5/31/2007

Aeroportos

É conhecido o posicionamento da mãe relativamente ao filho pequeno a quem quer dar a sopa: "preferes que eu te dê a sopa com a mão direita ou com a esquerda?" O miúdo diz uma ou outra, e assim come a sopa. O que, sensatamente, a mãe deixa de fora das suas perguntas é a terceira hipótese: "queres comer a sopa ou não?"
Um pouco à semelhança, a questão da localização do novo aeroporto de Lisboa discute-se entre a margem direita e a margem esquerda do Tejo ou, dito de outro modo, entre a Ota e Rio Frio. A terceira hipótese é a que não é posta na mesa: manter o aeroporto-mãe em Lisboa e criar apenas um alternativo, seja na Ota, seja em Rio Frio, ou noutro local apropriado. Isto porque, como há muito se percebeu e neste blogue já foi tratado ("Ota é batota"), os terrenos do actual aeroporto são os mais cobiçados de todos. É por causa deles que uma nova linha do Metro está planeada para aquele local. A construção da Alta de Lisboa está toda encaminhada para isso. Os partidos principais estão, naturalmente, envolvidos no assunto. Londres com Heathrow, Gatwick e Luton, Paris com Orly, Charles-De-Gaulle e Le Bourget, Berlim com Tempelhof e Tegel, Madrid com Barajas, Cuatro Vientos e Torrejon, Nova Iorque com Kennedy e La Guardia, e tantas outras cidades importantes com dois ou mais aeroportos foi assim que resolveram a questão. Por que não Lisboa?
Os interesses económicos, que controlam os media, são a mãe que, vendo-nos e sabendo-nos pequenos, nos estende a colher e pergunta simplesmente "A ou B?" A enorme diferença é que a mãe se preocupa sinceramente com o bem-estar do seu filho, enquanto que os detentores de capital estão unicamente interessados no seu próprio lucro.

5/30/2007

Por detrás da greve

Creio poder dizer-se que a greve geral destapa uma realidade bem mais preocupante do que a greve em si. O mais perturbador é mesmo aquilo que os números do emprego revelam. Segundo o jornal Público de hoje, existem em Portugal quase 900 mil trabalhadores a prestar serviço a recibo verde, perto de 650 mil com contratos a prazo e cerca de 190 mil que exercem a sua actividade sem serem nem efectivos nem empregados a prazo. A tendência é para que estes números aumentem e não para que diminuam. Neste momento, os números indicam que existem já mais de um milhão de trabalhadores sem grande segurança no emprego.
Em Novembro de 2004 surgiram neste blogue orações a dois novos santos. Um deles era São Mercado, o outro São Precário. É exactamente esta precariedade no trabalho que assusta. O trabalhador precário está sempre em risco de ser considerado redundante e ver-se na rua sem apelo nem agravo. Quem está a prazo depende da apreciação do empregador relativamente à sua competência e grau de submissão e acatamento cego das ordens recebidas. A falta de um vínculo laboral mais forte coloca inevitavelmente o trabalhador num grau de grande instabilidade, difícil de ser compaginada, por exemplo, com pagamentos regulares do empréstimo contraído junto de um banco para a compra de uma casa a vinte ou trinta anos. Depois, fale-se no aumento de casos de stress, de divórcio de casais, do número de casais sem filhos. Em contrapartida, veja-se o aumento despudorado dos lucros de determinadas empresas.
Como é que os desprotegidos de São Precário podem fazer greve? As pernas são-lhes cortadas à partida. A chamada postura de faca-e-queijo na mão pertence a outrem que não o empregado nessas condições. A retaliação do patronato por atitudes grevistas da parte de trabalhadores neste regime é mais do que provável. Lembro-me de situações pelas quais vi colegas meus, professores, passarem numa instituição em que trabalhei durante algum tempo. Independentemente da sua competência, a sua atitude em determinadas reuniões na escola acabou por levá-los para a rua. Despedidos? Não, que isso podia custar indemnizações. Uns tiveram apenas a não-renovação de contratos para o ano seguinte; a outros foram atribuídos horários diurnos, quando se sabia que apenas podiam leccionar à noite por exercerem outra actividade durante o dia numa empresa.
Já se pensou no medo de falar, de escrever, de tossir, que uma situação de precariedade acarreta? No cansaço que ela causa? Sobre emprego e trabalho nestas condições, foi Vicente Ferreira que, há já longos anos, nos deixou a frase certa: "Não vejas, não fales, não ouças, não te rales... para que não te entales." Preocupante a muitos níveis.

5/28/2007

Benfica, Porto, ou Sporting?

