1/27/2009

À volta do licenciamento do Freeport

Nestes últimos dias veio à baila com o habitual estrondo das primeiras páginas dos jornais e da abertura de serviços noticiosos TV/rádio mais um caso de eventual prestação de favores alegadamente pouco ética por parte de governantes. Como o actual primeiro-ministro pode estar alegadamente envolvido e estamos em ano multi-eleitoral, a importância do caso avoluma-se.
Ninguém estranhará que a história seja relativamente antiga: a justiça não tem sido célere em Portugal. Tudo data do segundo governo de António Guterres (PS), quando o actual primeiro-ministro detinha a pasta do Ambiente. Estávamos em 2001 e a empresa privada que pretendia construir um outlet comercial no terreno onde ele hoje se encontra desesperava por não conseguir a devida autorização. A razão número um para o impedimento oficial residia no facto de uma parte da área prevista estar inserida na Zona de Protecção Especial do Estuário do Tejo. Duas vezes o projecto foi chumbado. A zona de Alcochete, graças à então recente construção da Ponte Vasco da Gama, estava a ser muito requestada. O Ministério do Ambiente mostrava-se irredutível.
Em 2002, já com o governo de António Guterres periclitante, a empresa terá conseguido, através da intervenção de um familiar do ministro, um contacto directo com o Ministério do Ambiente e, poucos dias antes de o novo governo de Durão Barroso (PSD) tomar posse, i.e. em período em que o governo socialista era apenas gestionário, o licenciamento surgiu, aliás com alguma alteração dos limites da Zona de Protecção Especial.
A firma em questão é britânica. O fisco inglês, ao verificar a sua contabilidade, deparou com uma verba avultada destinada a pagar serviços em Portugal. Pediu a intervenção da justiça portuguesa para apurar a quem se destinaria aquela verba. A possibilidade de corrupção existe. Mesmo que nada se apure, politicamente a imagem do actual primeiro-ministro já saiu manchada. Esta mancha só se apagará se a justiça conseguir provar que ele não esteve envolvido em qualquer acção da qual resultassem luvas.
Este resumo serve apenas para situar melhor o caso, que tem a ver com o facilitismo ético que é há muito notório na sociedade portuguesa. Se prestarmos alguma atenção a determinados nomes, veremos que muitos deles decidiram fazer da política a sua carreira. Há quantos anos conhecemos pessoas como Pedro Santana Lopes, Jaime Gama, Cavaco Silva, Francisco Louçã, Luís Fazenda, Manuel Alegre, José Sócrates, Paulo Portas, Nobre Guedes, João Soares, Manuel Maria Carrilho, Rui Rio, Isaltino Morais, Valentim Loureiro, Bagão Félix, Jorge Lacão, Alberto Martins, António José Seguro, Alberto João Jardim, Helena Roseta, Ana Gomes, António Costa, Vera Jardim, Fernando Negrão, Mota Amaral, Honório Novo, Aguiar Branco, Telmo Correia, Luís Filipe Menezes, Manuela Ferreira Leite, Pedro Passos Coelho, Vitalino Canas, Luísa Mesquita, José Lello, José Magalhães, Manuela de Melo, Strecht Ribeiro, Bernardino Soares, António Vitorino, Vítor Ramalho e tantos outros cujos nomes não me ocorrem no momento?
Com outras ocupações, mas mesmo assim algo interventivos nos media e em empresas, encontramos os conhecidos Mário Soares, Jorge Sampaio, Pinto Balsemão, António Guterres, Maria de Belém, Almeida Santos, e ainda Dias Loureiro, Armando Vara, Jorge Coelho, Joaquim Pina Moura, Marcelo Rebelo de Sousa, Rui Machete, Miguel Cadilhe, Vítor Constâncio, Ferreira do Amaral, Ângelo Correia, Marques Mendes, Odete Santos, Roberto Carneiro, David Justino e mais uns tantos.
Tal como sucede com os treinadores de futebol, um percalço mesmo sério a qualquer um deles não resulta em eliminação. São-lhe dadas uma segunda e uma terceira oportunidades.
Acontece que, aos poucos, vamos adquirindo a patética noção de que os jogadores são sempre os mesmos. Num "tempo de mobilidade" - é assim que a cartilha do politicamente correcto fala aos jovens - deparamos com muita imobilidade na classe política. Porquê?, perguntamo-nos. Os amantes do futebol lembram-se que, quando não há jogadores nacionais suficientemente bons, se importam estrangeiros. Na política não se podem contratar estrangeiros, mas não deixa de ser verdade que está a tornar-se urgente uma hemodiálise no sector. Pergunta-se: os anos de prática dão aos políticos que os possuem mais experiência ou, fundamentalmente, uma componente maior de manhas e artimanhas? A resposta não é fácil. Deixo-a ao leitor.
