11/28/2008

Um ligeiro intermezzo

Deixemos em paz os temas mais sérios da actualidade política e lancemos um rápido olhar a algumas palavras da língua que usamos diariamente (e que em grande medida nos baliza o pensamento).
Olho para o título de uma notícia do jornal que diz: "A noite será a grande amiga dos carros eléctricos." Páro. Leio de novo. Fico com curiosidade. Porque será que os carros eléctricos não são bem-vindos de dia? Porque empatam o trânsito? A notícia, remetida para a página 16, esclarece-me, entretanto. Mostra-me que estou a patinar num mal-entendido. Não se trata dos amarelos da Carris. O que está em questão são os automóveis movidos a electricidade. Eles devem ficar a carregar durante a noite para serem utilizados de dia. À noite, a energia é mais barata, o que também incentiva o uso de fontes de energia renováveis. São carros amigos da noite.
Cingindo-me apenas à terminologia, acho que, para evitar problemas e enquanto houver eléctricos em Lisboa, vou continuar a utilizar para estes novos automóveis o nome que sempre lhes dei: Voltswagen.
Quando falamos de substantivos femininos e masculinos, sabemos todos que existem diferenças interessantes, como por exemplo entre um rio e uma ria. Enquanto o primeiro nos dá uma ideia de caudal que flui continuamente e até, por vezes, de águas rápidas e alterosas, a ria é mais acolhedora e pacífica. Maternal. À semelhança do homem e da mulher?
Também entre o moral e a moral existe uma diferença notória. Enquanto o primeiro termo se refere basicamente a ânimo ("levantar o moral das tropas"), a segunda palavra transporta-nos mais a um conjunto de regras que se opõem ao conceito de pecado ou infracção e são parentes da ética.
Então e a vogal e o vogal? Sabemos que as vogais são o recheio das consoantes, as quais por sua vez constituem a ossatura das palavras. As vogais são a carne, a sonoridade – mais abertas ou mais soturnas, mais claras, mais escuras ou mais finas e sibilinas. Então, e o vogal? Bem, um vogal é um membro com direito a voto numa assembleia ou num júri. Vogal de exames, por exemplo. E porquê "vogal"? Exactamente porque tem voz, i.e. voto. O étimo é "vocal".
Há diferença entre uma secretária e um secretário? Certamente que sim. Como pessoas, uma é mulher, o outro é homem. Como peça de mobiliário, só se utiliza a primeira. E porquê "secretária" ou "secretário"? Porque se trata de alguém em quem se pode confiar, que guarda segredo das coisas que são confidenciais. Num verso que cito de cor, Camões dizia para a sua pena, à qual confiava o seu sentir: "Vinde cá, meu fiel secretário..." E Bocage tem um soneto cuja primeira quadra reza assim: "Oh retrato da morte, oh Noite amiga / Por cuja escuridão suspiro há tanto! / Calada testemunha do meu pranto,/ De meus desgostos secretária antiga!” Já agora: a secretária-móvel guarda também segredos nas suas gavetas e por vezes tem uma parte secreta - "o segredo" - que em princípio só o seu proprietário conhece.
É curioso que as palavras por vezes camuflem bem, tal como as secretárias, aquilo que são. Qual será o verbo que significa algo como "tirar até à última gota"? Todos o conhecemos. Esse verbo é "esgotar". No entanto não é fácil descobrir a "gota" que lá está. (No fundo, é o mesmo que descobrir "a cabeça" e "o rabo" em "capicua".)
Termino esta superficialíssima digressão com o "fado". Estava eu um dia a ler um livro interessante sobre Portugal, escrito por um americano que tinha comprado uma casa junto a Sintra e aqui vivia há cerca de um ano. O indivíduo tinha ficado encantado com os nossos moinhos e faz deles descrições soberbas. Quando chegou à "canção nacional", porém, escorregou um bocado. Decerto por conhecimento ainda imperfeito da língua portuguesa e da pronúncia de alguém que lhe disse que fado em inglês era faith (na realidade é fate) divagou sobre o dito como estando altamente ligado à fé dos portugueses. Foi um pequeno percalço, mas que linguisticamente é interessante por oferecer um par habitual, tal como o c-g de vocal e vogal que acima vimos. Neste caso é o d-t. Fado vem de fatu-, que significa "destino" e que nos faz dizer, entre muitas outras coisas, que algo "é fatal como o destino". Fatalmente assim, no nosso característico fatalismo. Então, e como se chama "a deusa do destino"? "A fada", claro.
E por aqui ficamos hoje.

