2/24/2009

Língua e cultura




Como todos sabemos, a cultura de um determinado país tem sempre aspectos em que difere da de vários outros. Se questionarmos um grupo de portugueses a respeito dos ingleses, inquirindo se estes são mais quentes e calorosos ou mais frios do que nós, quase em 100 por cento dos casos receberemos a resposta de que eles são mais frios. De onde nos vem a noção de que nós somos mais calorosos e, eventualmente, mais efusivos? Em grande parte de um conjunto de pormenores, onde decerto se inclui a distância a que falamos e a gestualidade que empregamos.
Os falantes de língua inglesa, aí incorporando a maioria dos americanos, evitam geralmente o contacto corporal ao falarem uns com os outros. Quando são forçados a ficar muito juntos, como frequentemente sucede num elevador, ficam com os músculos tensos, evitam contactos através do olhar e permanecem em silêncio. Mesmo os casais têm uma tendência para não se tocarem.
Os utentes da língua inglesa mantêm geralmente entre si grandes bolhas de espaço, e esperam que os outros as respeitem. Detestam sentir o calor ou o cheiro do corpo de outra pessoa, ou ter a salivação do outro em "gafanhotos" atirada ao rosto durante uma conversa (nós também não gostamos, pois não?). Sempre que outras pessoas se aproximam demasiado, eles recuam, colocam a cabeça para trás, cruzam os braços em frente do peito ou arranjam outras barreiras. Não se trata verdadeiramente de frieza ou de falta de educação. Estão apenas a seguir as regras da sua própria cultura.
A que vem este arrazoado? Basicamente pretendo apenas construir uma pequena ponte entre esta distância social e as línguas que são faladas, neste caso por portugueses e por ingleses. Como responderia o leitor a esta questão: um possessivo, geralmente expresso pela preposição "de", é mais quente ou mais frio do que uma preposição de lugar? Embora tudo na vida seja controverso e permita outros ângulos de observação, por meu lado estou em crer que o possessivo é mais quente e subjectivo, enquanto a preposição de lugar é mais fria e objectiva.
Há dias, quando passei pelo Largo do Dr. José de Figueiredo, às Janelas Verdes - o Dr. J. Figueiredo, falecido há 71 anos, foi o primeiro director do Museu Nacional de Arte Antiga - chamou-me a atenção a placa identificadora do largo. Porquê "do", como a foto mostra, e não apenas "Largo Dr. José Figueiredo"? Embora a placa também pudesse deixar de fora o "do", creio que a melhor resposta é: porque estamos em Portugal e não estamos noutro país. Temos a nossa cultura própria. O "do" familiariza a pessoa, o largo é dele, o antigo director que toda a gente da zona se habituou a ver durante anos e anos. Ele é o dono do largo. Este nome não é um simples identificador, um qualificativo. Representa a posse.
Este conceito de posse nem sempre é fácil para quem aprende inglês. Alunos meus com conhecimentos do idioma muito razoáveis gostavam de chamar ao famoso templo romano de Évora Diana’s Temple, o que estaria correcto apenas se o templo pertencesse a uma pessoa chamada Diana. Só que esta era uma deusa e o templo lhe era, eventualmente, apenas dedicado, o que o torna simplesmente Temple of Diana.
Ora, este assunto é interessante noutros domínios linguísticos. Tomemos, por exemplo, um filme bem conhecido dos cinéfilos que vão ao cinema há muitos anos: "A Ponte do Rio Kwai". Qual será o título do original inglês? The Bridge of the River Kwai? Não. Temos que transpor a cultura, tal como a ponte transpõe o rio: The Bridge on the River Kwai.
Será este um acaso? Claro que não. Qualquer terra portuguesa com necessidade de um identificador ou determinativo escolhe a preposição "de" para anteceder esse identificador: Ferreira do Zêzere, Figueira da Foz, Viana do Alentejo. Em inglês, guarda-se outra distância e prefere-se em vez da posse uma preposição de lugar, neste caso significando "sobre": Newcastle-upon-Thyne, Stratford-on-Avon. Tanto Newcastle como Stratford são cidades em que passam, respectivamente, o Thyne e o Avon. Aliás, em alemão e em francês faz-se o mesmo: Frankfurt-am-Main (Frankfort do Meno), Köln-am-Rhein, Rüdesheim-am-Rhein, Auvers-sur-Oise, Méry-sur-Oise, Tournon-sur-Rhône, Étoile-sur-Rhône, Châtillon-sur-Seine, Neuilly-sur-Seine, etc.
Creio ter já contado neste mesmo local algo que se passou comigo há cerca de um ano. Mãe e filha brasileiras interpelaram-me, relativamente perto de minha casa, para me perguntarem se aquela era a "Rua do Dr. Afonso". Com um forte sotaque brasileiro, aquele "Dr. Afonso" pareceu-me algo estranho, mas ao mesmo tempo muito engraçado. Elas apontaram-me para uma placa na parede de um prédio, por cima das nossas cabeças. Olhei. Sorri para mim mesmo e foi com gosto que confirmei a suposição das duas brasileiras. Estávamos na Alameda Afonso Henriques. Aquele "Dr." para o nosso primeiro rei era tão carinhoso! E, repare-se, "do Dr. Afonso"!
Dentro da linha de subjectividade / objectividade, parece-me que os portugueses gostam de pessoalizar mais as coisas do que os ingleses. Em contraste com a língua inglesa, por exemplo, nós animamos os objectos, quase que considerando que eles possuem uma vontade própria. Quando dizemos "a porta fechou-se", "a janela abriu-se" ou "a jarra partiu-se", emprestamos aos objectos este "se" que lhes dá alma. Em inglês, com uma objectividade diferente, dir-se-á apenas the door closed, the window opened, the pot broke.
Estas diferenças culturais e, nomeadamente, linguísticas dariam pano para mangas. Dada a natureza de um blog, fiquemos hoje por aqui.

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