2/27/2009

Avaliação do desempenho

O jornal de ontem trouxe a notícia do despedimento de um conhecido jornalista do Diário de Notícias: Alfredo Mendes, um homem do Porto. Não foi na altura o único a ser despedido. Estava englobado num pacote de mais 121. "Fui despedido num minuto e meio – dois minutos, vá lá."
Desde 1977 que trabalhava no DN, onde teve oportunidade de fazer de tudo. Desporto, cultura, política, economia. Percorreu todo o Norte. Fez desde o bairro da lata atè à alta sociedade. Foi a inúmeras recepções em representação do jornal.
Nas palavras do próprio Alfredo Mendes: "Dediquei-me mais ao jornal do que à família e aos amigos. Tenho provas. Tenho os recortes de tudo o que escrevi. E agora? Como digo aos meus filhos para serem trabalhadores leais, para viverem para a empresa? Isto é tão humilhante, tão revoltante!"
Pessoalmente, também considero o mesmo. É um caso que humilha e que revolta.

A moral extraída de uma história que me foi enviada em e-mail por um amigo aplica-se, de certa maneira, ao caso. Vou reproduzir a história, com a devida vénia a quem a redigiu.
O dono de um talho foi surpreendido pela entrada de um cão na sua loja. Enxotou-o, mas o cão voltou a entrar. Ao enxotá-lo de novo, reparou que o bicho trazia um bilhete na boca. Pegou no bilhete e leu: "Mande-me uma dúzia de salsichas e uma perna de carneiro."
Mirando melhor o cão, viu que o animal trazia na boca uma nota de €50. Aviou o cão e pôs-lhe o saco de compras na boca, mas estava tão impressionado com a cena que deixou depois o empregado a tomar conta do talho e resolveu seguir o cão. Este desceu a rua e dirigiu-se à paragem dos autocarros. O talhante estava perplexo!
Na paragem, o cão observou o painel dos horários e sentou-se no banco, aguardando o autocarro…
Chegou entretanto um. O cão deu uma breve corrida à frente para verificar o número de destino do autocarro e voltou a sentar-se no banco.
Chegou novo autocarro. Depois de verificar que aquele era o que devia tomar, entrou.
De boca aberta, o talhante entrou também, para continuar a seguir o cão. Algumas paragens à frente, o cão firmou-se nas patas traseiras e carregou no botão de stop. Sempre sem largar da boca o saco das compras.
Apeados, talhante e cão caminharam por uma rua fora. O cão parou em frente à porta de uma casa. Depositou o saco de plástico das compras no passeio. Deu uma meia-volta, correu e atirou-se contra a porta. Como ninguém viesse abrir, repetiu o acto.
Então, contornou a casa, saltou um muro e, numa janela, começou a bater com a cabeça no vidro várias vezes. Regressou depois à porta.
Apareceu finalmente um indivíduo enorme, que começou a bater no cão. Indignado, o talhante correu para o homem, tentou impedir que ele continuasse a bater no bicho, e disse-lhe:
- Ó homem, que está você a fazer? A bater num cão tão inteligente! Ele é um génio!
O homem respondeu de pronto:
- Um génio?! Francamente! Já é a segunda vez esta semana que o estúpido deste cão se esquece da chave!

Moral da história: Bem podes continuar a exceder as expectativas de outrem! A tua avaliação depende sempre da competência de quem te avalia!

Se calhar, não é só ao caso do jornalista Alfredo Mendes que esta conclusão se aplica.

2/25/2009

Estarão os jornais condenados a desaparecer?