Suponho que nunca se fez em Portugal um estudo consistente, baseado em amostras representativas, daquilo que leva rapazes e raparigas, mulheres e homens, a manifestarem uma simpatia especial, que pode ser ferrenha, por um determinado clube. Seja como for, é sempre possível aventar um número de hipóteses. Vou tentar fazê-lo, esperando que alguém forneça acréscimos ou conteste a validade das hipóteses formuladas.
Em primeiro lugar, poderá perguntar-se: porquê mencionar os três clubes acima e não quaisquer outros? (Admito que poderia ter acrescentado o Belenenses, mas a diferença na quantidade de simpatizantes à escala nacional é tão grande que preferi não o fazer.) Se escolhi aquele trio, foi obviamente porque sinto que são os únicos que possuem antenas que cobrem todo o território português.
Historicamente, estes três clubes nasceram à escala das duas maiores cidades portuguesas. Porém, dois deles cedo ganharam uma ampla cobertura nacional, não à custa do futebol mas sim de uma outra modalidade muito mais popular: o ciclismo. O ciclismo, numa época em que os jornais e a rádio eram os principais meios de comunicação, levava as camisolas vermelhas do Benfica (os Nicolaus), e as verde-brancas do Sporting (os Trindades) a Braga, a Vila Real, à Covilhã, a Castelo Branco e a Évora. Havia um enorme entusiasmo popular. As populações deslocavam-se a locais por vezes distantes para ver passar as caravanas ciclistas. Aí, os clubes ganharam muitos adeptos. O Futebol Clube do Porto (o único dos três que usa a palavra "futebol" no seu nome) não se intrometeu na disputa Nicolau-Trindade e com isso concentrou-se mais na sua área citadina e nortenha (por oposição a Lisboa), o que não quer dizer que entretanto não tenha constituído uma boa equipa de ciclismo e também outras de diversíssimas modalidades.
Simultaneamente com a sua acção de polinização à escala territorial através do ciclismo, os clubes grandes começaram a fundar as suas filiais em localidades relativamente pequenas, onde geralmente havia um grupo de carolas com algum dinheiro que conseguiam ter influência suficiente para garantir que o clube da terra fosse considerado filial do Benfica ou do Sporting. Nasce aqui uma combinação interessante, pois através das cores da equipa local, os jovens identificavam-se com as cores do clube padrinho. Esta identificação era, evidentemente, tanto maior quanto mais vitórias somasse o clube de que se era fã. Este aspecto é muito importante, porque as vitórias naturalmente atraem adeptos (band-waggon effect).
De facto, se houve épocas em que o Sporting foi de longe o melhor clube português e apresentou os então célebres cinco violinos que jogavam todos na selecção nacional - hélas, numa altura em que ainda não havia televisão em Portugal -, outras ocorreram em que o domínio total foi do Benfica e, talvez nos últimos vinte anos, do Futebol Clube do Porto. Neste sentido, estou convencido de que Benfica e Porto conquistaram numerosos adeptos em todo o país com as suas extraordinárias vitórias em competições nacionais e internacionais. Neste último domínio, o Sporting não foi tão bem sucedido.
Então, perguntar-se-á, e a família não tem influência na determinação das simpatias clubistas? É evidente que sim. Tradicionalmente, a mãe abstém-se destas coisas (pelo menos, abstinha-se), mas o pai tem, por via de regra, o seu clube, o qual escolheu maioritariamente pelas razões acima apontadas (tradição local, linha familiar, e acompanhamento de vitórias).
Entretanto, algo perfeitamente possível é que a mesma pessoa apoie dois clubes ao mesmo tempo: um à escala nacional, outro a nível local. A maioria dos adeptos de Braga são apoiantes da equipa da sua cidade, mas acima dela está o Benfica. Excepto quando joga contra o Braga. O mesmo sucede com os leirienses relativamente ao Sporting. Aliás, este aspecto pode levar pessoas a usarem determinadas equipas como transversais na sua simpatia. A Académica recebe as preferências de muitos estudantes e ex-estudantes que normalmente torcem pelo Porto, Sporting ou Benfica. Também o Belenenses pode ser visto pelos adeptos lisboetas, aveirenses e, no geral, habitantes da faixa litoral, como uma equipa simpática, cujos jogadores ostentam nas suas camisolas a Cruz de Cristo das caravelas de antanho. Neste sentido, Académica e Belenenses entram no grupo dos clubes empáticos à escala nacional.
E do ponto de vista das classes sociais, existirá alguma diferença? Certamente que não em termos de adeptos: podem encontrar-se ricos e pobres entre os simpatizantes do Porto, Benfica e Sporting. No entanto, a imagem é a de que o Benfica é um clube mais do povo e o Sporting mais de elite, enquanto que o Porto congrega maioritariamente uma cidade de que é o símbolo e o único clube que pode disputar a primazia ao detestado macrocefalismo lisboeta.
Entre os colaboradores deste blogue, sei que o João Ratão é um portista ferrenho, o Sete-Sóis um benfiquista declarado, tal como o António, que já é há muito da nossa família. Por meu lado, sou sportinguista. O meu irmão, mais velho, era adepto do Sporting. Tanto o meu filho como a minha filha são do Sporting, assim como um neto.
Alguém dizia que, se o Papa tivesse nascido na China, teria tido quase cem por cento de probabilidades de ser budista. Acho que é um bom ponto para iniciar uma discussão.