11/26/2008

Gerações em foco

A Fundação Gulbenkian acaba de organizar mais um interessante colóquio, que teve, como é habitual, a participação de oradores de vários países do mundo. Tendo como base a revolução demográfica que se tem operado em múltiplos países da Europa e noutras partes do globo, as sessões abordaram várias questões relacionadas com essa revolução.
"Na Europa, o século XX foi o último em que os mais jovens foram maioritários" foi, provavelmente, a frase que mais me impressionou. Condensou em breves palavras aquilo que parece ser uma realidade de que nem sempre nos damos conta. Nomeadamente graças ao desenvolvimento da medicina e de cuidados relacionados com a segurança social, a esperança média de vida tem aumentado significativamente. Ultimamente, essa esperança de vida tem subido cerca de um ano em cada quatro a cinco anos que passam. Como é evidente, isso transporta-nos a um panorama de idosos que hoje já é bem visível mas que será ainda muito mais acentuado nas próximas décadas. Em muitos países europeus, por volta de 2060 os indivíduos com mais de 60 anos estarão em maioria. É por isso que o século XX terá sido o último século em que aqueles que têm menos de 60 anos predominaram.
Com o já tradicional eufemismo terminológico, a situação demográfica começou por ser designada como "um problema", passou depois a constituir "um desafio" e é hoje vista como "uma oportunidade". Basicamente a situação não se altera, mas dá-se-lhe pelo menos um cunho mais positivo, o que sempre é preferível a uma visão dramaticamente pessimista. Procura-se criar a ideia, optimista, de que "não é verdade que ao sermos velhos deixamos de ter sonhos e aspirações; quando deixamos de ter sonhos e ambições é que nos tornamos velhos."
Muito tem mudado na nossa sociedade. Se há um número muito maior de idosos, há por outro lado uma quantidade menor de bebés a nascer. No princípio dos anos 70, a média da idade em que uma mulher tinha o seu primeiro filho andava pelos 24 anos; hoje ronda os 30.
Nesta altura, no Reino Unido há cerca de 10 mil pessoas com 100 anos ou mais. Cálculos apoiados em dados reais projectam este número para 250 mil nos meados do século. Impressionante! Em princípio, irá haver mais crianças com avós e bisavós vivos do que no passado. E se não houver mais é também porque as crianças nascem aos pais cada vez mais tarde.
Estatísticas das Nações Unidas dizem-nos que em 1950 havia no mundo apenas 205 milhões de pessoas com mais de 60 anos, o que significava qualquer coisa como uma em cada doze pessoas. Havia então apenas três países que tinham mais de 10 milhões de pessoas com essa idade: a China (42 milhões), a Índia (20 milhões) e os EUA (20 milhões). Hoje em dia, o número dessas pessoas triplicou! Presentemente, há doze países com mais de 10 milhões de pessoas de idade superior a 60 anos. Só a China e a Índia combinados ultrapassam os 205 milhões que existiam nos anos 50. Na Europa, 20 por cento da população conta com mais de 60 anos! (Lévi-Strauss, que há dias celebrou o seu 100º aniversário, admitiu que este mundo tão diferente já não é o seu!)
Pense-se no que este panorama significa em termos de sustentação do modelo de Segurança Social. Dos 3 ou 4 activos que agora existem para cada reformado, não é ousado afirmar que se passará para dois activos para cada pessoa que passou à situação de reforma. Muita coisa terá que mudar, evidentemente!
Por que motivo serão os senior citizens tão importantes? Em primeiro lugar, porque se estima que três-quartos de todos os activos financeiros do planeta sejam propriedade de indivíduos com mais de 50 anos. E, depois, porque muitos deles, nestes novos tempos, não se importam de gastar o seu dinheiro. Os americanos chamam SKI-ing (spending the kids’ inheritance) à disponibilidade dos mais velhos de gastarem o seu dinheiro. Entretanto, esta atitude de gastar hoje (já!) a futura herança que se legaria aos filhos deve ter sofrido um golpe muito rude com a actual crise financeira que, aliás, surgiu com a ideia de empregar todo o dinheiro para fazer a economia girar. Pelo contrário, nota-se agora, é fundamental que se aumente de novo a proporção do que se reserva para uma poupança. É mais do que natural que ela venha a ser uma parcela necessária. Só aparentemente é que as economias individuais estarão contra a economia global!

11/23/2008

Uma onda irrepetível

O que terão de comum entre si estes 43 nomes, aqui listados por ordem alfabética – aos quais, aliás, muitos outros se poderiam acrescentar com a mesma característica comum?

Alexandre Quintanilha (Biólogo, investigador, director do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar.)
Amadeu José de Freitas (Locutor desportivo)
António Calvário (Cançonetista)
Barata Feyo (Escultor, professor, director de museu)
Carlos Cruz (Locutor de rádio e de televisão; empresário)
Carlos Pinto Coelho (Jornalista, director de programas culturais na rádio e televisão)
Carlos Queiroz (Treinador de futebol)
David Borges (Jornalista)
Diana Andringa (Jornalista)
Emídio Rangel (Director de estações de rádio e televisão)
Eugénio Lisboa (Conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em Londres, Professor universitário, ensaísta, crítico literário.)
Eusébio (Futebolista)
Fausto (Compositor e cantor)
Fernando Dacosta (Escritor, jornalista)
Fernando Gil (Professor, pensador, autor)
Fernando Nobre (Médico, Presidente da AMI)
Guilherme de Melo (Jornalista, escritor)
Gustavo Castelo Branco (Engenheiro, físico e investigador)
Helder Macedo (Professor Catedrático no King’s College, de Londres)
Hermínio Martins (Sociólogo-economista, Professor em Oxford, autor)
João Maria Tudela (Cançonetista, animador cultural)
João Pina Cabral (Antropólogo social, Professor, autor)
Jorge Perestrelo (Relator desportivo)
José Afonso (Cantor de intervenção e compositor; professor)
José Eduardo Agualusa (Escritor, articulista)
José Fonseca e Costa (Realizador de cinema)
José Gil (Professor da UNL e do Collège Int. de Philosophie, de Paris, ensaísta, pensador.)
José Rodrigues dos Santos (Locutor de televisão, Escritor; Professor)
Maria João Seixas (Autora de programas culturais TV, entrevistadora nos media)
Mário Crespo (Locutor de TV)
Mariza (Fadista)
Mia Couto (Escritor, biólogo)
Nicolau Santos (Jornalista)
Paula Teixeira da Cruz (Advogada, política)
Rui Cartaxana (Director do jornal Record)
Rui Knopfli (Jornalista, crítico de literatura e cinema, poeta, adido cultural em Londres)
Rui Nogueira (Escritor, articulista)
Rui Romano (Jornalista RTP)
Ruy Cinatti (Agrónomo, antropólogo, escritor)
Segadães Tavares (Engenheiro)
Sequeira Costa (Pianista)
Vítor Gomes (Músico, Os Gatos Negros)
Vítor Ramalho (Advogado, político)