Quando se pergunta a alguém para que servem os jornais, a resposta mais comum será: para saber as notícias. Contudo, estou em crer que os jornais interessam cada vez menos pelas notícias que trazem e mais pela forma como as enfeitam e apresentam. Hoje em dia, para muitas pessoas as novidades realmente em primeira-mão ou são vistas na televisão ou lidas primeiro na Net. Um número significativo das pessoas que compram o jornal regularmente possui também um computador com ligação à Internet, na empresa ou em casa, ou em ambos os lados. E isso é importante?
Muito, de facto. Se eu precisar de saber como vai estar o tempo amanhã, ligo o computador e, num site que contém a meteorologia, imensos jornais on-line, farmácias de serviço, cinemas, teatros, exposições e mais não sei quantos outros serviços, encontro não só a temperatura prevista para hoje como também para amanhã e depois. Quanto me custa? Praticamente nada. Dentro da minha assinatura com um servidor que cobra um preço de cerca de 80 cêntimos por dia, o que é perfeitamente razoável, está incluído todo um vasto manancial de informação, a que junto a possibilidade de enviar o número de cartas (e-mails) que pretender a amigos e conhecidos e deles receber as que quiserem enviar. Pode ser para e do Japão, América, Brasil ou Portugal. Não tenho outros encargos. Não gasto envelopes nem selos, não tenho que me deslocar aos correios, não tenho que estar em bichas.
Mais: quando preciso de uma informação, eu que durante anos procurava aquilo de que necessitava numa das duas grandes enciclopédias que possuo - a Luso-Brasileira em 20 e tal volumes, e o Grand Larousse em 11 volumes - agora só muito esporadicamente as uso. Não preciso. Com a mesma barateza referida, posso consultar milhares de documentos na NET, que num ápice me dão geralmente a informação de que preciso. A custo zero. Para estudos mais aprofundados, consultarei os livros das minhas estantes - que estão em base de dados - ou darei um salto a uma biblioteca.
Já se percebeu que, em minha opinião, um dos grandes problemas da concorrência que os jornais diários têm que enfrentar é o facto de a Net ser incrivelmente barata. Às vezes questiono-me como é possível que eu seja utilizador de um blog há mais de 5 anos e não tenha tido até agora qualquer custo. Se neste mundo ninguém dá nada a ninguém, há aqui qualquer coisa que não bate certo. E o blog em que participo e em que agora estou a colocar este texto não faz publicidade absolutamente a nada. Custa a acreditar. Too good to be true, mas é mesmo verdadeiro.
Há cerca de dois anos, notei que o meu jornal habitual já não me fornecia a informação sobre a bolsa de valores a que eu costumava dar uma vista de olhos. Inquiri junto de um banco por que motivo já não enviavam a informação habitual para a imprensa. "Porque temos toda essa informação na Net", disseram-me. E lá estava, de facto. Menos um serviço prestado pelos jornais, uma receita a menos para eles e mais uma borla para mim e todos os restantes utentes. Se quiser, logo de manhã e com um simples toque do rato, encontro, por exemplo, nas páginas do BBC News um resumo consistente de toda a informação financeira. E actualizado.
Perguntar-me-ão: então porque se compra ainda o jornal? A resposta é simples: por força do hábito já talvez convertido em vício, e também certamente devido a inteligentes artigos de opinião que lá encontramos, ao gosto de sentir nas mãos o toque do papel, ao prazer de passar o jornal para os outros membros da família que a ele estão habituados, ao passatempo de fazer um sudoku ou umas palavras cruzadas, e ainda porque o jornal tem alguns assuntos que gostamos de guardar para futura referência. Presentemente, o meu jornal custa o mínimo de €1 e o máximo de €1,5.
Há muitos anos perguntava-se de brincadeira: qual é grande mal do século? A resposta era "o Diário de Notícias". De facto, "O Século" era o nome do jornal rival do DN. Poder-se-á hoje dizer que a Net é o grande mal dos jornais? Em parte, sim. Contudo, também é um facto que os grandes jornais têm todos uma edição on-line. E isso é bom ou mau? Para o leitor é bom; para os jornais impressos, não estou tão seguro. Na medida em que essa edição on-line inclui por vezes artigos de opinião acessíveis mesmo aos não-assinantes, o interesse dos assinantes on-line obviamente diminui. Poderão assinar o jornal durante algum tempo, depois tenderão a não renovar a assinatura. Logo, aqui o "bipé" assinatura / publicidade tende a funcionar pouco. Ao permitirem os comentários a notícias por parte de leitores mesmo que não sejam assinantes, o jornal pratica a mesma política de acessibilidade. Verifico, por exemplo, no Público on-line que há notícias que recebem dezenas e mesmo mais de uma centena de comentários, conquanto haja vários das mesmas pessoas. Isso mostra que há muita gente interessada na edição on-line, mas será que são pessoas interessantes para a publicidade que o jornal pretende angariar graças à possibilidade de mostrar que tem esse grande leque de leitores? Se se der uma olhadela aos comentários, verificar-se-á que são em grande número sobre futebol e que em muitos casos são redigidos por pessoas com um baixíssimo nível cultural. Serão elas um bom público-alvo para a publicidade?
Algo que corrobora a efectiva concorrência que a Net faz aos jornais é o facto de na Ásia, v.g. na China, Índia e Indonésia, a tiragem dos jornais continuar a aumentar. Ora, nesses países a Internet ainda não está muito difundida. Um exemplo concreto é o da Índia, onde existem 180 milhões de assinantes de jornais diários e apenas 12 milhões de assinantes da Internet. Logo que o número destes últimos aumentar, decerto que os assinantes da imprensa irão diminuir.
Para complicar ainda mais a situação dos jornais diários, surgiram os jornais grátis, que vivem exclusivamente da publicidade que conseguem angariar. São todos matutinos. A sua distribuição gratuita atrai os muitos commuters que vêm para a cidade. Na medida em que trazem as notícias principais, seja sobre política, seja sobre desporto, tornam-se satisfatórios para muitas pessoas que não estão dispostas a pagar €1 por qualquer um dos outros jornais. Com uma redacção e uma distribuição low-cost, esses jornais conseguem sobreviver e oferecer alguma concorrência aos diários regulares.
É claro que existe ainda uma geração dos mais velhos que não passa sem o seu jornal. Por outro lado, se o orçamento pessoal baixa consideravelmente - devido a desemprego, reformas e coisas do género - , é a frequência com que se compra o jornal que pode ficar afectada: em vez de diariamente, passa-se a comprar o jornal apenas à segunda e ao sábado ou domingo.
Dado que as receitas dos jornais assentam num banco de três pernas - (1) vendas nos quiosques e nas papelarias, (2) assinaturas e (3) publicidade -, quando uma das pernas do tripé falha, ficamos com um banco desequilibrado. Não é fácil endireitá-lo.
Foi Warren Buffett, um famoso homem de negócios que tem à sua conta uma boa fatia das acções do Washington Post, que recentemente comentou: "Os leitores de jornais estão já a caminho do cemitério, enquanto que são os não-leitores que estão a sair da universidade. É difícil fazer dinheiro num negócio que está em permanente declínio."
Será mesmo assim?