5/23/2007

Estes topónimos! (II)

Na semana passada, coloquei aqui um pequeno texto sobre toponímia portuguesa ("Por esses rios acima"). Como nele refiro, tenho ultimamente estudado algo sobre o assunto e, devo confessar abertamente, vejo-me frequentemente confrontado com a minha ignorância quase total relativamente a determinados pontos. O trabalho em si vai resultar algo chato, mas há, entretanto, alguns apontamentos mais interessantes que podem dar para este post e, possivelmente, ainda para outro pequeno texto. É uma ameaça, eu sei, mas é também uma partilha, um dos lemas do nosso blog.
Admito que nunca tinha pensado que os suevos, alanos, vândalos, ostrogodos e visigodos eram todos eles de línguas germânicas. Hoje seriam alemães, austríacos, húngaros, eu sei lá o quê!. Ora, se um Ataúlfo foi rei dos visigodos, como se poderá estranhar que esse nome, já devidamente transformado com a erosão do tempo, apareça no norte? Olhamos para uma povoação, vemo-la localizada no concelho de Vila Real com o nome de Adoufe (anteriormente Adaúfe) e ficamos a pensar no que aquilo quererá dizer. Depois entendemos que tudo terá começado com um indivíduo abastado, de nome Ataúlfo e de língua germânica, que teve uma vasta propriedade agrícola, uma "villa", que depois com os tempos se foi parcelando e povoando com agricultores. Aí, já a "villa" passou a "aldeia" que, com alguma surpresa minha, é um termo arábico (ad-daia). Temos ali todo o fluir do tempo, pessoas como nós a viverem a sua vida e o seu mundo, e a deixarem as suas marcas até aos dias de hoje.
Encontro um rei dos visigodos chamado Turismundo e um monarca suevo de nome Requimundo. Como posso ficar admirado se, depois, me aparecem terras no norte com nomes aparentemente complicados, como Freamunde, Gilmonde, Gemunde, Amonde, Mondim, a linda barragem de Salamonde, que afinal não são mais do que a marca germânica dos turistas invasores?
Entra-se noutra linha e nota-se a importância das viúvas em nomes como Porcalhota e Bacalhoa. A primeira enviuvou do seu Vasco Porcalho, proprietário que viveu no século XIV e possuía uma grande quinta; a segunda enterrou o seu Manuel Bacalhau, proprietário de um bonito palacete e largos terrenos. Daqui resultou, no primeiro caso, a localidade que foi denominada durante muitos anos Porcalhota, até que a população pediu oficialmente para que mudassem o registo e tudo passou para a designação de Amadora, mais suave. No segundo caso, tivemos, como é evidente, a Quinta da Bacalhoa, em Azeitão. Até lembra um pouco outra mulher que herdou, famosamente, o nome do seu defunto marido. Ele era o Giocondo.
Mas admita-se que existiram boas razões para as mudanças oficiais de nomes de outras localidades. Imagine-se que havia no concelho da Guarda uma aldeia que ostentava, com pouco orgulho, diga-se, o nome de Porco. Este porco era, naturalmente, o antigo porco-bravo que abundava por aquelas paragens. Pois, sim, mas como se chamam os habitantes de uma aldeia que tem o nome de Porco? Hoje a mesma terra chama-se Aldeia Viçosa.
Outra povoação que tinha razões de queixa era uma situada perto do Tejo. Oficialmente, chamava-se Punhete. A população a certa altura reuniu-se e decidiu recusar o nome. As instâncias oficiais aceitaram e hoje a linda vila chama-se Constância.
Para terminar este texto necessariamente curto, bloguesse oblige, mais um breve apontamento toponímico, este aprendido no passado domingo durante uma interessante visita ao Jardim Tropical (Belém) conduzida pelo Prof. Fernando Catarino. Fiquei aí a saber que, em tempos antigos, muitos terrenos entre Pedrouços e o Jamor (Cruz Quebrada) eram alagadiços. Por esse motivo, foram aproveitados para plantações que rendessem algum dinheiro. Pensei em arroz. Qual quê! Eram plantações de linho. Ora, esse linho precisava naturalmente de ser tratado antes de poder ser utilizado. Era batido com espadelas de madeira e, perto da zona de Belém, havia várias oficinas onde a planta tinha que passar por chapas com dentes de ferro, para que a estopa e a sua parte lenhosa e áspera (tomento) fossem retiradas. Este aparelho para o tratamento do linho, e o próprio tratamento, chamavam-se "rastelo". Começamos assim a entender melhor a razão do nome do estádio do Belenenses e por que motivo a melhor linhagem de Lisboa escolheu o bairro do Restelo para morar.

5/22/2007

Franchising intelectual

Todos sabemos que uma das ideias básicas das lojas que abrem em regime de franchising é o de poderem ter logo à partida um nome sonante. Por outras palavras, não é preciso labutar para criar uma imagem, porque essa imagem já existe. É isso que se passa com a Benneton e com tantas outras marcas.
No mundo do spam que percorre os e-mails, tem surgido ultimamente uma versão deste tipo, não no sentido de realização de lucros comerciais, mas no outro de alguém ver a sua escrita ser lida por meio-mundo através da polinização automática que o receptor de um anexo em PowerPoint faz: "passa a outro e não ao mesmo". A questão está bem vista e já é há muito utilizada pelos publicitários, que dizem com toda a impunidade deste mundo que 62 por cento dos médicos recomendam um determinado produto, 59 por cento das donas de casa fazem o mesmo com um determinado detergente, etc. É a política do band-waggon, do seguimento da maioria, que os publicitários pretendem: "Se tantos deles fazem, eu vou fazer o mesmo".
Ora, quando o Zé dos Anzóis sabe antecipadamente que, se puser um texto seu na blogosfera ou coisa que o valha, ele não irá ter grande divulgação, pensa, inteligentemente: "que tal se usar um nome consagrado, como se em regime de franchising, para dar outra credibilidade e imagem ao meu texto?" Recentemente, vi este facto acontecer com a utilização de dois nomes bem conhecidos: Fernando Pessoa e Pablo Picasso. Põem-se umas fotografias do Pessoas e uns quadros do Picasso a enfeitar os slides, e aí temos textos "deles", que eles nunca escreveriam nem de facto escreveram, a receber a publicidade e a tiragem desejadas pelo verdadeiro autor.
Há coisas mais graves? Certamente que sim, mas é bom que as pessoas estejam alerta, porque não é grande negócio comprar gato supondo que se está a comprar lebre.

