5/30/2007

Por detrás da greve

Creio poder dizer-se que a greve geral destapa uma realidade bem mais preocupante do que a greve em si. O mais perturbador é mesmo aquilo que os números do emprego revelam. Segundo o jornal Público de hoje, existem em Portugal quase 900 mil trabalhadores a prestar serviço a recibo verde, perto de 650 mil com contratos a prazo e cerca de 190 mil que exercem a sua actividade sem serem nem efectivos nem empregados a prazo. A tendência é para que estes números aumentem e não para que diminuam. Neste momento, os números indicam que existem já mais de um milhão de trabalhadores sem grande segurança no emprego.
Em Novembro de 2004 surgiram neste blogue orações a dois novos santos. Um deles era São Mercado, o outro São Precário. É exactamente esta precariedade no trabalho que assusta. O trabalhador precário está sempre em risco de ser considerado redundante e ver-se na rua sem apelo nem agravo. Quem está a prazo depende da apreciação do empregador relativamente à sua competência e grau de submissão e acatamento cego das ordens recebidas. A falta de um vínculo laboral mais forte coloca inevitavelmente o trabalhador num grau de grande instabilidade, difícil de ser compaginada, por exemplo, com pagamentos regulares do empréstimo contraído junto de um banco para a compra de uma casa a vinte ou trinta anos. Depois, fale-se no aumento de casos de stress, de divórcio de casais, do número de casais sem filhos. Em contrapartida, veja-se o aumento despudorado dos lucros de determinadas empresas.
Como é que os desprotegidos de São Precário podem fazer greve? As pernas são-lhes cortadas à partida. A chamada postura de faca-e-queijo na mão pertence a outrem que não o empregado nessas condições. A retaliação do patronato por atitudes grevistas da parte de trabalhadores neste regime é mais do que provável. Lembro-me de situações pelas quais vi colegas meus, professores, passarem numa instituição em que trabalhei durante algum tempo. Independentemente da sua competência, a sua atitude em determinadas reuniões na escola acabou por levá-los para a rua. Despedidos? Não, que isso podia custar indemnizações. Uns tiveram apenas a não-renovação de contratos para o ano seguinte; a outros foram atribuídos horários diurnos, quando se sabia que apenas podiam leccionar à noite por exercerem outra actividade durante o dia numa empresa.
Já se pensou no medo de falar, de escrever, de tossir, que uma situação de precariedade acarreta? No cansaço que ela causa? Sobre emprego e trabalho nestas condições, foi Vicente Ferreira que, há já longos anos, nos deixou a frase certa: "Não vejas, não fales, não ouças, não te rales... para que não te entales." Preocupante a muitos níveis.

Sem comentários:

Enviar um comentário