2/24/2009

Língua e cultura




Como todos sabemos, a cultura de um determinado país tem sempre aspectos em que difere da de vários outros. Se questionarmos um grupo de portugueses a respeito dos ingleses, inquirindo se estes são mais quentes e calorosos ou mais frios do que nós, quase em 100 por cento dos casos receberemos a resposta de que eles são mais frios. De onde nos vem a noção de que nós somos mais calorosos e, eventualmente, mais efusivos? Em grande parte de um conjunto de pormenores, onde decerto se inclui a distância a que falamos e a gestualidade que empregamos.
Os falantes de língua inglesa, aí incorporando a maioria dos americanos, evitam geralmente o contacto corporal ao falarem uns com os outros. Quando são forçados a ficar muito juntos, como frequentemente sucede num elevador, ficam com os músculos tensos, evitam contactos através do olhar e permanecem em silêncio. Mesmo os casais têm uma tendência para não se tocarem.
Os utentes da língua inglesa mantêm geralmente entre si grandes bolhas de espaço, e esperam que os outros as respeitem. Detestam sentir o calor ou o cheiro do corpo de outra pessoa, ou ter a salivação do outro em "gafanhotos" atirada ao rosto durante uma conversa (nós também não gostamos, pois não?). Sempre que outras pessoas se aproximam demasiado, eles recuam, colocam a cabeça para trás, cruzam os braços em frente do peito ou arranjam outras barreiras. Não se trata verdadeiramente de frieza ou de falta de educação. Estão apenas a seguir as regras da sua própria cultura.
A que vem este arrazoado? Basicamente pretendo apenas construir uma pequena ponte entre esta distância social e as línguas que são faladas, neste caso por portugueses e por ingleses. Como responderia o leitor a esta questão: um possessivo, geralmente expresso pela preposição "de", é mais quente ou mais frio do que uma preposição de lugar? Embora tudo na vida seja controverso e permita outros ângulos de observação, por meu lado estou em crer que o possessivo é mais quente e subjectivo, enquanto a preposição de lugar é mais fria e objectiva.
Há dias, quando passei pelo Largo do Dr. José de Figueiredo, às Janelas Verdes - o Dr. J. Figueiredo, falecido há 71 anos, foi o primeiro director do Museu Nacional de Arte Antiga - chamou-me a atenção a placa identificadora do largo. Porquê "do", como a foto mostra, e não apenas "Largo Dr. José Figueiredo"? Embora a placa também pudesse deixar de fora o "do", creio que a melhor resposta é: porque estamos em Portugal e não estamos noutro país. Temos a nossa cultura própria. O "do" familiariza a pessoa, o largo é dele, o antigo director que toda a gente da zona se habituou a ver durante anos e anos. Ele é o dono do largo. Este nome não é um simples identificador, um qualificativo. Representa a posse.
Este conceito de posse nem sempre é fácil para quem aprende inglês. Alunos meus com conhecimentos do idioma muito razoáveis gostavam de chamar ao famoso templo romano de Évora Diana’s Temple, o que estaria correcto apenas se o templo pertencesse a uma pessoa chamada Diana. Só que esta era uma deusa e o templo lhe era, eventualmente, apenas dedicado, o que o torna simplesmente Temple of Diana.
Ora, este assunto é interessante noutros domínios linguísticos. Tomemos, por exemplo, um filme bem conhecido dos cinéfilos que vão ao cinema há muitos anos: "A Ponte do Rio Kwai". Qual será o título do original inglês? The Bridge of the River Kwai? Não. Temos que transpor a cultura, tal como a ponte transpõe o rio: The Bridge on the River Kwai.
Será este um acaso? Claro que não. Qualquer terra portuguesa com necessidade de um identificador ou determinativo escolhe a preposição "de" para anteceder esse identificador: Ferreira do Zêzere, Figueira da Foz, Viana do Alentejo. Em inglês, guarda-se outra distância e prefere-se em vez da posse uma preposição de lugar, neste caso significando "sobre": Newcastle-upon-Thyne, Stratford-on-Avon. Tanto Newcastle como Stratford são cidades em que passam, respectivamente, o Thyne e o Avon. Aliás, em alemão e em francês faz-se o mesmo: Frankfurt-am-Main (Frankfort do Meno), Köln-am-Rhein, Rüdesheim-am-Rhein, Auvers-sur-Oise, Méry-sur-Oise, Tournon-sur-Rhône, Étoile-sur-Rhône, Châtillon-sur-Seine, Neuilly-sur-Seine, etc.
Creio ter já contado neste mesmo local algo que se passou comigo há cerca de um ano. Mãe e filha brasileiras interpelaram-me, relativamente perto de minha casa, para me perguntarem se aquela era a "Rua do Dr. Afonso". Com um forte sotaque brasileiro, aquele "Dr. Afonso" pareceu-me algo estranho, mas ao mesmo tempo muito engraçado. Elas apontaram-me para uma placa na parede de um prédio, por cima das nossas cabeças. Olhei. Sorri para mim mesmo e foi com gosto que confirmei a suposição das duas brasileiras. Estávamos na Alameda Afonso Henriques. Aquele "Dr." para o nosso primeiro rei era tão carinhoso! E, repare-se, "do Dr. Afonso"!
Dentro da linha de subjectividade / objectividade, parece-me que os portugueses gostam de pessoalizar mais as coisas do que os ingleses. Em contraste com a língua inglesa, por exemplo, nós animamos os objectos, quase que considerando que eles possuem uma vontade própria. Quando dizemos "a porta fechou-se", "a janela abriu-se" ou "a jarra partiu-se", emprestamos aos objectos este "se" que lhes dá alma. Em inglês, com uma objectividade diferente, dir-se-á apenas the door closed, the window opened, the pot broke.
Estas diferenças culturais e, nomeadamente, linguísticas dariam pano para mangas. Dada a natureza de um blog, fiquemos hoje por aqui.