Embora alguns dos eventuais leitores deste blog conheçam na lista acima alguns nomes melhor do que outros, notarão decerto que há entre eles muitas figuras conhecidas. E não só conhecidas como de muito mérito, dotadas de um espírito de iniciativa que as fez, em certa medida, subir para a ribalta. A esmagadora maioria destas pessoas vive ainda entre nós. Infelizmente, Amadeu José de Freitas, Fernando Gil, Jorge Perestrelo, José Afonso, Rui Knopfli, Rui Romano e Ruy Cinatti já faleceram.
No domínio profissional, embora do grupo acima sobressaiam em termos percentuais os homens e as mulheres dos meios de comunicação social, existe uma notável variedade: cientistas como Alexandre Quintanilha, engenheiros premiados como Gustavo Castelo Branco e Segadães Tavares, escritores como Mia Couto, Agualusa, José Rodrigues dos Santos e Fernando Dacosta, poetas como Rui Knopfli e Ruy Cinatti, um pianista (Sequeira Costa), advogados e políticos como Paula Teixeira da Cruz e Vítor Ramalho, cantores e compositores como Fausto e José Afonso, intérpretes de canções como Mariza, António Calvário e João Maria Tudela, um escultor (Barata Feyo), professores e brilhantes pensadores como os irmãos Gil - José e Fernando -, e Hélder Macedo, diplomatas e escritores como Eugénio Lisboa, sociólogos e antropólogos como Hermínio Martins, João Pina Cabral e Ruy Cinatti, um médico que é Presidente e criador da AMI (Fernando Nobre), um treinador de futebol (Carlos Queiroz) e um ex-jogador que se tornou há muito símbolo do futebol português (Eusébio).
Mas não há dúvida de que o grande peso que ressalta desta lista provém de profissionais ligados ao jornalismo e aos media, v.g. Rui Cartaxana, director do jornal Record, Nicolau Santos director de uma secção do Expresso e colaborador da SIC, além de locutores, comentadores e animadores culturais da televisão e da rádio, como José Rodrigues dos Santos, Mário Crespo, Carlos Cruz, Carlos Pinto Coelho, David Borges, Diana Andringa, o saudoso Jorge Perestrelo do “ripa na rapaqueca!”, Maria João Seixas, Guilherme de Melo e os acima mencionados Rui Romano e Amadeu José de Freitas.
Por esta altura creio que já todos entenderam que estou a referir-me a pessoas que ou nasceram nas antigas colónias portuguesas - mais especificamente em Angola ou Moçambique, mas também noutras paragens - ou foram de tal forma docemente picados pelo bom insecto africano - também os há ferozes! - que nunca mais esqueceram o seu passado cultural e foram por ele indelevelmente marcados. São pessoas que se salientaram na sociedade portuguesa - ou na de noutros países do mundo - através do seu dinamismo, capacidade de trabalho e ânsia de inovação.
Há cerca de 50 anos, a emigração de mais de milhão e meio de portugueses para a Europa e para África foi muito positiva para o país. Redundou numa não-propositada democratização, i.e. o contrário daquilo que a censura impunha. A sociedade fechada e policial que tínhamos passou gradualmente a abrir-se, como que por inerência. A televisão contribuiu para essa abertura. Por seu lado, a vinda para a metrópole - devido à guerra que deflagrou nas colónias em 1961 - de numerosos portugueses que nasceram ou fizeram parte da sua vida em terras de África e da Ásia foi igualmente muito enriquecedora para o Portugal europeu. Muitos dos que regressaram das colónias mostraram ser não só pessoas dotadas de uma notável capacidade de iniciativa como também de uma mente aberta a outros horizontes, o que lhes permitiu trazer um saudável apport em vários domínios ao país onde passaram a viver. A África colonial portuguesa, apesar da omnipresente P.I.D.E., era um espaço muito diferente do território metropolitano. Vivia-se mais, os horizontes eram mais vastos para um grande número de famílias brancas. Existia uma mentalidade assaz diferente daquela estreiteza que se pressentia, e sentia, no território da Europa. Lá não se encontrava a mesma mesquinhez e desconfiança que predominava na metrópole. Havia uma amizade mais forte entre as pessoas, uma maior solidariedade. Era uma sociedade com outros horizontes. Nas colónias, a Igreja não conseguia ser tão dominadora e abafante como no Portugal ibérico. Aliás, também as forças armadas aprenderam a democratizar-se na guerra colonial. Por este conjunto de razões, houve muitos brancos que, ou por terem nascido nas colónias ou por nelas terem vivido o tempo suficiente para se poderem considerar saudavelmente "africanizados", sentiram um enorme choque quando vieram para a metrópole. Em certa medida, revoltaram-se. A sua revolta, que também fazia parte da sua sobrevivência, ajudou o país.
Foi assim relativamente natural - embora não seja geralmente reconhecido como tal - que muitas dessas pessoas tivessem singrado na sociedade que os acolheu e nela se tivessem posteriormente destacado. Por natureza produtos híbridos de dois (ou mais) meios distintos, foram primordialmente aqueles que eram possuidores de uma boa educação académica os que sobressaíram. O aroma africano (ou asiático) entrechocava-se com o europeu e produzia frequentemente uma mescla especial. Daí - e certamente de outros factores como os atrás mencionados - nasceu uma irreverência a que nem Lisboa nem o Porto estavam habituados e que deu um impulso significativo ao Portugal do terceiro quartel do século passado. Daqui nascem alguns dos nomes da listagem acima.
Dando o meu testemunho pessoal, reconheço que houve vários países que tive a oportunidade de visitar que me influenciaram poderosamente. Porém, nenhum me influenciou tanto como Angola, onde encontrei a virgindade de terras e de pessoas que ambicionava conhecer. Ainda hoje na minha forma de pensar e agir acho frequentemente traços distintos que me remetem para a minha permanência de cerca de dois anos e meio em terras de Angola. Embora conceda que também viagens, relativamente curtas mas produtivas, a países como o México, a Rússia, os Estados Unidos, a Turquia, o Brasil e a Índia contribuíram para que o meu pensamento saísse da esfera fechada do território onde nasci, a verdade é que a magia de África não mais saiu de dentro de mim.
Ora, se eu próprio sinto esta cultura diferente, como não haveriam de reagir aqueles que nasceram noutra sociedade e que, possuidores de notáveis capacidades potenciais, só precisavam de campo fértil para desabrochar? Daqui nasceu uma plêiade de pessoas a quem presto naturalmente a minha homenagem. É, infelizmente, um núcleo ao qual se tem dedicado pouca atenção no seu conjunto, ainda que individualmente muitas dessas pessoas sejam sobejamente notadas.
E o número é muitíssimo maior do que o dos nomes listados. À guisa de exemplo, note-se que neste mesmo blogue participam com alguma regularidade pessoas como o António (advogado), a Isabel (engenheira civil) e a Elisa (professora de Filosofia). O que têm eles em comum? Todos nasceram em Angola ou lá viveram durante vários anos que foram significativos nas suas vidas. E todos denotam uma curiosidade permanente, um alerta para a cultura e um salutar desassossego que me sabe bem destacar.
Nunca ouvi ninguém dizer que esta é uma onda absolutamente irrepetível, mas certamente que o é. Onde poderão repetir-se, por exemplo, os cinco magníficos do Liceu Nacional de Lourenço Marques, Eugénio Lisboa, Hélder Macedo, Hermínio Martins, Fernando Gil e o seu irmão José Gil? Todos eles são figuras intelectuais que fizeram grande parte da sua vida em reputadas universidades de Inglaterra e França.
Em campo menos intelectual, se nos virarmos para o domínio desportivo, talvez alguém ainda se lembre de quatro sensacionais jogadores de hóquei em patins que nos chegaram de Lourenço Marques e quase faziam só por si o cinco nacional que foi campeão do mundo: Moreira, Vaz Guedes, Fernando Adrião, Velasco e Bouçós. Só Vaz Guedes não era de Moçambique!
Sinto que é bom reconhecer que a transculturalidade tem grandes vantagens, nomeadamente quando é acompanhada por uma sólida educação de base. Quebram-se eventuais amarras, voa-se mais alto, existe uma vontade de agitar o mundo, num inconformismo que surge implícito. Se é pena que esta onda não se possa repetir, há que pensar na enorme vantagem que o sair de fronteiras representa - fronteiras tanto no domínio físico como no da educação. É este o bom caminho que se nos oferece, mas continuará a ser muito gratificante pensar em todos os acima mencionados - e não só -, que contribuíram ou ainda contribuem, através do produto do entrechoque cultural que nos legam, para criar um país mais rico e uma sociedade mais interessante.