5/20/2007

O regresso dos intocáveis?

Das muitas notícias que têm surgido ultimamente e que me tenho abstido de comentar por razões diversas, ressalta uma no jornal de hoje que me leva forçosamente a escrever. Segundo o Público, um professor de Inglês, destacado há 19 anos na Direcção Regional de Educação do Norte (DREN), foi suspenso preventivamente por ter feito, em privado e a um colega, um comentário humorístico sobre a licenciatura de Sócrates. Tendo sido informada do caso, a directora regional considerou que se tratava de um "insulto feito no interior da DREN, durante o horário de trabalho". Entretanto, o Ministério decidiu colocar um ponto final na requisição do professor, pelo que ele voltou à sua escola secundária de origem.
Relativamente a outros pormenores, sabe-se que o docente em questão já foi deputado pelo PSD. O jornal informa ainda que ele enviou, posteriormente aos factos, uma carta a diversas escolas com as quais teve contactos ao longo dos 19 anos que se manteve ao serviço na Direcção Regional.
A notícia fez-me reagir pela noção que tive de que o medo do tempo salazarista se está a instalar de novo, e em força. Este não é o primeiro sinal. Numa altura em que os comentários jocosos à licenciatura do Primeiro-Ministro foram inúmeros, seleccionar uma dessas piadas e contá-la no privado de um gabinete a um colega é um acto perfeitamente normal. Já não o seria, evidentemente, se fosse integrado numa conferência pública ou referido perante os media. Afinal, o sentido de humor é uma das facetas que distinguem o homem. Trata-se de algo muito diferente de uma calúnia propositadamente propalada para prejudicar terceiros. Mal vai o país se a denúncia de outros se fizer para bajulação de determinadas figuras, sejam elas quais forem. Lembra a cegueira da fidelocracia. A liberdade é um bem demasiado precioso para que se possa perder. Um país com medo não avança verdadeiramente.
Seja-me permitido recordar aqui um episódio que vivi nos anos 60. Eu tinha entrado havia talvez um ano ou dois para uma escola pública. Foi fácil notar que havia largo campo para melhoria na disciplina que leccionava. As minhas duas colegas concordavam comigo, mas o líder do grupo, pessoa de mais idade, tinha outras ideias. Aproveitando uma reunião de feitura de pontos, referi-me ao assunto de forma que considerei diplomática. Julgava eu que as minhas colegas me iriam prontamente secundar. Pelo contrário, calaram-se. O professor responsável não cedeu e, uns meses mais tarde, durante a realização de exames orais em que eu fazia parceria com ele, começou a escrever qualquer coisa numa folha de papel azul. Quando as orais terminaram e estávamos os dois no silêncio da sala, ele virou-se para mim e disse-me: "Tenho aqui esta folha a fazer participação de si ao Conselho Científico. Mas vou rasgá-la." E assim fez. Não me mostrou o conteúdo, mas ficou todo o sinal de que aquele azul era afinal um cartão amarelo, e que o próximo seria vermelho.
Anos mais tarde, o professor tinha mudado muito e incluía-me no núcleo dos seus amigos. Ele já faleceu há bastantes anos, mas lembro-me bem das vezes em que me telefonava para nos juntarmos no velho Café Roma, e da ocasião em que me convidou, juntamente com mais dois colegas, para o visitarmos na sua casa de província. Contudo, apesar deste final feliz, a verdade é que o medo se instalou e o que se podia fazer de melhor teve que marcar passo uns tantos anos.

5/15/2007

Encontros desencontrados

Praticamente toda a gente já teve os seus encontros inesperados. Por meu lado, tive vários bastante curiosos. Suponho que um dos mais interessantes foi quando, há uns bons anos, estava com a minha mulher à beira-Tejo, junto ao antigo Museu de Arte Popular, onde se realizava anualmente uma grande feira de artesanato. De súbito, vi-o. Ele estava também com a mulher e foi um abraço de nunca mais acabar. "Como estás?" "Tudo bem?". Sim, tudo bem. Mas, após um primeiro momento eufórico, veio um "de onde é que a gente se conhece?" Ele era um indivíduo simpatiquíssimo, mais ou menos da mesma idade que eu, mas isso não ajudou aos nossos esforços. Por mais pontos de contacto que tentássemos, desde o Liceu à Faculdade, de locais de férias a Angola, de viagens ao estrangeiro a empregos, nada resultou. Estivemos nisso, divertidos, um bom quarto de hora, enquanto as senhoras, que essas garantidamente nunca se tinham visto anteriormente, estavam na mais amigável das cavaqueiras quando nós chegámos ao pé delas e confessámos: "Tentámos tudo. Parece que afinal não nos conhecemos!" "Não é possível", disseram-nos elas. "Vocês conhecem-se de certeza!" "Também julgávamos", admitimos, "mas já percorremos este mundo e o outro, e nada! Foi apenas um enganozito, embora não estejamos ainda inteiramente convencidos." Tudo acabou com uma grande risada, como não podia deixar de ser.

