Na óptica capitalista, o continente asiático é o melhor para a exploração de mão-de-obra, tal como o continente africano o é para a exploração de matérias-primas (basta lembrarmo-nos do que se está a passar na Líbia, país que, segundo o último número da revista Time, é the site of the largest proven oil reserves in Africa and remains largely underexplored).
E quanto ao desemprego no Ocidente causado pela deslocalização das empresas para outras paragens? Bem, esse é um problema que não diz exactamente respeito aos investidores, mas sim aos Estados. Estes que tratem do assunto e resolvam o problema à sua maneira. Se emagrecerem, tanto melhor. No fundo, porquê falar de Estados? Ou de pátria? O conceito de pátria está totalmente ultrapassado. O capital é, por natureza, apátrida. Serve para circular, para "ajudar os pobres a arranjar trabalho que de outra forma não teriam"; serve para "retirar da miséria milhões de pessoas que agradecem os investimentos realizados". É a famosa globalização, que globaliza mais a pobreza do que a riqueza, mas essa é a parte que não se deve mencionar.
Ora, depois de todo o trabalho, de todo o risco incorrido em investir num país como a China ou como a Índia, por que razão terá um investidor neo-liberal de entregar grande parte dos seus lucros ao Estado, seja ele A ou B? Uma vez que está a actuar fora do seu território, não será um excesso entregar os impostos que seriam devidos no seu país ao governo respectivo? Foi assim que os centros off-shore, já relativamente antigos mas usados principalmente pelas grandes fortunas da Europa e dos Estados Unidos, passaram a tornar-se mais populares e a receberem os proveitos da subfacturação ou sobrefacturação, consoante os casos mais convenientes, de clientes muito mais numerosos e ávidos de aumentar os seus lucros. O seu dinheiro passou agora a circular por várias bolsas de todo o mundo, geralmente sem grande controlo nos hedge funds e noutras engenharias financeiras. Quando o sol se põe no Ocidente já é manhã no Oriente. Tudo circula. É o tempo para obter maiores lucros.
E os Estados? Bem, os Estados ficarão obviamente descapitalizados. Como convém, aliás. O dinheiro que poderia e deveria ir para eles sob a forma de impostos pode chegar-lhes, ironicamente, sob a forma de empréstimos a juros bem elevados. São os mercados a funcionar. O Estado descapitalizado tem, logicamente, dificuldades muito maiores. Sem muito do capital das grandes empresas que lhe deveria chegar na forma de impostos, tem de sobrecarregar a classe média, já que com os pobres não pode contar, exactamente porque são pobres. E como há-de o governo suportar o seu Estado Social? Mal. Muito mal, mesmo. Deverá desfazer-se de muito do seu património, que particulares endinheirados adquirirão a preço de saldo. A educação estatal baixa de qualidade, os dinheiros para a saúde são reduzidos. Entretanto, aparecerão novas escolas particulares e novos hospitais privados.
Ao não alimentar o Estado com uma fatia substancial dos seus impostos devidos e convenientemente desviados para centros off-shore, o sistema neoliberal não só lucra, como obriga o Estado a definhar e a deixar para o sector privado negócios interessantes. Trata-se de um ganho valioso, uma estratégia bem sucedida.
Creio que agora a resposta à pergunta inicialmente colocada se torna simples. Presentemente, o país mais rico do mundo é aquele que resulta da ficcionada fusão de todos os off-shores localizados no mundo. É um país riquíssimo em activos financeiros. Não tem nome, mas em honra do sistema que o institui poder-se-á chamar Nova Libéria. A sua bandeira é a que aparece no início deste post: um grande cifrão. O seu hino é a conhecida canção interpretada por Liza Minelli no filme Cabaret:
Money, money, money
A mark, a yen, a buck or a pound
Is all that makes the world go round.

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