5/12/2007

Por esses rios acima

Há anos atrás, tive a feliz oportunidade de andar várias vezes em viagens de exploração do território com três ou quatro bons amigos. Íamos no carro de um de nós e visitávamos tudo o que nos podia suscitar interesse. Um desses amigos, geógrafo, era claramente um homem de ciência. Aprendi imensas coisas com ele.
Um dia, numa mata da Serra da Lousã, encontrámos uma enorme árvore caída. Tinha tombado de morte natural, com uma já provecta idade. Esse meu amigo pôs-se-nos a contar o que conseguia ver da história daquela árvore através dos seus anéis. Fez-nos ali uma biografia convincente, mostrando-nos, sempre através dos sucessivos anéis de madeira, o frio intenso que num Inverno excepcionalmente rigoroso de há umas décadas tinha atingido a árvore, um fogo que mais tarde a lambera, alturas em que aves ou insectos a tinham ferido, e outros acidentes do percurso de uma vida. Termos ali a possibilidade de viajar às arrecuas no tempo, perscrutando a vida daquela árvore, entrevendo as intempéries que sobre ela se tinham abatido, as diferenças térmicas e tudo isso, foi uma experiência altamente interessante.
Transplantando para um mundo que também me é muito caro - o das palavras -, encontro-me actualmente a trabalhar num dos muitos pequenos projectos que acalento, neste caso ligado à toponímia portuguesa. Há coisas fascinantes, como se poderá supor, mas talvez o mais curioso dentro do estudo que faço seja algo que me lembra exactamente os anéis da árvore caída. Se olharmos para trás, encontramos no território hoje ocupado por Portugal "muitas e desvairadas gentes", para empregar a frase do Fernão Lopes. Muito, muito antes dele, porém, - de facto muito antes de Cristo -, encontramos a ocupação da península por iberos, que provavelmente aqui chegaram vindos do Norte de África há cerca de quatro mil anos. Um milénio depois, deparamo-nos com comerciantes fenícios a exercerem a sua actividade ao longo da nossa costa. A partir do século VIII a.C. vemos os celtas instalar-se em Portugal e misturar-se com os iberos. Posteriormente, cerca do século VI a.C. sabemos de cartagineses e gregos a armarem aqui as suas tendas e a comerciar na zona costeira. Durante as chamadas guerras púnicas e, mais tarde, noutras acções contra os aguerridos lusitanos e celtiberos, chegam os poderosos romanos.
Pacificada a península (pax romana), pouco anos antes do advento de Cristo, os romanos instalam-se e aqui ficam durante uns séculos, até que três ondas de povos germânicos invadem a península no século V. Os suevos instalam-se no norte da Galiza (Gallaecia), os vândalos no sul da mesma Galiza (até ao rio Douro), e os Alanos escolhem a Lusitânia. É então que os Godos do Ocidente (Visigodos) derrotam alanos e vândalos, expulsando-os. Quanto ao reino suevo, manteve-se ainda quase dois séculos, até que também foi absorvido pelos visigodos. Mais tarde, no princípio do século VIII, chegam os muçulmanos que, depois de ocuparem todo a Península, vão sendo rechaçados de norte para sul, mas permanecem na parte sul do território português um número de anos superior a quinhentos.
Esta síntese histórica serve para lembrar que toda esta gente falava línguas diferentes. Os nomes que davam aos lugares que fundavam eram, naturalmente, na sua própria língua. Os outros já existentes, pronunciavam à sua maneira. Entretanto, os povos seguintes diziam os nomes anteriores das povoações a seu modo, pois é evidente que os alfabetos não encaixavam todos bem uns nos outros. Daqui resulta frequentemente uma amálgama toponímica interessante, a lembrar as viagens através dos tais anéis das árvores. Por razões de espaço, vou ilustrar o que digo apenas com três casos.
O primeiro é uma povoação, Odemira, ligada a um rio, o segundo um rio, o Guadiana, e o terceiro também uma povoação com o nome igualmente associado a um rio.
Como já aqui foi uma vez referido, o oued arábico, que significa curso de água, foi ouvido na costa atlântica como "ode", enquanto na parte leste do território e em terras andaluzas foi pronunciado "guad". É assim que Odemira, composto de ode + mir(a) (chefe, príncipe, o emir dos Emirados e de Almirante) significa Rio Príncipe. Poder falar de um Rio Príncipe no meio da planície alentejana é sempre bonito!
A história do Guadiana, ao que sei, é mais completa. "Ana" (ou Iana?) será "rio" na língua púnica, dos cartagineses. A esse (i)ana terão os árabes adicionado o seu Guad, que significa "rio", como vimos. Daqui resulta que quando dizemos "Rio Guadiana" estamos, historicamente, a usar um triplo pleonasmo - rio rio rio - mas ao mesmo tempo a dedilhar as cordas da história da ocupação do nosso território.
Com "Figueira da Foz do Mondego", como nos explica A. Strecht Vasconcellos num artigo datado de 1940, passa-se igualmente uma dessas repetições provindas de invasões de povos com línguas diferentes. Na realidade, "Figueira" provém de "fagaria" ou "fagueira", que significa abertura, boca, golfo. "Foz", do latim fauces, não significa outra coisa do que garganta, abertura, boca. Por seu lado, Mondego provém do germânico Mund (boca) e de aqua (água, rio). Assim, de Figueira da Foz do Mondego pode, com um certo tour de force, dizer-se que significa "boca da boca da boca do rio". É no que dá a sucessão de invasores que este país teve ao longo de milénios.

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