Relembro este episódio devido a uma conferência a que ontem assisti na Gulbenkian. Quando entrei, havia bastantes lugares na sala e, propositadamente, sentei-me no extremo de uma fila porque tenho por experiência própria que, às vezes, a seca destas conferências é tão grande que só um lugar daqueles permite uma escapatória airosa. Entretanto, a sala foi-se enchendo e a minha fila também. Como havia um lugar vago a meu lado, um indivíduo já bastante entrado em anos, corpulento e mais ou menos simpático, pediu-me para passar. Ao levantar-me, olhei-lhe para o rosto e fiz o meu scanning: "Donde é que conheço esta cara?" Ele lembrava-me muito o meu amigo Manuel Barata, que, só depois me lembrei, já morreu há uns três ou quatro anos. Entretanto, já estava o bacalhau estendido para o Barata, que afinal era outro indivíduo qualquer. O aperto de mão dele foi firme e efusivo. Mais: não contente com isso, deu-me um abração dos antigos. Naquela altura já eu tinha a certeza de que não conhecia o indivíduo de parte nenhuma. Felizmente, a conferência começou imediatamente. Às duas por três o indivíduo deixou tombar a cabeça e entrou no reino do sono por momentos. Um ronco bravo e destemido, mas curto, que entretanto emitiu, acordou-o. Com a conferência a ser interessante, mas numa língua que ele não dominava, o cansaço voltou a apoderar-se do meu pretenso conhecido. E lá regressou aquele roncozito solitário que, desta vez, mereceu uma ligeira cotovelada da vizinha do outro lado. A conferência foi boa, como disse. Por meu lado, não despeguei os olhos do conferencista, não fosse o meu parceiro colocar-me a pergunta fatal de onde é que nos conhecíamos. Foi por causa disso que não fiquei para o debate. Logo que o "Merci" do orador chegou, bati as merecidas palmas e escapuli-me. Não estava para entrar em mais um daqueles impasses que me são familiares.

5/12/2007

Por esses rios acima

Há anos atrás, tive a feliz oportunidade de andar várias vezes em viagens de exploração do território com três ou quatro bons amigos. Íamos no carro de um de nós e visitávamos tudo o que nos podia suscitar interesse. Um desses amigos, geógrafo, era claramente um homem de ciência. Aprendi imensas coisas com ele.
Um dia, numa mata da Serra da Lousã, encontrámos uma enorme árvore caída. Tinha tombado de morte natural, com uma já provecta idade. Esse meu amigo pôs-se-nos a contar o que conseguia ver da história daquela árvore através dos seus anéis. Fez-nos ali uma biografia convincente, mostrando-nos, sempre através dos sucessivos anéis de madeira, o frio intenso que num Inverno excepcionalmente rigoroso de há umas décadas tinha atingido a árvore, um fogo que mais tarde a lambera, alturas em que aves ou insectos a tinham ferido, e outros acidentes do percurso de uma vida. Termos ali a possibilidade de viajar às arrecuas no tempo, perscrutando a vida daquela árvore, entrevendo as intempéries que sobre ela se tinham abatido, as diferenças térmicas e tudo isso, foi uma experiência altamente interessante.
Transplantando para um mundo que também me é muito caro - o das palavras -, encontro-me actualmente a trabalhar num dos muitos pequenos projectos que acalento, neste caso ligado à toponímia portuguesa. Há coisas fascinantes, como se poderá supor, mas talvez o mais curioso dentro do estudo que faço seja algo que me lembra exactamente os anéis da árvore caída. Se olharmos para trás, encontramos no território hoje ocupado por Portugal "muitas e desvairadas gentes", para empregar a frase do Fernão Lopes. Muito, muito antes dele, porém, - de facto muito antes de Cristo -, encontramos a ocupação da península por iberos, que provavelmente aqui chegaram vindos do Norte de África há cerca de quatro mil anos. Um milénio depois, deparamo-nos com comerciantes fenícios a exercerem a sua actividade ao longo da nossa costa. A partir do século VIII a.C. vemos os celtas instalar-se em Portugal e misturar-se com os iberos. Posteriormente, cerca do século VI a.C. sabemos de cartagineses e gregos a armarem aqui as suas tendas e a comerciar na zona costeira. Durante as chamadas guerras púnicas e, mais tarde, noutras acções contra os aguerridos lusitanos e celtiberos, chegam os poderosos romanos.
Pacificada a península (pax romana), pouco anos antes do advento de Cristo, os romanos instalam-se e aqui ficam durante uns séculos, até que três ondas de povos germânicos invadem a península no século V. Os suevos instalam-se no norte da Galiza (Gallaecia), os vândalos no sul da mesma Galiza (até ao rio Douro), e os Alanos escolhem a Lusitânia. É então que os Godos do Ocidente (Visigodos) derrotam alanos e vândalos, expulsando-os. Quanto ao reino suevo, manteve-se ainda quase dois séculos, até que também foi absorvido pelos visigodos. Mais tarde, no princípio do século VIII, chegam os muçulmanos que, depois de ocuparem todo a Península, vão sendo rechaçados de norte para sul, mas permanecem na parte sul do território português um número de anos superior a quinhentos.
Esta síntese histórica serve para lembrar que toda esta gente falava línguas diferentes. Os nomes que davam aos lugares que fundavam eram, naturalmente, na sua própria língua. Os outros já existentes, pronunciavam à sua maneira. Entretanto, os povos seguintes diziam os nomes anteriores das povoações a seu modo, pois é evidente que os alfabetos não encaixavam todos bem uns nos outros. Daqui resulta frequentemente uma amálgama toponímica interessante, a lembrar as viagens através dos tais anéis das árvores. Por razões de espaço, vou ilustrar o que digo apenas com três casos.
O primeiro é uma povoação, Odemira, ligada a um rio, o segundo um rio, o Guadiana, e o terceiro também uma povoação com o nome igualmente associado a um rio.
Como já aqui foi uma vez referido, o oued arábico, que significa curso de água, foi ouvido na costa atlântica como "ode", enquanto na parte leste do território e em terras andaluzas foi pronunciado "guad". É assim que Odemira, composto de ode + mir(a) (chefe, príncipe, o emir dos Emirados e de Almirante) significa Rio Príncipe. Poder falar de um Rio Príncipe no meio da planície alentejana é sempre bonito!
A história do Guadiana, ao que sei, é mais completa. "Ana" (ou Iana?) será "rio" na língua púnica, dos cartagineses. A esse (i)ana terão os árabes adicionado o seu Guad, que significa "rio", como vimos. Daqui resulta que quando dizemos "Rio Guadiana" estamos, historicamente, a usar um triplo pleonasmo - rio rio rio - mas ao mesmo tempo a dedilhar as cordas da história da ocupação do nosso território.
Com "Figueira da Foz do Mondego", como nos explica A. Strecht Vasconcellos num artigo datado de 1940, passa-se igualmente uma dessas repetições provindas de invasões de povos com línguas diferentes. Na realidade, "Figueira" provém de "fagaria" ou "fagueira", que significa abertura, boca, golfo. "Foz", do latim fauces, não significa outra coisa do que garganta, abertura, boca. Por seu lado, Mondego provém do germânico Mund (boca) e de aqua (água, rio). Assim, de Figueira da Foz do Mondego pode, com um certo tour de force, dizer-se que significa "boca da boca da boca do rio". É no que dá a sucessão de invasores que este país teve ao longo de milénios.