P.S.1. Não me foi exactamente fácil descobrir que todos estes nomes estavam ligados às antigas colónias portuguesas. Como digo atrás, muitos outros podem ser acrescentados dentro dos parâmetros da transculturalidade. Fico agradecido se alguns dos leitores me fornecerem outros nomes.

P.S.2. Este tema está inserido no contexto de um trabalho mais abrangente que ainda não dei por terminado. Gostaria, entretanto, de acrescentar alguns pontos e levantar questões que me parecem relevantes.
Será que alguém que viva sempre no mesmo local e ambiente tem as mesmas possibilidades de desenvolvimento intelectual de uma outra pessoa que conheça vários países e culturas in loco?
Será que um engenheiro que enverede a certa altura pelo mundo das letras, um médico que se apaixone pelo domínio da arte ou um agrónomo pelo campo da antropologia adquirem outra dimensão na sua vida?
Será que alguém com estudos que mude efectivamente de carreira a meio da sua vida produz em si próprio um renascimento ou uma redescoberta? E a isso, que não implica necessariamente mudança de espaço físico, poderemos também chamar transculturalidade?
Será que o dominar idiomas diferentes da língua materna representa em certa medida alguma transculturalidade?
Creio que estas perguntas têm toda a razão de ser. Olhemos para o caso de Ruy Cinatti por exemplo. Dele se poderá dizer que foi agrónomo, antropólogo e poeta. Com o seu curso de agronomia tirado em Lisboa no ISA, a certa altura da sua vida rumou a Timor. Esteve também em S. Tomé. A transcultura fez o resto. Descobriu o que não conhecia. A curiosidade que existe em todos os talentos e que cria a ânsia de saber e de experimentar, impôs-se. A antropologia tomou conta dele, tal como a poesia.
Hoje conhecemos Eugénio Lisboa como professor universitário, ensaísta e crítico literário. Contudo, estamos em presença de uma pessoa que tirou o curso de Engenharia Electrotécnica no IST e que trabalhou em França no ramo petrolífero durante 20 anos. Depois esteve 17 anos como conselheiro cultural da Embaixada portuguesa em Londres e leccionou em várias partes do mundo.
Tomemos o caso do conhecido locutor José Rodrigues dos Santos. Nasceu em Moçambique em pleno período da guerra colonial (1964). Aos 17 anos estava em Macau e enveredava pelo jornalismo (na Rádio Macau). Em Lisboa, cursou depois Comunicação Social na UNL e fez um estágio em Londres, na BBC. Esta acabou por contratá-lo por um período de três anos. Regressado a Portugal ganhou notoriedade na televisão aquando da Guerra do Golfo, em 1991. Passou a ser colaborador permanente da CNN. Após doutorar-se em Ciências da Comunicação, manteve o seu posto na RTP, mas começou igualmente a leccionar. Ultimamente, amadureceu o suficiente para escrever romances que mereceram a atenção do público - um deles vai ser objecto de filme em Hollywood. Temos aqui um caso típico de pessoa que tem conhecimento real e relativamente profundo de várias culturas - de Moçambique, Macau, Londres e Portugal. Deveremos falar dele como locutor de televisão, como professor, ou como romancista? Ou juntar tudo? Transcultura?
Cada vez noto mais que, nos bons cérebros, letras e ciências se unem, em suporte mútuo. O criativo atinge mais facilmente a saturação e consequente rotina de um determinado tema e carece de renovar-se, de criar uma nova paixão. Sempre com a liberdade como substrato. Existe nele uma inquietação permanente. É mais gratificante ser original uma vez do que copiador e imitador cem vezes. Encare-se nesta perspectiva a obsessão criativa e desdobrante de Fernando Pessoa, ele próprio um produto de África na sua formação de base durante a juventude, fluente em duas línguas estrangeiras, e convivente no Portugal europeu com uma cultura diversa e com aquilo que lhe chegava de França, país que nunca visitou.
Descubra-se algo semelhante em Almada Negreiros, um são-tomense tanto pelo solo onde nasceu como pelo lado da sua mãe. Almada, artista irreverente e polifacetado, a desdobrar-se pela pintura, pela poesia, pelo ensaio, pela tapeçaria, pela caricatura, pelo vitral: "poeta d’Orpheu, futurista e tudo".
Disse Kant: "Quanto mais fizeres, quanto mais pensares, tanto mais viverás".