2/21/2009

De novo, questões éticas e de justiça

Muito recentemente, John DiCicco, que ocupa um lugar proeminente na Justiça dos Estados Unidos, afirmou o seguinte: "At a time when millions of Americans are losing their jobs, their homes, and their health care, it is appalling that more than 50,000 of the wealthiest among us have actively sought to evade their civil and legal duty to pay taxes".
Esta fortíssima afirmação referia-se a um número significativo de americanos possuidores de grandes fortunas que colocaram o seu dinheiro em filiais americanas do UBS (banco que resultou da fusão entre a Union de Banques Suisses e a Societé de Banque Suisse), com a óbvia finalidade de se eximirem ao pagamento dos impostos que era de seu direito e dever efectuarem. É gratificante ver que na América ainda se considera esta fuga aos impostos que são devidos - e essenciais para o bem de toda a sociedade - como um comportamento altamente criticável, revelador de falta de ética. Por estas razões, a que se junta o sigilo bancário suíço, o caso UBS vai, obviamente, dar muito que falar.
É evidente que grande parte do mundo está, infelizmente, cheio de casos destes. Este blog tem feito eco de alguns desses casos, como por exemplo aquele que resultou da descoberta da colocação de largos montantes de dinheiro alemão - e escandinavo - no Liechtenstein. É também verdade que os EUA têm tido casos imensamente deploráveis, desde os múltiplos escândalos bancários até ao caso Madoff e, mais recentemente, ao caso do bilionário texano Allen Stanford.
Ainda nos Estados Estados Unidos, o dinheiro público que foi usado para subsidiar bancos em alto risco de sobrevivência, está a ser alvo de apertado controlo estatal, como é compreensível. Quando oito CEOs de bancos que foram intervencionados pelo Estado americano num total de cerca de 165 biliões de dólares tiveram que responder perante o Congresso a perguntas tais como "Nos últimos seis meses, quanto do seu próprio dinheiro é que investiu no banco?", houve cinco que admitiram que não tinham adquirido uma única acção. Sem comentários!
O clássico ideal americano rege-se, de há muito, pela conjunção da riqueza e da virtude. Poder-se-á dizer que "ser rico e virtuoso" constitui uma mera utopia? Mesmo na nossa sociedade, que sofreu nas últimas décadas profundas transformações, há numerosos casos que provam o contrário. Ser apenas rico tem o valor que tem, mas não preenche de maneira nenhuma o ideal. A virtude tem que acompanhar a riqueza. Essa virtude inclui, como facilmente se entende, integridade de carácter e preocupações sociais.
No nosso país, aparentemente o único caso que até ao momento teve algumas consequências foi o do antigo secretário de Estado para os Assuntos Fiscais de um dos governos de Cavaco Silva - Oliveira e Costa -, devido à forma como administrou o Banco Português de Negócios (BPN). Acontece que o BPN foi entretanto nacionalizado, o que significa que são os contribuintes portugueses que poderão, injustamente, vir a arcar com todo o seu passivo. É perfeitamente intolerável que se saiba já há meses que a administração de Cadilhe detectou pagamentos mensais de montantes elevadíssimos a pessoas ligadas à administração do banco, pagamentos que estiveram longe de ser apenas para salários. Houve, segundo a imprensa, levantamentos da ordem dos 50 mil, 100 mil euros, 200 mil euros e até 300 mil euros. Entretanto, e sem qualquer estranheza, o banco apresenta-se com problemas gravíssimos para com o IRS e a Segurança Social. Então, e em face da situação nada se faz? Não há culpados? Ou a culpa dos culpados será paga apenas com o dinheiro dos impostos dos contribuintes zelosos? Estaremos perante uma estranha versão das linhas do Pai-Nosso "perdoai-nos, Senhor, as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos nossos inimigos".
O historiador Oliveira Martins conta-nos que o infante D. Pedro terá dito ao seu irmão e rei D. Duarte algo como "Justiça que demora, quando chega já não é justiça para ninguém." Tinha toda a razão D. Pedro. A administração de justiça, correcta e célere, é parte integrante da democracia, a qual está longe de se reduzir à colocação de um voto numa urna.
Os nossos governantes estão perigosamente enganados se crêem que não há muitos portugueses a pensar. E, no âmbito daquilo que pensam e ouvem reportar, cogitam naturalmente sobre as suspeitas que recaem sobre o eventual comportamento pouco ético do próprio Primeiro-Ministro no caso Freeport e sobre a presença no Conselho de Estado de um antigo administrador do BPN, também ele alvo de fortes dúvidas quanto ao seu comportamento no que concerne ao banco. De tudo, e este "tudo" inclui uma escandalosa impunidade que se acumula – a tal "justiça que demora" -, resulta uma seriíssima descrença no sistema. Pergunta-se: quem, de entre os membros de topo da classe política, tem voz suficientemente forte e "folha limpa" para poder falar em Portugal com a justeza do acima referido magistrado John DiCicco? E, já agora, passar depois das palavras aos actos?

P.S. A confirmar-se, a nomeação pelo Banco de Portugal de João Ermida para a administração do BPP é um passo interessante no sentido de avocar a ética.

2/17/2009

Um poeminha re-encontrado

Recentemente, pediram-me para arrumar uns tantos papéis, na sua maioria guardados em micas, que estavam há largos anos numa arrecadação dentro de um saco de plástico. Tive a sempre grata sensação de re-descobrir coisas de que já não me lembrava, atirar uma série de inutilidades para o lixo e recuperar outras coisitas que julgava perdidas. Uma destas foi uma folha A-4 dactilografada, contendo um pequeno poema numa forma poética não muito canónica – mas que serve para o efeito – sobre uma "alma ruim e cruel". Ao lado está uma data, a tinta: 1970. Reproduzo-o aqui, porque pode ser de interesse coleccionável para algum leitor.

A VIAGEM TÃO DESEJADA

Alma ruim e cruel que enfim partiste
Tão tarde, diz o povo descontente
Repousa lá no inferno eternamente
Que nenhum português ficará triste.