5/08/2007

O índice de Gini volta à baila

Foi há exactamente três semanas que abordei neste local a desproporção entre os mais ricos e os mais pobres em Portugal, algo que é mensurável através do índice de Gini. O facto de o nosso país ser, de entre os 27 membros da UE, aquele que apresenta números mais elevados não pode deixar de me desgostar como cidadão português.
Agora surgem os montantes auferidos por administradores de várias empresas nacionais que se revelam tão desproporcionados relativamente à apregoada e praticada contenção salarial que não podem deixar de causar um verdadeiro escândalo. Segundo o jornal Público, cada comissão executiva das empresas que são cotadas na Bolsa de Lisboa ganhou, em média, 3,5 milhões de euros em 2005, mais do dobro do que auferia cinco anos antes. E, se se olhar apenas para as 20 empresas do Portugal Stock Index (PSI20), então o aumento ainda é superior: 3,2 vezes.
Lê-se, e pasma-se que, num conhecido grupo empresarial, cada um dos quatro administradores recebeu o montante médio anual de 4,4 milhões de euros. Embora toda a gente saiba aritmética, sempre será bom converter os euros em contos para quem ainda está mais familiarizado com a antiga unidade em quantias desta ordem de grandeza. Trata-se de 880 mil contos, o que, a dividir por 12, perfaz a quantia de 73 mil contos mensais. Considero esta uma remuneração inadmissível numa altura em que se regateiam os aumentos dos salários dos trabalhadores para que os produtos se tornem mais competitivos e em que as empresas pedem insistentemente ao governo para baixar os impostos. Dificilmente se encontram posicionamentos mais hipócritas.
Que existam diferenças entre os pagamentos à administração e à generalidade dos quadros é algo perfeitamente admissível. A responsabilidade dos administradores perante a sociedade no que respeita à condução de negócios e à orientação geral da empresa, a que se juntam os seus conhecimentos de ordem estratégica e em matéria de contactos, justificam decerto uma diferença, mas não tão gritante e em aumento tão descomedido. No aludido período entre 2000 e 2005, enquanto o aumento salarial no total da economia portuguesa foi de 15,7 por cento, a remuneração dos administradores das empresas do PSI20 cresceu mais de 220 por cento!
E, depois, é vê-los a constituírem comissões de ética, onde peroram com sinceridade encenada sobre valores e princípios éticos, defendendo-os como os únicos possíveis para o trilhar sustentável de qualquer boa empresa. Parafraseando o que Rui Tavares lembrava há dias, os lemas adoptados por nações, empresas e pessoas não costumam revelar aquilo que as caracteriza, mas sim aquilo de que mais precisam.
(O assunto daria pano para mangas, mas as dimensões de um texto para blog devem ser reduzidas. O resto fica para os comentários.)