11/21/2008

A Fera da Incerteza

Para explicar o título bastar-me-á naturalmente lembrar que "a era da incerteza", tornada famosa por Galbraith, se tornou tão temível que se transformou numa verdadeira fera. Neste caso, como sucede por vezes quando lemos um livro, não nos é dada a possibilidade de deitar uma olhadela às páginas finais para ver como a história acaba. É que este livro continua a ser escrito e, um pouco como o cadavre exquis dos surrealistas, é redigido por múltiplos autores. Trata-se de uma realidade sem dúvida excitante, na qual nós, para além de leitores diários, somos actores intervenientes, tanto para o bem como para o mal.
Antigamente, a receita era conhecida: quem queria fazer investimentos com alguma segurança no mercado bolsista deveria tentar conseguir um compromisso interessante entre o dólar e o ouro (ou aquilo que estes simbolizam), e entre mercados ocidentais e mercados emergentes. O problema é que a globalização nivelou muita coisa. Já não temos mercados emergentes a reagirem de forma oposta à dos mercados desenvolvidos. Está tudo interligado.
Dentro desta semelhança comportamental, existe contudo muito drama. Ainda há poucos meses a China rejubilava, justificadamente, com a sua brilhante realização dos Jogos Olímpicos e com o seu elevadíssimo saldo da balança comercial. Hoje em dia reina alguma preocupação entre as autoridades chinesas devido à falta de encomendas recebidas, o que já obrigou muitas fábricas a reduzirem o seu pessoal e outras mesmo a fechar. Dado que as autoridades governamentais chinesas têm feito assentar toda a sua política e grangeado popularidade através do crescimento da economia do país, presentemente estão com sérios receios de que a falta de trabalho conduza a tumultos e, o que é mais, faça desencadear a ira dos desempregados contra os que têm ultimamente enriquecido. Quem diria?!
Quem diria também que o petróleo que esteve quase a 150 dólares o barril iria descer em poucos meses para menos de 50! No entanto, é isso que está a ocorrer! As contas públicas de países como a Venezuela, Irão, Rússia, Brasil e Arábia Saudita têm que ser revistas.
Quem diria que as taxas de juro europeias, que estavam elevadas a fim de impedir que a inflação subisse, iriam em curto espaço de tempo baixar substancialmente com a finalidade de fomentar o desenvolvimento da economia!
Quem diria que muitos dos que sempre protestaram contra o Estado se iriam agora pôr de joelhos a pedir-lhe auxílio!
Em Portugal, houve há algumas semanas na televisão um programa que conseguiu a proeza de reunir os CEO dos quatro maiores bancos do país (CGD, Millennium, BES e BPI). Mostraram-se satisfeitos com o facto de o Estado garantir o pagamento das contas bancárias dos seus depositantes até uma determinada quantia. Relativamente pouco tempo depois, o Banco Português de Negócios (BPN) era declarado insolvente e nacionalizado. A CGD controla-o presentemente, enquanto a PJ investiga. Agora chegou a vez do Banco Privado Português (BPP) vir formalmente pedir ao Estado um aval no valor de 750 milhões de euros. Ao contrário dos restantes, o BPP não se apresenta como banca comercial, mas sim como banco de investimento. Daqui decorre que é, grosso modo, um gestor de fortunas. Pressuponho que, devido à avalanche que tem levado as cotações bolsistas de uma maneira geral a valores baixíssimos, impensáveis ainda há pouco tempo, o banco tenha actualmente necessidade absoluta de recorrer a empréstimos. Sabe-se que o BPP tem por hábito apostar forte e jogar num segmento que é de altíssimo risco. Terá possivelmente conseguido obter óptimos resultados no passado, mas presentemente só vê resultados negativos. Será que não está já em condições de pagar eventuais resgates avultados que alguns dos seus clientes lhe venham a exigir?
Neste caso, a concessão do aval por parte do Estado levanta, naturalmente, uma questão moral e ética. Que o Estado tenha dado o seu aval a contas bancárias até um determinado montante por cliente, entende-se na presente situação de crise. Mas que o mesmo Estado, usando igualmente os dinheiros públicos de que dispõe, forneça o seu aval para defender grandes fortunas particulares já não é entendível da mesma forma, por configurar uma situação completamente diferente. Vamos a ver o que o Banco de Portugal decide.
Por mais que queiramos pensar de outra forma, somos forçados a verificar que estamos de facto numa era de feroz incerteza. Não há previsão que se sustente a si mesma. Esperemos, entretanto, que sobrevenha alguma acalmia. No cômputo geral, temos de admitir que, ao contrário dos furacões e tsunamis que tanta devastação causam, toda esta tremenda procela não é mais do que o produto de (uma má) mão humana. Visível e identificável.

11/18/2008

A língua e as árvores

Dum lado surge um esguio choupo, do outro uma cerejeira florida. Ali sobe o magro salgueiro enquanto uma centena de metros à frente a macieira nos traz belas maçãs. O eucalipto ávido de água contrasta com a pereira carregada de apetecíveis peras. O carvalho rijo e austero não se revê na linda ameixieira. Aquele pinheiro acolá ergue-se bem mais alto do que a sofredora oliveira. O ácido limoeiro tem alguma inveja dos frutos doces da sua vizinha laranjeira. O cedro não vê na ramalhosa figueira um membro da sua família.
As árvores são assim. Masculinas de um lado, femininas do outro. Mais frutíferas e saborosas as femininas. Mais lenhosas as masculinas. E as que são macho e fêmea simultaneamente? Por exemplo, o que tem o pinheiro manso, com a sua frondosa copa e jeito feminino, a ver com o outro pinheiro, o bravo, macho e seco? Será que o bravo tem que ser sempre o macho, como sucede entre a oliveira e o olivão? Por seu lado, faz pouco sentido que o salgueiro, tipicamente masculino na sua postura, mantenha o nome quando é salgueiro-chorão. Tão diferente, verde e coposo!
Tinha eu a minha teoria de que as árvores de frutos edíveis eram todas femininas, enquanto as outras eram masculinas. No meu enunciado mental, dizia para mim mesmo que as árvores com frutos que não são imediatamente trincados com gosto, como é o caso do limoeiro e do cajueiro, são masculinas. Então e os pessegueiros? Não dão frutos óptimos? O.K., mas esses frutos são masculinos, os pêssegos. Tal como os frutos do limoeiro são os limões. Os restantes são femininos, como as cerejas, as peras, as maçãs, as ameixas, as laranjas. Ah sim, então e os figos, que são filhos da figueira? Deveriam ser figas? Curiosamente, em alemão os figos são femininos. Seja como for, as nossas árvores – femininas na sua designação genérica - contrastam com o masculino el árbol do castelhano, o também masculino arbre francês, assim como com o alemão Baum. Razão tiveram os ingleses para tratar tudo de forma neutra. Nem masculino, nem feminino. Inventaram o cúmulo da facilidade e do pragmatismo. Creio que foi por esta prevalente noção pragmática da sua cultura e, ainda mais, por motivos políticos que não estão certamente dissociados desse mesmo pragmatismo, que o inglês se tornou uma língua fácil de usar no intercâmbio de um mundo tecnologicamente mais unificado.

