O primeiro caso é antigo, os outros dois são actuais. No início da década de 60, estando eu em Angola em serviço militar como alferes miliciano, fui destacado com mais cerca de 40 homens para uma povoação de nome Chio, situada a relativamente poucos quilómetros do rio Cuanza. Estava no centro de um região pouco povoada, com cultivo predominante do algodão. Não era propriamente uma zona de guerra. Estávamos a uns cem quilómetros de locais onde se desenrolavam combates, mais a norte. Éramos os primeiros militares a ocupar aquela área.
A certa altura recebi ordem do Quartel-General para recolher todas as armas que a população local pudesse ter. Apesar do clima de paz, era sempre possível que o conflito rebentasse por aqueles lados, daí que a recolha das armas de fogo indígenas - canhangulos ou outro tipo de espingardas - fosse altamente aconselhável. A autoridade administrativa local tinha-me entretanto afirmado que tinham sido recolhidas todas as armas. À cautela, e porque o agente administrativo colocado naquela povoação não era homem para se meter pelas sanzalas adentro, decidi fazer as minhas próprias pesquisas, sempre bem auxiliado pelos sargentos e soldados que estavam comigo. Começámos por fazer croquis de todas as sanzalas da região - a zona tinha a área do Alentejo mas o número de sanzalas era relativamente reduzido -, identificámos todas as cubatas e depois procurámos encontrar um fio de informação que, se achado, poderia desdobrar-se até atingir um tamanho que não podíamos calcular de início. Convidámos cinco artesãos nativos para nos fazerem uma casa de madeira e colmo. Escolhemos artesãos que trabalhavam em madeira e poderiam facilmente ter sido os fabricantes de algumas das armas que procurávamos. Fomos bem sucedidos. Obtivemos informações preciosas, que anotámos.
Entretanto, assaltou-nos um problema: se os habitantes da zona nos entregassem as armas, como é que iriam eles caçar alguns animais que faziam parte da sua alimentação? Embora estivéssemos numa reserva de caça, calculávamos que eles, furtivamente, iam abatendo alguns animais. Ora, aconteceu que nesse ano o algodão subiu de preço. Por um lado, tratou-se da influência dos mercados internacionais. Por outro, o medo de alastramento do conflito levou as autoridades portuguesas a favorecer os angolanos, fixando um preço que se cifrava alguns pontos percentuais acima do praticado no ano anterior. Foi exactamente esta subida de valor do algodão, que acabava por representar mais dinheiro para os locais que o cultivavam, que usei na minha informação às sanzalas para justificar o prejuízo que eles teriam por não poderem usar as suas armas. O argumento usado foi, felizmente, bem recebido. Se não tivesse sido, o número de armas que conseguimos recolher - cerca de 200 - teria decerto sido muito inferior. Os habitantes daquela zona estavam a ficar prejudicados no seu dia-a-dia e teriam de receber alguma compensação.
Enquanto este caso verídico da guerra colonial em Angola fará cinquenta anos em 2011, o segundo caso (recolhido de uma reportagem do jornal Público) está a decorrer no presente. E no norte de Portugal, mais concretamente no Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG). O Instituto de Conservação da Natureza e Biodiversidade (ICNB) propôs-se, certamente com a aprovação de Henrique Pereira, responsável directo pelo Parque da Peneda-Gerês, fazer integrar o PNPG na rede europeia Pan Parks, à qual já pertencem países como a Finlândia, Bulgária, Polónia, Turquia e Roménia. Um dos requisitos para que um parque natural possa obter a certificação Pan Parks é que possua uma área superior a 20 mil hectares e integre uma zona sem qualquer intervenção humana (wilderness zone) com uma superfície mínima de cinco mil hectares, que deve passar a 10 mil hectares dentro de uma década. O objectivo do ICNB é o de aumentar o prestígio do Parque Peneda-Gerês para assim potenciar o ecoturismo.
Ora sucede que, para alcançar os cinco mil hectares exigidos no início, será necessário aumentar em 2250 hectares a actual zona de protecção total. Isso obrigará a interditar o pastoreio usado pelas populações locais. Estas não aceitam prescindir do direito à propriedade e aos usos e costumes que herdaram dos seus antepassados e que, aliás, estão reconhecidos legalmente. São terrenos dos concelhos de Terras do Bouro, Ponte da Barca e Montalegre (neste blog já foram produzidos textos e mostradas fotografias sobre garranos e bois dessa área). O presidente da primeira das autarquias acima referidas declarou que vai defender os interesses das populações do parque e os seus direitos ancestrais, na medida em que são as populações da montanha que têm preservado o ambiente. Tentar conjugar os anseios de todos é muito diferente de impor regras, muitas vezes determinadas por quem não conhece suficientemente bem o tecido social da zona e que acabam por prejudicar o povo que lá habita e labuta.
Como se irá resolver este caso, que traz as populações em pé de guerra? Para já, o director Henrique Pereira vai abandonar o seu cargo daqui a seis dias. Irá dirigir um laboratório de investigação na Faculdade de Ciências de Lisboa. O filme segue dentro de momentos.
O terceiro caso abandona a terra e penetra no mar. Não se passa em Portugal, mas em zonas do Oceano Índico, ameaçando alastrar a outras áreas. Têm assombrado o mundo os ataques de piratas a navios transportadores de cargas com enorme valor. O máximo atingido terá sido de 100 milhões de dólares, quando um super-petroleiro saudita foi tomado por piratas que fizeram a abordagem no alto mar e conseguiram surpreender a tripulação. Só no ano passado, mais de 100 navios de todos os tipos foram atacados por piratas na zona que é usada por 12 por cento do comércio marítimo e pela qual passa 30 por cento do petróleo mundial.
Piratas no século XXI? Todos nos lembramos de ter estudado os assaltos dos vikings a povoações costeiras. Mas quando foi isso? Há séculos e séculos. Também foi há séculos que Walter Raleigh foi agraciado pela Rainha Isabel I com o título de “Sir” por ter proporcionado tantas riquezas ao tesouro inglês com os seus assaltos às embarcações espanholas ajoujadas de ouro e prata no seu regresso da América Latina. É claro que sempre tem havido assaltos a barcos, mas não com a frequência e dimensão que as abordagens dos Somalis têm registado ultimamente. O que pretendem estes homens? Naturalmente, ganhar dinheiro através de resgates. Mas haverá alguma razão forte que os tenha levado a ser tão destemidos e a arriscar a vida para aprisionar barcos no alto mar? Quem são estes somalis e de onde vieram?
São, na generalidade, homens do mar. Cultos? Nem pensar! A Somália está um caos em matéria de país. A taxa de desemprego é enorme. Como não há muitas outras fontes de rendimento disponíveis, a pesca é algo a que a população tem necessariamente de recorrer. Ora, sucede que as grandes potências e os países asiáticos invadiram com as suas embarcações aquelas águas tanto para a pesca como para outras actividades. Nos mares desde sempre utilizados pelos habitantes locais! Além de peixes mais pequenos, os pescadores somalis costumavam capturar tubarões, lagostas e outros crustáceos. Primeiro tentaram reagir através de protestos, mas forças militares internacionais começaram a proteger os barcos estrangeiros.
Segundo um dos líderes dos piratas, "se somos forçados a abandonar a nossa pesca tradicional, então são esses navios comerciais que passam a ser o nosso peixe." Acredito que esta versão seja ultra-simplificada para justificar os actos dos piratas, mas haverá decerto alguma verdade nela.
Os três casos acima abordados são, obviamente, diferentes. Mas contêm pontos em comum que dão que pensar. Por isso, bem ou mal, juntei-os.
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