1/02/2009

Binário protesta-contesta

Hoje de manhã, à saída do metro da estação do Rossio ouvi atrás de mim uma exclamação de protesto de um miúdo para a mãe: "Ó mãe, olha o que fizeste! Até me descalçaste o sapato." Logo a seguir chegou-me aos ouvidos a reacção da mãe: "Atravessaste-te à minha frente!"
Não pude deixar de achar graça, até porque a situação veio na sequência de algo com que me deparei na rua na manhã do dia anterior, de Ano Novo. Um indivíduo, cambaleando sob o efeito de uma dose descomunal de vinho, passou perto de mim na rua deserta e, uns segundos depois, deu subitamente uma guinada para a direita que lhe fez semi-perder o equilíbrio e quase o atirava ao chão. Acto contínuo, exclamou para si próprio: "Ei, quem é que me empurrou?!"
É tão vulgar este binário acusação-desculpa no relacionamento entre as pessoas, seja de que nível elas forem e nas circuntâncias mais diversas, que achei paradigmáticos os dois casos. No primeiro, a mãe ainda arranjou uma razão plausível. Notei que não tinha pedido desculpa ao filho - não se sentia minimamente culpada e, assim, censurava até a atitude do miúdo para com ela. Mas muitas vezes, como no caso do bêbado, a auto-desculpa aparece sem ser convidada.
"Então, chefe, não vamos receber nenhum aumento este ano?" "Isso não é do meu pelouro. A Administração é que sabe.
"Apesar dos sacrifícios todos que nos têm pedido, continuamos a atrasar-nos relativamente à Europa, senhor ministro." "Isso depende de como se vêem as coisas. Há muitos indicadores em que estamos muito acima da média. Aliás, sem os sacrifícios de que fala estaríamos bem pior."
"Esta é uma instituição pública e as nossas propinas estão incrivelmente altas, senhor Presidente." "Se você conhecesse a verdade das contas e do financiamento do Estado, não diria isso. Admita que o montante é uma ninharia quando comparado com as propinas do ensino superior privado."
"Este ano o nosso Natal foi fraquinho, pai." "Dá-te por muito contente por teres tido o que tiveste. Houve muitos meninos sem nada."
"Tu prometeste que me levavas hoje ao cinema, mãe!" "Se pudesse, filha, se pudesse! Foi isso que eu te disse. Fica para outro dia."
"Este barulho que ouvi é dum copo que acabaste de partir, correcto?" "Não sei quem é que deixa os copos mesmo à beirinha da mesa. Uma pessoa passa e, sem querer, lá vai o copo parar ao chão..."

Quem tem mais poder sente, geralmente, que não fica bem ter que dar razão a quem o interpela. Não há volta a dar. Este sistema de uma acusação que é logo seguida de uma desculpa é tão comum que o acusador até já se pergunta, antes de formular a sua questão, "vamos a ver que desculpa é que é ele/ela me vai dar". Mas quase de certeza que vai arranjar qualquer coisa. Humanamente, é assim que agimos.

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