11/17/2008

O questionário

Que os tempos não estão bons para arranjar emprego já todos nós sabíamos. Que era tão difícil ingressar nos lugares de topo do governo de Obama é que já pode causar alguma surpresa.
Quem quiser candidatar-se a um desses lugares terá de responder a 7 páginas de um questionário que se arrisca a ser dos mais extensos de sempre. Este inclui um total de 63 (sessenta e três) perguntas sobre aspectos pessoais e profissionais dos candidatos, sendo que algumas das questões colocadas abrangem também os cônjuges e os filhos adultos. Num dos pontos, os candidatos devem responder se eles ou alguém da sua família são detentores de armas. Terão de incluir notícia de e-mails que possam causar embaraços a Obama, juntamente com posts de blogs e links às suas páginas do Facebook. Outra questão que é formulada inquere sobre os pseudónimos que eventualmente possam ter usado nas suas comunicações na Internet.
Não é de agora, segundo a edição do Herald Tribune de onde retiro a notícia, que os sucessivos governos colocam obstáculos deste tipo a fim de evitar a repetição de erros do passado, mas nunca uma exposição tão detalhada foi exigida aos candidatos, o que terá também certamente sido ocasionado pelas mudanças tecnológicas entretanto ocorridas no mundo. Todo o questionário levanta alguma controvérsia, mas pretende impedir que aquilo que Obama propugnou na sua campanha - o não ao lobbying e ao banco de favores tão comum em Washington - venha a ocorrer com membros e técnicos superiores do seu governo.
Para dar uma ideia mais pormenorizada das questões, note-se por exemplo que, na rubrica "Auxílio doméstico", o questionário indaga qual é a condição de imigrante de cada um dos empregados que o candidato possa ter na sua casa, de governantas a amas, de motoristas a jardineiros. Mais: pergunta se os próprios candidatos têm em dia os impostos devidos pelas pessoas que empregam.
O item que inicia o questionário não se limita a pedir aos candidatos um curriculum vitae, mas sim todos os c.v. que tenham tido necessidade de apresentar durante os últimos dez anos. Os candidatos têm ainda de fornecer informação sobre as firmas em que eles/elas e os seus respectivos cônjuges tenham exercido actividade, e ainda se detêm interesses nessas firmas superiores a 5 por cento. Por outro lado, todos os presentes de valor superior a 50 dólares que os candidatos ou seus cônjuges tenham recebido de pessoas que não sejam amigos íntimos devem ser identificados.
Eis a transcrição literal de dois dos 63 itens do questionário:

(13) Electronic communications: If you have ever sent an electronic communication, including but not limited to an email, text message or instant message, that could suggest a conflict of interest or be a possible source of embarrassment to you, your family, or the President-Elect if it were made public, please describe.
(14) Diaries: If you keep or have ever kept a diary that contains anything that could suggest a conflict of interest or be a possible source of embarrassment to you, your family, or the President-Elect if it were made public, please describe.


Como estamos em Novembro, lembremos que quem não quer que as castanhas lhe rebentem na boca tem que lhes dar um bom corte antes de as assar. Quem não quer ter no seu governo ministros ou chefes de gabinete que possam um dia ser alvo de escândalos negativos para a imagem da Administração, precavê-se com questionários deste tipo. Ninguém poderá dizer que este questionário não é altamente metediço e espiolhante da vida dos candidatos!

11/12/2008

Dois livros

Recomendar livros nem sempre é fácil pela simples razão de que aquilo de que gostamos não é necessariamente aquilo de que outros gostam. Não é só a forma de escrita que está em questão, mas também a temática abordada. De qualquer modo, dentro do sentimento de partilha que me anima neste blogue, gostaria de deixar aqui duas breves referências a livros que ultimamente li e que me parecem merecer alguma atenção.
O primeiro intitula-se Verdade, Humildade & Solidariedade, tem a autoria de João Ermida e foi publicado pela editora Livros d’Hoje. O autor é um portuense que, com um curso incompleto de Economia da Universidade Católica, iniciou aos 22 anos a sua actividade profissional como corretor de Bolsa, ingressou depois no departamento de mercado de capitais do Citibank e aos 28 passou a fazer parte dos quadros do grupo Santander no qual, primeiro no nosso país, depois no Brasil e, por fim, em Madrid, passou a ter a seu cargo a responsabilidade das áreas de Tesouraria e Mercados Financeiros à escala mundial, com frequentes viagens a toda a América Latina.
Afectado por um intenso stress que resultava não só da enorme responsabilidade de movimentar milhões que poderiam originar tanto ganhos como perdas colossais, mas também da noção de que o sistema se baseava em algo despido dos valores que ele interiormente defendia, aos 38 anos, com um invejável salário, apresentou a sua demissão. Depois, ou tomava montes de drogas ou escrevia um livro a revelar o que o tinha atormentado. Escolheu escrever o livro. Um parágrafo ao acaso: "No mundo de hoje dos negócios, a verdade foi perdendo interesse. É mais importante fazer promessas que nunca serão cumpridas do que tentar vender a realidade em que se vive. Esta situação leva a que empregados sejam postos em situações de total insegurança no seu trabalho, graças aos enormes objectivos que lhes são impostos, os quais só por sorte serão cumpridos."
Do ponto de vista da escrita, o livro carece de alguma afinação, mas vale pela verdade do seu conteúdo. A coincidência com o desencadear da crise financeira empresta-lhe uma particular actualidade.
O segundo livro que gostaria de recomendar é A Viagem do Elefante. Ainda bem que Saramago sobreviveu à grave doença que o atirou para a cama de um hospital quando ia apenas na página 40 desta sua historieta. Toda a ironia e humor de Saramago aparecem aqui a propósito de um elefante indiano que estava em Belém havia dois anos com o seu respectivo cornaca e que acabou por ser oferecido pelo rei português D. João III a seu primo, o arquiduque austríaco Maximiliano. No seu estilo inconfundível, Saramago faz-nos viajar primeiro até Valladolid, onde o arquiduque se encontrava, e depois até Viena. No meio de breves mas incisivas reflexões sobre a lógica, a moral e a filosofia, de um pensamento voante que nos transporta em duas ou três linhas ao futuro que nós conhecemos, de confrontos bem humorados entre a religião cristã e a filosofia indiana, a história do elefante faz-nos viajar no espaço e no tempo com uma notável leveza de escrita e deixa-nos imaginar o prazer e mesmo gozo do autor em ser o condutor dessa atribulada viagem. Vale muito a pena.

11/09/2008

No pasa nada!