E, se lá no inferno onde subiste
Memórias deste mundo se consente,
Não esqueças a tua lusa gente
A quem tão mau trato infligiste.

E, se vires que podes compensar
De algum modo a dor que nos causaste,
Reza a Deus em quem sempre confiaste
Que bem cedo te faça acompanhar
Da corja de bandidos que deixaste.

2/15/2009

Da corte à corte


Quem visita terras do Norte, seja na Beira, em Trás-os-Montes ou no Minho, pode encontrar ainda em várias casas antigas e rústicas a "corte das vacas" e o "cortelho dos porcos". A pronúncia é com o fechado (ô), como em porto. (A foto, tirada em Monsanto há uns bons anos, mostra um cortelho construído ainda à boa maneira celta, com pedra e telhado de colmo.)
Uma consulta a um dicionário explicar-nos-á que a origem reside em cohort ou cohors, palavra latina que nos dá a ideia de algo perto da casa (co-), tipo-anexo, mas fora dela (cf. hors francês, como em dehors ou hors-concours), dentro de um espaço murado. Do hort nasceram a horta e os produtos hortícolas.
Numa época mais avançada, os castelos e os palácios possuíam também espaços rodeados por muros dentro da sua área - cortes. Daqui adveio o facto de os reis e os nobres serem os herdeiros naturais da palavra "corte", que passou a estar relacionada com duas coisas distintas: (1) a vida palaciana e (2) a administração da justiça. Esta última cabia basicamente aos monarcas e aos nobres que fossem autorizados pela coroa a administrá-la. Tinham o pelouro da justiça, de onde derivam os pelourinhos.
Da corte vêem os cortesãos, termo que não tem qualquer conotação negativa, ao contrário do que sucede com as cortesãs, que não se livraram da fama de mau comportamento tipo dorme-com-um, dorme-com-outro (com humor, os franceses designaram algumas delas que possuem nomes mais famosos como sendo "les grandes horizontales"). Das cortesãs e dos cortesãos vêm as cortesias, aqueles salamaleques (estes vêm do árabe salam alec! a que se responde com alec salam!) típicos dos palácios. A propósito de palácios, foi deles que vieram também os bobos que, por divertirem a corte no palácio, sobreviveram até hoje com o nome de "palhaços". Hoje actuam mais no circo ou na televisão.
O court de ténis ou de badminton vem da corte inicial, no sentido de terreiro.
Na língua inglesa, court significa tanto a corte como os tribunais (a alusão à administração da justiça acima referida) que são Law Courts ou Courthouses. Quando muitos filmes americanos nos trazem o court martial, estão natural a referir-se a um tribunal militar, conselho de guerra, conotado com o mais bélico dos deuses – Marte (que produziu Março, o mês em que se pode dar início às campanhas militares, depois dos Invernos que são impróprios para grandes marchas).
Na língua alemã, a ideia inicial de corte foi traduzida pelo substantivo Hof, que se usa por exemplo para Hühnerhof (galinheiro, capoeira), para pátio, terreiro ou área reservada como Bahnhof (estação de caminho de ferro) e, naturalmente, para corte real. Um Hofburg é um palácio imperial, uma Hofdame é uma dama de honor, um Höfling um cortesão e ser höflich é ser cortez.
Das galinhas às cortesãs, dos animais ao homem, do campo à cidade, do palácio à justiça, creio ser sempre interessante acompanhar a viagem das palavras.

2/13/2009

A ironia das coisas

A presente crise financeira pode levar vários países do mundo a cair no auto-proteccionismo do seu comércio, que assim substituiria o habitual comércio livre. Foi nesse sentido, aliás, que o novo governo norte-americano propôs uma série de medidas encadeadas no slogan "Buy American". O slogan só por si não quereria dizer muito, mas a criação de incentivos fiscais para quem comprar produtos americanos já quer.
Como é óbvio, uma medida deste tipo, a ser tomada, não só violaria leis internacionais como provocaria retaliação por parte de vários países. Mas há mais. Um produto importante para vários tipos de indústria é o aço. Se os cidadãos dos Estados Unidos fossem forçados a comprar aço americano, o irónico da situação residiria no facto de que as principais siderurgias em solo da América estão de facto em mãos estrangeiras. Dois terços da produção de aço são pertença de capitais britânicos, brasileiros, suecos e… russos!
Em Portugal, o primeiro-ministro declarou-se contra o proteccionismo e a favor da continuidade do mercado livre. Só lhe fica bem. Será que ele previamente equacionou a questão e verificou que uma parte substancial da nossa indústria também pode estar em mãos estrangeiras?

