5/20/2007

O regresso dos intocáveis?

Das muitas notícias que têm surgido ultimamente e que me tenho abstido de comentar por razões diversas, ressalta uma no jornal de hoje que me leva forçosamente a escrever. Segundo o Público, um professor de Inglês, destacado há 19 anos na Direcção Regional de Educação do Norte (DREN), foi suspenso preventivamente por ter feito, em privado e a um colega, um comentário humorístico sobre a licenciatura de Sócrates. Tendo sido informada do caso, a directora regional considerou que se tratava de um "insulto feito no interior da DREN, durante o horário de trabalho". Entretanto, o Ministério decidiu colocar um ponto final na requisição do professor, pelo que ele voltou à sua escola secundária de origem.
Relativamente a outros pormenores, sabe-se que o docente em questão já foi deputado pelo PSD. O jornal informa ainda que ele enviou, posteriormente aos factos, uma carta a diversas escolas com as quais teve contactos ao longo dos 19 anos que se manteve ao serviço na Direcção Regional.
A notícia fez-me reagir pela noção que tive de que o medo do tempo salazarista se está a instalar de novo, e em força. Este não é o primeiro sinal. Numa altura em que os comentários jocosos à licenciatura do Primeiro-Ministro foram inúmeros, seleccionar uma dessas piadas e contá-la no privado de um gabinete a um colega é um acto perfeitamente normal. Já não o seria, evidentemente, se fosse integrado numa conferência pública ou referido perante os media. Afinal, o sentido de humor é uma das facetas que distinguem o homem. Trata-se de algo muito diferente de uma calúnia propositadamente propalada para prejudicar terceiros. Mal vai o país se a denúncia de outros se fizer para bajulação de determinadas figuras, sejam elas quais forem. Lembra a cegueira da fidelocracia. A liberdade é um bem demasiado precioso para que se possa perder. Um país com medo não avança verdadeiramente.
Seja-me permitido recordar aqui um episódio que vivi nos anos 60. Eu tinha entrado havia talvez um ano ou dois para uma escola pública. Foi fácil notar que havia largo campo para melhoria na disciplina que leccionava. As minhas duas colegas concordavam comigo, mas o líder do grupo, pessoa de mais idade, tinha outras ideias. Aproveitando uma reunião de feitura de pontos, referi-me ao assunto de forma que considerei diplomática. Julgava eu que as minhas colegas me iriam prontamente secundar. Pelo contrário, calaram-se. O professor responsável não cedeu e, uns meses mais tarde, durante a realização de exames orais em que eu fazia parceria com ele, começou a escrever qualquer coisa numa folha de papel azul. Quando as orais terminaram e estávamos os dois no silêncio da sala, ele virou-se para mim e disse-me: "Tenho aqui esta folha a fazer participação de si ao Conselho Científico. Mas vou rasgá-la." E assim fez. Não me mostrou o conteúdo, mas ficou todo o sinal de que aquele azul era afinal um cartão amarelo, e que o próximo seria vermelho.
Anos mais tarde, o professor tinha mudado muito e incluía-me no núcleo dos seus amigos. Ele já faleceu há bastantes anos, mas lembro-me bem das vezes em que me telefonava para nos juntarmos no velho Café Roma, e da ocasião em que me convidou, juntamente com mais dois colegas, para o visitarmos na sua casa de província. Contudo, apesar deste final feliz, a verdade é que o medo se instalou e o que se podia fazer de melhor teve que marcar passo uns tantos anos.

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