Há coisas que não esquecem. Entre as muitas que só desaparecerão da minha memória quando a minha própria memória um dia desaparecer conta-se uma série de longas conversas que, no início da década de 70, mantive num hospital de Moscovo com um sociólogo de trinta e poucos anos que lá se encontrava internado. Ele era de Tashkent, no Uzbequistão. A certa altura falou-me de um grande tremor de terra que tinha recentemente abalado a sua cidade e causado centenas de mortos. "Doeu-me imenso ver tantos funerais na minha cidade, mas o mais revoltante de tudo foi verificar que, oficialmente, tinham morrido apenas 7 (sete) pessoas. Dado que a União Soviética deveria, se o número de mortos fosse maior, autorizar a entrada em Tashkent de equipas da Cruz Vermelha Internacional, para eles indesejáveis, reduziu-se tudo a sete mortos e a um número indeterminado de feridos. Ter que viver com a mentira oficial foi terrível. Se era assim que deturpavam uma verdade que convivia ali mesmo connosco, como poderiam querer que acreditássemos e confiássemos nas notícias que diariamente nos chegavam de Moscovo sobre outros assuntos?"
Ocorre-me este episódio quando oiço o governo menorizar propositadamente o que se está a passar em muitas escolas públicas de ensino não-superior. Existe um descontentamento profundo que se traduz em comentários sentidos como os que este próprio blogue registou há dias (e que está disponível perto daqui, apenas umas tantas linhas mais abaixo). Por que razão há tantos docentes (e outros funcionários dependentes do Ministério) a pedirem a reforma? Em 2008 totalizam 7471, o que representa um aumento de 43,5 por cento (!) relativamente a 2007 e de 12,5 por cento face a 2006. O que levará tantos docentes com vinte e muitos anos de ensino, ou mesmo trinta, a revoltar-se contra uma situação que nunca até agora encontraram nas suas escolas? Tal como sucedeu o ano passado, está em curso uma avaliação por demais burocratizada e frequentemente conduzida por professores recentemente promovidos a titulares nos quais os colegas nem sempre reconhecem competência para implementar a referida avaliação. Entre outros casos que são do meu conhecimento, o jornal Público informa-nos que uma professora com 34 anos e nove meses de serviço se vai reformar antecipadamente - com isso sendo obviamente penalizada na sua futura pensão. Como diz essa professora, cujo nome vem publicado, "Não tenho medo de falar. Já meti os papéis para me ir embora: não quero avaliar nenhum professor porque isto é uma fantochada."
A manifestação de hoje em Lisboa trouxe à rua muitos docentes que sentiram necessidade de protestar veementemente. Que a manifestação foi organizada por um sindicato com alguns dirigentes comunistas é um facto. Que o Mário Nogueira seja, ao que consta, o inimigo mais detestado por Sócrates, também aceito. Que isto proporciona aproveitamento político aos partidos da oposição é igualmente verdade. Mas paremos para pensar no essencial: quem é que consegue fazer movimentar tantos professores de todo o país, se não existir um substrato de razões objectivas que provoca todo este desvio do statu quo que se desejaria normal em muitos estabelecimentos de ensino?
No pasa nada?

11/05/2008

Obama, a vitória e o discurso


Admito que me deitei mais tarde do que o habitual, mas sem qualquer esforço e devido a um real interesse no apuramento final dos resultados. A diferença de cinco a seis horas entre o nosso horário e o americano forçou-me a isso. Estas eleições eram mesmo especiais.
E eram especiais depois do enorme desapontamento que constituiu, há quatro anos, a reeleição do pior Presidente americano de que me lembro. Custava-me a acreditar que a cena se repetisse, com outro nome mas com o mesmo partido e política semelhante.
Toda uma geração pensante que foi na sua juventude e mesmo na idade adulta profundamente influenciada pelo cinema, pela literatura e música dos Estados Unidos sentiu-se, com Bush e os seus conselheiros, acerrimamente anti-americana. Era inevitável. Ao espalharem guerra por múltiplos lados do planeta, ao serem mentirosos compulsivos, ao intrometerem-se indevidamente nos assuntos de outros países ao mesmo tempo que recusavam asperamente um comentário sobre o seu próprio comportamento, ao praticarem a tortura e isentarem os seus torturadores de serem julgados em tribunal internacional, ao auto-excluirem-se de assinar acordos ambientais que favoreciam o mundo e ao alardearem valores que depois eles próprios não praticavam, os americanos tornaram-se depressa no povo mais odiado do planeta. A recente crise financeira, que ainda fará muitos estragos na economia mundial, também é algo da sua autoria: mais um produto de valores produzidos do lado avesso.
Obama tinha muito contra si. Não era branco WASP (White Anglo-Saxon Protestant). Aliás, nem sequer era branco. Não provinha de famílias conhecidas, não possuía meios de fortuna. A culminar estas suas carências, era detentor de algo terrível: o seu próprio nome. Este rima com Ossama (de Bin Laden) e, como middle-name, contém Hussein (de Saddam). Barack Hussein Obama poderia eventualmente ser o nome dum chefe de estado muçulmano algures em África ou no Médio Oriente. Mas nos Estados Unidos da América?! E depois do 11 de Setembro de 2001?!
Inacreditavelmente, conseguiu bater a sua grande rival democrata, Hillary Clinton, que tinha a seu favor o facto de ser conhecida mundialmente, de ter mantido a sua família coesa apesar das infidelidades públicas do marido-presidente, de poder vir a ser a primeira mulher a eleger e de possuir a experiência e o know-how que o seu lugar de primeira-dama durante oito anos certamente lhe conferiu.
Uma vez arrebatado o ticket democrata para as eleições, Obama conquistou grande parte do eleitorado, democrata e republicano, através do testemunho vivo da sua própria, esmerada educação de Harvard e da diferença em matéria de inteligência e moderação que a sua hibridez rácica lhe proporcionava. O seu poder oratório lembra o dos grandes tribunos. Não pelo esforço gutural de arrastamento de multidões através da elevação do tom de voz e de frenética gesticulação como tantos líderes fazem, mas antes pela calma e fluidez do seu discurso, que surge como que iluminado. De onde vem toda aquela capacidade retórica?, pergunta-se na assistência. De um invisível teleponto divino?
O discurso final de Obama após a vitória torna-se histórico por vários motivos que todos entendemos. Muitos excertos vão obrigatoriamente ser reproduzidos aqui e ali. Justificadamente. Pessoalmente, não pude deixar de me recordar de dois grandes momentos americanos: o primeiro, inevitavelmente, o de Martin Luther King e o seu famoso “I have a dream”; o segundo, que o antecede cronologicamente (1939), o clássico filme do realizador ítalo-americano Frank Capra Mr Smith Goes to Washington (“Peço a Palavra!”, no seu título português). São dois momentos que estão nas bases mais profundas da cultura americana e do famoso American Dream (que Bush num ápice transformou no American Nightmare).
Todos sabemos por experiência própria que as palavras por si sós não movem o mundo. Mas sabemos também que a par de discursos e comportamentos assassinos, que provocam insegurança e pânico, existem palavras que motivam cada um individualmente e uma nação no seu todo maioritário. Ao afirmar, com voz sentida mas moderada, “Change has come to America!”, Obama não se arvorou, felizmente, como redentor, mas colocou o povo através da sua escolha como obreiro dessa mudança que terá, afinal, de ser concretizada por todos. Foi um posicionamento inteligente e altamente motivador.
Esperemos que as as nuvens negras do pesadelo americano se vão gradualmente dissipando. Precisamos de novos ventos. The answer, my friend, is blowing in the wind…