5/07/2007

Salários e Reformas

Há cinco ou seis anos, tive oportunidade de assistir a uma conferência muito interessante, e sentida, do Prof. Ernâni Lopes. Ele falava para estudantes do ensino superior numa das escolas onde ele próprio estudou. Aos estudantes forneceu a sua receita básica: trabalho, trabalho, trabalho - incluindo organização, bem entendido. Não se trabalha sem pensar. Avisou que, se a produtividade não aumentasse, seriam os salários que teriam que baixar. Teve toda a razão.
Dado que baixar os salários é ilegal, hoje fecha-se uma firma se for preciso, e reabre-se com outro nome, possivelmente nas mesmas instalações e com as mesmas máquinas. Dos trabalhadores antigos serão readmitidos aqueles que aceitarem trabalhar por algum dinheiro menos do que aquele que auferiam. Os contratos serão redigidos de forma diferente.
A desvalorização da moeda torna-se agora impossível. Deixar espiralar a inflação não é aceitável na EU. Logo, o melhor é não fazer aumentos nenhuns e esperar que o poder de compra desça. No funcionalismo público, criam-se novas leis para aumentar a produtividade do sector. Esta é a resposta à impossibilidade de desvalorizar a moeda, pois se tivéssemos ainda o escudo, este já teria sido desvalorizado mais do que uma vez - com o objectivo e sob o pretexto de aumentar as exportações e tornar o nosso turismo mais apelativo no que respeita a preços.
Se virmos a situação do ponto de vista da Segurança Social, notamos o óbvio. Os despedidos deixam de contribuir para o bolo, e passam a gastar dele. A capacidade líquida de financiamento dos fundos da Segurança Social passou de 3.300 milhões em 2004 para apenas cerca de 300 milhões previstos para este ano de 2007! A mudança de indústrias de mão-de-obra intensiva para outras de capital intensivo, a que se junta a concorrência de outros países, conduz a naturais despedimentos. Estes despedidos também sobrecarregam o orçamento da Segurança Social.
Entretanto, refira-se que, embora muitos pensionistas não tenham visto as suas pensões aumentar, dado que não tem havido desvalorizações, eles não notam muito - a inflação é baixa. O euro forte tem, ironicamente, sido mais amigo dos reformados do que do Estado.

5/04/2007

Matriz de Acontecimentos (04 Maio 2007)

No próximo dia 2 de Junho: Roteiro do Jazz na Lisboa dos Anos 20-50,percurso pedonal que explora os espaços da Lisboa em que primeiramente seouviu Jazz (das 10 às 17, 25€ por participante, 40€ por casal, inscrição até 7 de Maio: joaomoreirasantos@gmail.com )

De 11 a 13, no Tatro São Luís, 5ª Festa do Jaz

Sexta-feira, dia 4:

às 18h30, no Palácio Foz, Recital de Piano por Eurico Rosado

às 19h00, na Livraria Almedina do Saldanha, Conferência “Os Matemáticos da Geração de 40”, com os Prof.s Ilda Perez (U. Lisboa), Jorge Rezende (U. Lisboa) e Luís Saraiva (U. Lisboa)

Sábado, dia 5:

das 10h00 às 18h00, Jardim Botânico da Ajuda, Festa da Primavera (repete dia 6).

às 14h30, Casa-Museu da Fundação Medeiros e Almeida, visita guiada (5 €, reservar através de diasdepasseios@gmail.com, ou 967354817) pela Dra. Teresa Vilaça

às 15h00, no CAMJAP (“Centro Arte Moderna da Gulbenkian”) visita do Ciclo Arte e Natureza: «O Jardim Gulbenkian - Um Paraíso m Lisboa», por Carlos Carrilho

às 18h30, no Auditório Municipal Ruy de Carvalho, em Carnaxide, concerto “Escola de Viena” pela Orquestra de Câmara de Cascais e Oeiras

às 19h45, na Mezzo, “Carmen”

às 23h15, no OndaJazz, The Gospel Choir

Domingo, dia 6

às 12h00, no Átrio da Biblioteca da Gulbenkian”), Concerto de Domingo (piano, trompa e soprano)

às 12h00, no CAMJAP (“Centro Arte Moderna da Gulbenkian”) visita do Ciclo Arte e Natureza: «O Corpo na Paisagem: Escultura ao Ar Livre», por Susana Anágua

às 16h00, no Edifício Sede da Gulbenkian, visita de encerramento da exposição «INGenuidades - Fotografia e Engenharia» pelo Prof. Jorge Calado- não confirmada

às 17h00, no CCB, concerto pela Orquestra Metropolitana de Lisboa do Ciclo Diálogos: Bach e Villa-Lobos

às 22h00, na Casa da Música, Porto, quinteto com Carla Bley no piano

Quarta-feira, dia 9

às 13h00, no Museu do Chiado, visita guiada por María Jesús Ávila à exposição Columbano Bordalo Pinheiro (inscrições pelo 213432148)

Quinta-feira, dia 10

às 19h00, na Casa Fernando Pessoa, conferência «Poesia Italiana Contemporânea» por Maurizio Cuchi

Sexta-feira, dia 11:

às 18h30, no Salão Nobre do Ministério das Finanças, Música de Câmara pela Orquestra Metropolitana de Lisboa