2/11/2009

O PIBismo

Peço desculpa por estar há já algum tempo aparentemente a bater na mesma tecla. Creio, no entanto, que haverá sempre algo de novo em cada um destes posts. O PIBismo, i.e., o culto do PIB (Produto Interno Bruto), tornou-se quase uma religião para muitos fanáticos. Muitos já o contestaram. Com toda a razão, proclamaram que nem só de PIB vive o homem, e esta não é apenas uma tirada a jogar com palavras. Perguntemo-nos: fundamentalmente, a quem interessa o PIB?
À primeira vista, dir-se-á que o palavreado imenso sobre o PIB do país A e do B foi gerado pelos próprios países. Permito-me duvidar, muito embora admita que os governos gostem de se referir ao PIB, nomeadamente quando ele está a crescer. Mas será que o PIB per capita nos dá uma ideia concreta da riqueza dos habitantes de um país? Certamente que não. Diz-nos qual foi a produção interna de um país, mas nada nos refere sobre a distribuição da riqueza que teve origem nessa produção. Para isso, devemos usar o índice de Gini, que é de facto apropriado.
Penso que o PIB, que era uma medida há muito usada pelos economistas, começou a ser largamente propagado nos media com o advento das grandes multinacionais e do seu comércio global. Porquê? Fundamentalmente porque é uma medida que interessa sobremaneira às multinacionais. Estas estão interessadas na sua produção à escala global e estão-se positivamente nas tintas para quase tudo o resto. Mais: não lhes interessa falar nem de países, nem de culturas diferentes. Estas então menos que tudo: as multinacionais não pretendem barreiras culturais. Para elas, interessa a produtividade, a relação entre a produção e o seu custo.
Também para elas, os países são basicamente os locais físicos onde a produção tem lugar e mais nada. Tipicamente, o neo-liberalismo - hoje falido? - tabela os países de acordo com o seu PIB e, depois, compara-os frequentemente com a facturação de multinacionais. Não inocentemente. As pessoas que laboram e realizam a produção não contam verdadeiramente. Operários de pele branca podem ser perfeitamente substituídos por operários de pele amarela, se isso convier ao capital. Se são mais pobres e aceitam salários mais baixos, as multinacionais põem os seus assessores de R.P. a lembrar que até estão a ajudar essas pessoas a sair da sua condição de pobreza. Mas esta, como todos já entendemos, é apenas a treta do costume para justificar durante alguns anos a exploração de homens, mulheres e, em determinados casos, de crianças. Também quando se instalam num determinado país, o primeiro argumento utilizado pelas multinacionais e, simultaneamente, pelos governos que as autorizam, é a criação de postos de trabalho. Dir-me-ão: mas isso não conta? Conta! Para os governos, pessoas com emprego pagam impostos e as empresas fazem as correspondentes deduções fiscais. É riqueza acrescida, que o PIB depois traduz. E não haverá mais nada? Será que as multinacionais não trazem o apport de novas técnicas e uma moderna metodologia de trabalho que constitui uma poderosa mais-valia para o país e, por exemplo, para engenheiros saídos das escolas? E será que as pessoas que trabalham nas multinacionais as amaldiçoam ou, pelo contrário, as apreciam na medida em que através daqueles empregos conseguiram sair de ocupações mais duras e sem remuneração tão visível? Se não tivessem utilidade, por que motivo seriam as multinacionais tão choradas por aqueles que se vêem agora desesperados e sem emprego? Tudo isto é verdade. É algo que se pode consubstanciar na clássica frase "é bom enquanto dura". Ou, pelo menos, não é mau enquanto dura. Contudo, a maioria das multinacionais que se instalam em países como Portugal usufrui de vastos subsídios e faz contratos leoninos. As garantias que deixam são pequenas. São um corpo com a cabeça algures noutros locais. A sua produção destina-se geralmente à exportação, no total ou quase, e não ao país onde os produtos são fabricados.
E, já agora, uma pergunta: os lucros são também exportados? Ora, esse é um dos aspectos mais relevantes. Sim, de facto se as multinacionais não fizerem qualquer reinvestimento, v.g. para alargamento de instalações, os lucros saem do país. É esta a razão por que muitos economistas insistem na necessidade de grandes empresas, mas de preferência nacionais.
Então, levantemos agora uma questão: se os lucros são exportados mas fazem parte do PIB, chegamos à conclusão de que este é parcialmente enganador. A ser assim, precisamos de um outro indicador que seja mais fiel à verdade. Encontramos outro, mas que é tão pouco propagandeado nos media como o índice de Gini: o Rendimento Nacional Bruto (RNB). Interroguemo-nos: a quem não interessa fazer alarde do RNB, tal como do índice de Gini? Por um lado, às multinacionais, certamente. O PIB é mais elevado e contém os seus lucros. Por outro lado, o índice de Gini não tem qualquer interesse para as multinacionais, que não estão preocupadas com discrepâncias sensíveis na distribuição da riqueza e, se sim, apenas para as aproveitar. Aos governos e aos grupos económicos mais importantes dos países também não interessam muito estes dois indicadores. Não os fazem colher louros.
Interessantemente, nota-se que há, na Europa, países católicos como a Espanha, Portugal e Irlanda, que contam com um grande número - que já foi substancialmente maior - de multinacionais dentro das suas fronteiras. A razão é óbvia: há muito que praticam salários baixos, quando comparados com os alemães, holandeses, luxemburgueses, etc. Quando a enorme população asiática ainda não era usada pelo Ocidente e quando o Leste europeu era pertença económica da URSS, Espanha, Portugal e Irlanda possuíam a mão-de-obra mais barata, o que se revelou altamente lucrativo para as multinacionais. Estas actuavam e actuam como os antigos países colonizadores relativamente às suas colónias: contribuem para algumas melhorias, mas de forma nada altruísta. Logo que tanto o Leste europeu como a China, a Indonésia e a Índia se abriram às multinacionais, a Espanha, Portugal e a Irlanda deixaram de ser economias verdadeiramente competitivas. São hoje países em crise. A engorda foi balofa, não sustentada. Aprendem presentemente à sua própria custa aquilo que todos os nutricionistas há muito sabem: é mais fácil engordar do que emagrecer.
Tanto a Espanha como Portugal e a Irlanda estiveram estreitamente ligados à construção civil, ao imobiliário. A receita foi a mesma para todos. Não foi por acaso que era em Espanha, a mais importante destas três economias, que circulava o maior número de notas de 500 euros de toda a Eurolândia! Por que razão? Por transparência, algo que é por inerência próprio dos sistemas democráticos, não era de certeza. Os preços elevados dos imóveis – empolados pela banca, o grande senhorio do imobiliário - e o incentivo estatal de conceder deduções de impostos ao crédito para habitação levaram ao incentivo das prestações, que agora e por muitos anos acorrentam as populações ao pagamento da dívida. Quando a bolha especulativa rebentou, a responsabilidade ficou nas pessoas, mas os bancos sofreram também, obviamente, com a desvalorização dos imóveis e com o crédito mal-parado.
Olhemos para dois casos interessantes. Vamos dar primeiro uma vista de olhos à Irlanda, onde o milagre parecia tão grande como o Portugal-bom-aluno do tempo de Cavaco Silva como primeiro-ministro. Sendo um país de língua inglesa, a Irlanda atraiu capital estrangeiro mais facilmente do que qualquer outro país europeu. O país engordou com a vinda de numerosas multinacionais. Um quarto do investimento directo dos Estados Unidos na Europa foi encaminhado para a Irlanda! O desemprego praticamente desapareceu, tendo chegado a atingir a baixíssima fasquia de 4 por cento. Entretanto, os preços do imobiliário triplicaram (!) numa década. Tal como cá, o endividamento das famílias ronda hoje os 130 por cento do rendimento disponível. Os bancos irlandeses estão aflitíssimos por razões que são evidentes. No sobe-e-desce, a Irlanda está claramente numa descida, tal como a Espanha e tal como Portugal. A situação de pobreza de muitas pessoas na Irlanda mantém-se. Nem o boom lhes valeu.
Terminemos com algo mais simpático e consistente. Será que, na presente crise global, existiu algum país do mundo industrializado em que nenhum banco requeresse a ajuda do Estado? Terá havido algum país que hoje esteja pouco afectado pela crise e se encontre francamente melhor em termos comparativos do que os seus vizinhos? Sim, houve. É também um país cujo sistema bancário foi considerado o número 1 entre muitos outros (os Estados Unidos quedaram-se pela 40ª posição e a Grã-Bretanha pelo 44º posto). É, ainda, um país que não seguiu os outros em vários campos, nomeadamente em matéria de desregulação ou liberalização. Continuou a sua habitual prática de segurança e controlo, honrada pela tradição. É um país onde vivem muitos emigrantes portugueses. Dizia-me um deles no Verão passado: "Não pagar os impostos devidos é lá considerado quase como um homicídio! Anda tudo na linha. E a justiça actua!" O país em questão tem uma longuíssima fronteira com os Estados Unidos. É o Canadá. A manutenção de valores que outros desprezaram, a aversão ao risco desmedido, a força do trabalho acima de tudo e a solidez dos empregos fizeram do Canadá um país próspero, que agora resiste facilmente à crise. Um indicador interessante: o Toronto-Dominion Bank era, há um ano, o 15º maior banco da América do Norte. Hoje ocupa a 5ª posição. Não aumentou em tamanho. Os outros é que diminuíram.
Esta foi uma pequena volta pelas questões do PIB, do RNB, das multinacionais e dos países soberanos. Para mim, serviu para concatenar ideias. Espero que suscite algum interesse e debate entre os eventuais leitores. Por meu lado, estou aberto a corrigir algumas opiniões expressas. Como sempre.