Dado que frequentemente sucede que, para subir na vida política, se torna necessário recorrer a favores, os quais deverão ser eventualmente pagos quando a pessoa alcançar o lugar que pretende, existe todo um conluio de interesses entre vários políticos, por vezes de partidos diferentes. Como os socialistas e os sociais-democratas são os que mais alternam no poder, são eles também aqueles que mais dispensam favores. Do CDS, que esteve aliado aos sociais-democratas no governo, conhecem-se vários "alegados desmandos" que se tornaram célebres com assinaturas ministeriais à pressa como as de Telmo Correia "alegadamente" a despachar celeremente processos como os do Casino Lisboa. O caso Portucale também ficou famoso por licenciamento aparentemente pouco ético.
Quando a descoberta destas coisas acontece a partidos já fora do governo, a penalização é relativamente pequena. É, naturalmente, maior quando atinge um governo em pleno mandato e, ainda mais, em ano de eleições. Mas não há fumo sem que haja algum fogo. Portanto...
A minha experiência profissional está intimamente ligada a escolas de ensino superior, tanto privadas como públicas. Considero ambas, de certa maneira, microcosmos daquilo que, com outra dimensão, se pratica governamentalmente. Um exemplo: pretende-se que a escola contrate um docente filho de boas famílias e amigo de alguém com posição na escola? Recomenda-se o indivíduo ao Conselho Científico, com todos os encómios possíveis. Será "uma óptima aquisição." Em princípio ninguém se oporá por não conhecer a pessoa e a recomendação vir de quem vem, mas haverá quem pense que aquela é uma entrada pela porta do cavalo. É difícil dizer "não". Quem o fizer, terá o proponente a colocá-lo na sua lista negra. Posteriormente, sai em acta que, o C.C. decidiu, "a título excepcional", admitir o Mestre Luís Miguel Mascarenhas para o Departamento… Uma variante muito comum é (era?) "Por conveniência de serviço" foi transferido para... "
Os membros da escola que entendem que existe pouca transparência nestas "conveniências de serviço" e que possuem a ambição de vir um dia a ocupar cargos directivos apressam-se a guardar cópias das actas que registam essas nomeações. Ser-lhes-ão eventualmente úteis como precedentes - os tais que podem valer mais que presidentes.
Os ministros e os secretários de Estado experientes fazem o mesmo. Lembram-se dos milhares de fotocópias que Paulo Portas mandou tirar antes de abandonar o seu ministério na última vez que esteve no governo?
Este tipo de atitude mostra experiência, sem dúvida, mas tende a colocar a pessoa ou o partido acima do interesse público. Constitui um escudo, mas este escudo, que serve para defesa, oculta também do público aquilo que deveria ser transparente.
O que mais me impressiona neste caso do licenciamento do Freeport acaba por ser o facto de que, se ocorresse hoje, não enfrentaria o mesmo número de problemas. A "experiência" governamental fez criar a figura do "Projecto de Interesse Nacional", convenientemente conhecido apenas pela sua mais ou menos hermética e bem soante sigla: PIN. Se o Conselho de Ministros declarar que um projecto possui interesse para a nação, pronto, o licenciamento será efectuado. Corre-se o pano. O problema é que isto não é tão democrático como deveria ser. Não é feito às claras, com discussão prévia em que participe a muita badalada "sociedade civil". Infelizmente, lembra manobras de antes do 25 de Abril. Este é um dos males das maiorias absolutas. Relembremos a clássica frase (1887) de Lord Acton: "Power tends to corrupt and absolute power corrupts absolutely."
A terminar, duas considerações. 1: O economista Paulo Trigo Pereira, investigador do ISCTE, acaba de apresentar no seu livro O Prisioneiro, o Amante e as Sereias, um estudo sobre o grau de democracia em 26 países diferentes. Embora atente principalmente na natureza dos boletins de voto e nos referendos, Trigo Pereira conclui que Portugal é, depois da Holanda e de Israel, o país com menor liberdade de voto. Acrescenta que o modelo português "é absurdo" e revela uma "má qualidade da democracia”. Terá isto a ver com a crescente abstenção que se regista em actos eleitorais no nosso país?
2. Dada a insistência nas notícias que têm como alvo o primeiro-ministro, ninguém pode duvidar que estamos em presença de uma realidade factual muito empolada como campanha pessoal contra José Sócrates. Em ano de eleições, é natural que isso suceda nos meios de comunicação de países que vivem em regime de democracia. Contudo, se a campanha for exageradamente longa e nada de concreto se provar contra o primeiro-ministro, este, de abalado no presente, fica com uma vantagem notória para a campanha eleitoral. Do azar de ter tido nos últimos dois anos do seu mandato uma crise global de todo o tamanho, pode aproveitar a crise, como aliás já tem feito, não só para encobrir pontos fracos da situação económica e financeira do país como ainda para realçar os problemas por que passam actualmente países que estavam, em princípio, mais bem apetrechados que Portugal. É assim a política.

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