às 19h00, na Livraria Almedina do Saldanha, Conferência “O Sesgo da Razão”, com os Prof.s Paulo Almeida (IST) e João Maria de Freitas Branco (U. Nova)

às 23h15, no OndaJazz, a banda Couleur Café inspira-se em Serge Gainsbourg

Sábado, dia 12:

às 10h00, no Arquivo Histórico Ultramarino, Calçada da Boa Hora nº 30, visita guiada (12,5 €, reservar através de diasdepasseios@gmail.com, ou 967354817) pela Dra. Ana Cannas, directora do arquivo

às 15h00, no CAMJAP (“Centro Arte Moderna da Gulbenkian”) visita do Ciclo Géneros e Modos: «A Paisagem como Construção do Olhar», por Carlos Carrilho

às 18h00, no Auditório 3 da Gulbenkian, Pedro Amaral fará o «Comentário Pré-Concerto» ao concerto das 19h00 do Ciclo: Vanguardas/Novas Vanguardas

às 18h00, no Museu da Música Portuguesa (Casa Verdades Faria, no Monte-Estoril), “Tarde Musical” pelo Quinteto de Sopros da Orquestra de Câmara de Cascais e Oeiras

Domingo, dia 13:

às 12h00, no CAMJAP (“Centro Arte Moderna da Gulbenkian”) visita do Ciclo Arte e Natureza: «Um Passeio Pelo Parque: Espécies Vegetais e Animais», por Patrícia Tiago e Sara Sousa

A seguir: 18 Maio, Dia Internacional dos Museus (a Noite será a 19)

Um bom fim-de-semana, até dia 16

Download do ficheiro das Sugestôes (4 Maio 2007)



5/03/2007

Pessimismo e Optimismo

Já há muitos anos, caminhava eu pela Praia da Areia Branca quando, em sentido contrário, vi um grupo de amigos que seguiam em alegre galhofa em direcção a um local que ficava a uns dois quilómetros. Depois de os saudar e perguntar-lhes onde iam, deparei com o Chico, que seguia um bom bocado atrás do grupo que também era o seu. Sucede que o Chico é coxo, o que me fez pensar que ou não o tinham visto ainda, ou então era mal feito não pararem um pouco para o deixarem juntar-se a eles. Foi aí que o Chico me gritou: "E até lhes dou 30 metros de avanço!"
Até hoje não me esqueci deste fait divers de praia. Pareceu-me extraordinário da parte dele manifestar todo aquele optimismo e reagir com humor a uma situação que outros poderiam considerar simplesmente ofensiva.
Talvez tenha sido a partir daí que comecei a prestar mais atenção ao que significa ser optimista e o seu inverso. Muito genericamente, direi hoje que o optimista satisfaz-se com o que tem, que desfruta. Por seu lado, o pessimista lastima aquilo que não tem. Enquanto o optimista tende a relembrar do passado os momentos bons e agradáveis, o pessimista inclui nessa escolha muitos momentos maus e desagradáveis.
Claro que não existem nem optimistas nem pessimistas puros, mas há uns que não ficam muito longe dessa pureza. Selecciono à vol d’oiseau umas tantas situações que considero perfeitamente possíveis, colocando o enfoque mais sobre o pessimista, espécie que é menos do meu agrado.
Se alguém diz "Este vinho é óptimo!", o pessimista poderá dizer algo como "Já tenho bebido melhor!". Semelhantemente, a um comentário sobre o tempo "O dia de hoje está esplêndido!" ouvimos frequentemente "Ainda vamos amargar este tempo!". Se alguém diz ao Paulo que está com um aspecto excelente, o Paulo poderá responder "Não me queixo do aspecto!"(o que pressupõe que tem outras coisas de que se queixa, naturalmente). Ao corriqueiro "Como vai isso, bem?" um "Menos mal, podia ir melhor!" sai normalmente (e que ninguém pergunte por que razão ele diz isso). Se lhe perguntam se gostou da recente viagem que fez pelos países bálticos, o pessimista não se esquecerá de dizer "Alguns hotéis deixavam muito a desejar." Se o optimista o aconselha a pensar "naquilo que tens, e não naquilo que não tens", é altamente provável que o pessimista responda algo como "Essa é uma maneira muito estúpida de pensar, não achas?" Se o optimista inveterado diz "Se por acaso alguma coisa de que gostaste já terminou, pensa no prazer que entretanto tiveste!", o pessimista usará a sua lógica: "Essa agora! Penso é que aquilo acabou. Essa é que é a realidade!"
Claro que estas situações poderiam multiplicar-se ad infinitum. Ao comentário normal de alguém que diz "Na nossa família não tem havido problemas", o pessimista deleitar-se-á em perguntar avisadamente "Já alguma vez fizeram partilhas?". Uma exclamação "Que sorte termos arranjado este lugar para arrumar o carro, mesmo em frente à nossa porta!" poderá ter como resposta "O que eu gostava era de ter uma garagem onde pudéssemos arrumar sempre o carro, independentemente das horas a que chegássemos!". E no futebol ou outro jogo qualquer, se é o pessimista a dizer "Vamos perder este jogo! Já só falta meia-hora!", é consolador que haja um optimista ao nosso lado a contrapor animadoramente "Até ao lavar dos cestos é vindima!"
Será possível mudá-los? É difícil. É de natureza. Ou não?