2/07/2009

Perguntas para as quais ainda não encontro respostas convincentes

Os bancos que podiam ter sido salvos foram alvo de ajuda. O Estado introduziu-se sobremaneira na propriedade privada que era geralmente adjectivada de “excelente”. Inserido num sistema capitalista, o Estado ajudou prioritariamente o sector mais capitalista de todos: o financeiro. Argumento principal: revitalizar a economia, possibilitar empréstimos às empresas, que não sobrevivem sem o recurso ao crédito. Aqui pergunta-se: dentro da linha deste mesmo argumento, que parece em certa medida válido - até ver! - , porque não paga o Estado a empresas de toda a ordem os milhões de euros que lhes deve? Será que isso não contribuiria para uma revitalização da economia? Ou será porque o Estado não emprestou de facto dinheiro à banca e apenas lhes deu a garantia de poderem ir buscar dinheiro a outras paragens, sendo ele, Estado, portanto o avalista desses empréstimos? Mas, se sim, terá o Estado constituído as necessárias provisões, i.e. terá posto de lado, em reserva, o capital que serve como avalizador dos empréstimos contraídos ou confiado apenas na boa gestão dos bancos que terão contraído os referidos empréstimos?
A par de uma imensa descrença no sistema, o grande problema que surge desta enorme crise é o de uma economia muito parada, que tem levado a uma fortíssima onda de desemprego. O problema é que, ao dizermos "desemprego", estamos a falar de algo como o oposto de vida, uma "desvida" para milhares de pessoas. "Não ter emprego é como estar numa prisão", ouvi há tempos da boca de um desempregado que já levava vários meses sem nada fazer, desesperado.
Em face da situação, pergunta-se:
- continuarão as empresas do mundo ocidental a recorrer em massa ao uso de mão-de-obra barata de países mais pobres, de regime ditatorial se necessário, para que a sua margem de lucro seja maior - com isto condenando milhares de pessoas dos seus próprios países ao desemprego?
- continuarão os centros offshore a poder impunemente desempenhar o seu papel de fuga aos impostos devidos nos seus respectivos países pelos grandes capitalistas?
- continuarão os hedge funds a não ter controlo bolsista e a influenciar as bolsas de todo o mundo?
- continuarão os bancos a emprestar dinheiro a pessoas para comprarem casas com preços empolados, deixando essas pessoas profundamente endividadas?
- continuarão as inequidades tremendas do ponto de vista de rendimentos que foram criadas pelo sistema capitalista?
- continuarão os bónus e os extras pagos aos administradores dos bancos socorridos com o aval do Estado? É vital que não se deixe criar a ideia de que os principais ganhadores e especuladores do passado recente são premiados em vez de punidos. A trafulhice não pode compensar!
- continuarão as multinacionais a ditar as suas leis aos Estados e a decretar o primado da economia de mercado sobre todo o resto?
- continuará na maioria das escolas a não se desenvolver o espírito crítico nos alunos, a ensinar o "just do it!" e a desprezar disciplinas como Filosofia? Estaremos a caminho de uma sociedade de executantes não-pensantes?
- continuará a hipocrisia de se dizer uma coisa e fazer o seu oposto, tal como discursar em congressos e assinar artigos nos media sobre os deveres sociais das empresas e depois não os cumprir? Ou realçar o mérito dos trabalhadores enquanto há lucros chorudos e depois encerrar as fábricas ao primeiro sinal de prejuízo, antes que seja tarde!?
- continuará a definir-se a felicidade como o prazer de consumir?