11/03/2008

Do "Milagre de Milão" ao milagre da Milú

Quando ontem li a crónica que António Barreto escreveu para o Público, sob o título "O Milagre", acerca dos resultados do último ano lectivo, não pude deixar de sorrir. A crónica nada tem de verdadeiramente novo para quem está atento ao mundo da educação, mas merece naturalmente ser lida. É, afinal, mais um reputado cronista a falar em facilitismo de provas para que os resultados acabem por aparecer. De facto, quem alguma vez ensinou sabe que em determinadas disciplinas não é possível conseguir elevadas taxas de sucesso de um ano para o outro como se de um passe de mágica se tratasse. É pena que só à custa de exames mais fáceis e de notas empoladas, de critérios generosos que não penalizam a forma de expressão nem os erros ortográficos para não atrapalhar mais o sistema, se consiga obter melhores resultados.
Entretanto, no meio de tudo, há docentes que se esforçam verdadeiramente no seu conturbado ambiente e há igualmente alunos que dão tudo o que têm para obter boas classificações. Porém, descontabilizando estes casos que são mais excepção do que regra, não é crível que de um ano para o outro surja uma elevação tão notória e generalizada de notas como esta, que lembra mais um truque de ilusionista do que uma situação real, sustentável no futuro.
Para fazer um simples jogo de palavras no meu título, relembrei o clássico filme de Vittorio de Sica “O Milagre de Milão” (1951) e contrapu-lo ao milagre da Milú. Contudo, a verdade é que não é só a Milú ministra da Educação a usar poções mágicas típicas de druidas. Há muito que em certas escolas do ensino superior se dá uma generosa ajuda à fraqueza dos resultados obtidos pelos alunos do secundário para que os candidatos possam entrar na Faculdade X ou Instituto Y. Há anos e anos que nas escolas com menor reputação se utilizam os estratagemas mais diversos para permitir o maior número possível de ingresso de candidatos: começou-se por criar uma banda larguíssima de provas de acesso; mais tarde, passou a atribuir-se apenas 35 por cento às notas dos exames nacionais, indo os restantes 65 por cento para as médias escolares, que são por norma mais elevadas; com novas leis mais apertadas do Ministério, iniciou-se a escolha para provas de acesso à instituição de ensino superior de blocos de duas disciplinas, sendo uma delas básica para o curso - geralmente a Matemática - e a outra apenas auxiliar, mas mais fácil e portanto de nota compensatória no cômputo da média de ambas; utilizaram-se igualmente percentis (legais) para preenchimento de vagas.
Hoje em dia, em face do requisito obrigatório de nota positiva à cadeira básica de acesso, por exemplo a Matemática, muitas escolas superiores de menor prestígio eliminaram a obrigatoriedade da disciplina, escolhendo como alternativas possíveis cadeiras como Português, Economia ou Direito. O leque de candidatos abriu-se instantaneamente como por encanto, enquanto as médias de ingresso treparam. Mas quantos alunos tiveram a sua média de acesso computada na base da Matemática que costumava ser cadeira sine qua non? Isto sucede em várias escolas de engenharia, de contabilidade, de gestão e, eventualmente, outras áreas.
E que dizer do facilitismo das Novas Oportunidades? Se nalguns casos, claramente minoritários, surgem alunos esplêndidos, alguns até a adicionar uma nova licenciatura àquela que já possuem, no geral o panorama é sombrio, com estudantes detentores da habilitação máxima do 9º Ano (a Matemática, por exemplo) a debaterem-se com naturais dificuldades no ensino superior para o qual não estão preparados. A taxa de abandono é elevada e as não-passagens a disciplinas mais numéricas não são menos impressivas.
Daí que acusar apenas a Milú me pareça ser uma atitude que peca por bater sempre na mesma ceguinha. Há outros com culpas no cartório. Mas claro que isto de culpas é algo que depende sempre do ponto de vista!
Na questão do ranking, procurar estabelecer uma distinção competitiva, no ensino básico e secundário, entre os resultados do sector privado e do público é esquecer que as condições não são idênticas em vários aspectos, a começar pelo pagamento, que estabelece uma primeira selecção. Os melhores colégios particulares, em face do grande afluxo de pedidos de matrícula que lhes chegam, fazem aquilo que é mais natural: deixam de fora os alunos potencialmente piores. E se alguns hoje são indisciplinados e perturbadores, no ano que vem a escola não lhes renova a matrícula. Ora, na medida em que começam com uma certa "nata" do corpo discente e tentam manter um corpo coeso de docentes que exerce a sua actividade dentro dos parâmetros de um projecto escolar válido, nada de mais natural que as melhores escolas do ensino secundário privado surjam com resultados muito superiores aos do ensino público. Neste, não se podem recusar alunos. Além disso, nas últimas décadas têm surgido com gravosidade crescente os problemas que todos conhecemos.
A perversidade do sistema termina o seu ciclo com muitos dos melhores alunos provindos do sistema particular de ensino secundário - filhos de famílias com maiores posses - a preencherem muitos dos lugares nas melhores universidades públicas, com propinas consideravelmente mais baixas do que as do ensino superior privado.
Este é um breve resumo do que me tem sido dado observar após várias décadas de ensino, tanto no sector privado como no público.

11/02/2008

E um pouco mais de poesia, porque ainda é fim-de-semana...

Dizem os ventos que as marés não dormem esta noite.
Estou assustada à espera que regresses: as ondas já
engoliram a praia mais pequena e entornaram algas
nos vasos da varanda. E ,na cidade, conta-se que
as praças acoitaram à tarde dezenas de gaivotas
que perseguiram os pombos e os morderam.

A lareira crepita lentamente. O pão ainda está morno
à tua mesa. Mas a água já ferveu três vezes
para o caldo. E em casa a luz fraqueja, não tarda
que se apague. E tu não tardes, que eu fiz um bolo
de ervas com canela; e há compota de ameixas
e suspiros e um cobertor de lã na cama e eu

estou assustada. A lua está apenas por metade,
a terra treme. E eu tremo, com medo que não voltes.

(Fado, de Maria do Rosário Pedreira)