2/03/2009

João Ratão dixit

João Miguel Tavares escreveu, no Diário de Notícias de 03/02/2009, sob o título “A Cabala Explicada às Criancinhas” que “…Santos Silva e Silva Pereira não são o «Bobby» e o «Tareco» de Sócrates. São dois ministros…”.

Eu acho que são! Não acha?

2/02/2009

Pobreza e morte

Ocorreu ontem um acidente grave no Quénia. Algures no interior do país, um camião-cisterna que transportava gasolina virou-se na estrada e o combustível começou a escorrer para fora do veículo. A uma povoação próxima chegou rápida a notícia do acidente. A população largou tudo e acorreu em massa para recolher o precioso líquido que lhe chegava, como presente do céu, absolutamente grátis. Adultos e crianças muniam-se de baldes e outro tipo de recipientes. A certa altura, praticamente com toda a aldeia lá e com alguns polícias a tentar conter a desenfreada multidão, sucedeu o pior. Devido a um cigarro inadvertidamente aceso ou por alguém ter lançado fogo em protesto contra a acção policial, tudo explodiu. "Já tinha deixado o meu primeiro jerrycan em casa. Quando voltava para encher outro, ouvi de súbito uma explosão enorme. Foi indescritível!" comentou um dos habitantes da aldeia. "Um inferno!" O resultado foi a morte de mais de cem pessoas, incluindo quatro polícias, a que se juntaram trinta e quatro pessoas que precisaram de ser evacuadas por via aérea para a capital, Nairobi.
Se trago aqui esta perturbadora notícia, que é conhecida do público, é basicamente para chamar a atenção para o facto, nem sempre devidamente realçado, de que os grandes acidentes ocorrem geralmente com populações pobres. Seja no Quénia, na Venezuela, no Brasil, na Nigéria, na Índia, na China, no México ou na Indonésia.
Em zonas sísmicas, as casas destruídas por tremores de terra são geralmente as dos mais pobres, que são também as menos resistentes e que não foram planeadas nem por arquitectos nem por engenheiros e são, muitas vezes, clandestinas.
Em grandes inundações, os mais afectados são também, de longe, os mais pobres. Sem outras possibilidades monetárias, constroem as suas casas onde podem, frequentemente no leito de cheias de rios. Pode suceder que haja anos benignos com poucas chuvas, mas a certa altura vem uma daquelas semanas de chuvas fortes e ininterruptas e lá vai tudo. Ou se dá uma derrocada das terras acima devido à infiltração das águas pluviais, ou é mesmo o leito da ribeira que enche a transbordar e arrasa tudo o que encontra no seu caminho.
Por razões de deficiente alimentação, a generalidade da população pobre possui menos resistência a doenças. Aliás, a esperança média de vida em países pobres, como muitos dos que existem em África, é incrivelmente baixa. A uma esperança de vida da ordem dos 75-80 anos em nações desenvolvidas do ocidente europeu, como Portugal e Espanha, corresponde frequentemente uma outra de apenas 40 ou 50 anos nesses países, ou menos ainda. Alguns números darão uma ideia melhor: Suazilândia (33 anos), Angola (37), Lesotho e Zimbabue (40), Namíbia (43), Moçambique (41), Guiné-Bissau (47), África do Sul (43). Não é nada o mesmo que uma pessoa, aquando do seu nascimento, tenha uma esperança de viver até aos 40 anos ou, mais folgadamente, até aos 80!
Um exemplo flagrante da maneira como a pobreza e as múltiplas carências que ela acarreta tem para a longevidade das populações é-nos dado por duas zonas da área de Glasgow, na Escócia. Enquanto que na área fortemente carente de Calton a esperança de vida é da ordem dos 54 anos, em Lenzie, uma zona abastada que se situa apenas a 8 quilómetros de distância, a mesma esperança de vida é superior em 28 anos!
A questão do fuel derramado junto à uma povoação do interior do Quénia, as cento e tal mortes ocorridas e mais um número grande de feridos revelam exactamente o mesmo. Onde é que os ricos sairiam a correr de suas casas, de jerrycan na mão, para tentar arranjar uns litrinhos de fuel derramado? O nexo existente entre a pobreza, a iliteracia, o desenvolvimento e a liberdade tem sido, justificadamente, o grande tema de Amartya Sen, prémio Nobel de Economia em 1998. É pena que tenha que ser um professor nascido na Índia, embora leccionando nos Estados Unidos e no Reino Unido, a levantar esta questão tão importante, que aliás afecta também uma parte significativa da população periférica das grandes cidades em vários países do mundo ocidental, como o exemplo de Calton acima citado bem ilustra.