2/11/2009

O PIBismo

Peço desculpa por estar há já algum tempo aparentemente a bater na mesma tecla. Creio, no entanto, que haverá sempre algo de novo em cada um destes posts. O PIBismo, i.e., o culto do PIB (Produto Interno Bruto), tornou-se quase uma religião para muitos fanáticos. Muitos já o contestaram. Com toda a razão, proclamaram que nem só de PIB vive o homem, e esta não é apenas uma tirada a jogar com palavras. Perguntemo-nos: fundamentalmente, a quem interessa o PIB?
À primeira vista, dir-se-á que o palavreado imenso sobre o PIB do país A e do B foi gerado pelos próprios países. Permito-me duvidar, muito embora admita que os governos gostem de se referir ao PIB, nomeadamente quando ele está a crescer. Mas será que o PIB per capita nos dá uma ideia concreta da riqueza dos habitantes de um país? Certamente que não. Diz-nos qual foi a produção interna de um país, mas nada nos refere sobre a distribuição da riqueza que teve origem nessa produção. Para isso, devemos usar o índice de Gini, que é de facto apropriado.
Penso que o PIB, que era uma medida há muito usada pelos economistas, começou a ser largamente propagado nos media com o advento das grandes multinacionais e do seu comércio global. Porquê? Fundamentalmente porque é uma medida que interessa sobremaneira às multinacionais. Estas estão interessadas na sua produção à escala global e estão-se positivamente nas tintas para quase tudo o resto. Mais: não lhes interessa falar nem de países, nem de culturas diferentes. Estas então menos que tudo: as multinacionais não pretendem barreiras culturais. Para elas, interessa a produtividade, a relação entre a produção e o seu custo.
Também para elas, os países são basicamente os locais físicos onde a produção tem lugar e mais nada. Tipicamente, o neo-liberalismo - hoje falido? - tabela os países de acordo com o seu PIB e, depois, compara-os frequentemente com a facturação de multinacionais. Não inocentemente. As pessoas que laboram e realizam a produção não contam verdadeiramente. Operários de pele branca podem ser perfeitamente substituídos por operários de pele amarela, se isso convier ao capital. Se são mais pobres e aceitam salários mais baixos, as multinacionais põem os seus assessores de R.P. a lembrar que até estão a ajudar essas pessoas a sair da sua condição de pobreza. Mas esta, como todos já entendemos, é apenas a treta do costume para justificar durante alguns anos a exploração de homens, mulheres e, em determinados casos, de crianças. Também quando se instalam num determinado país, o primeiro argumento utilizado pelas multinacionais e, simultaneamente, pelos governos que as autorizam, é a criação de postos de trabalho. Dir-me-ão: mas isso não conta? Conta! Para os governos, pessoas com emprego pagam impostos e as empresas fazem as correspondentes deduções fiscais. É riqueza acrescida, que o PIB depois traduz. E não haverá mais nada? Será que as multinacionais não trazem o apport de novas técnicas e uma moderna metodologia de trabalho que constitui uma poderosa mais-valia para o país e, por exemplo, para engenheiros saídos das escolas? E será que as pessoas que trabalham nas multinacionais as amaldiçoam ou, pelo contrário, as apreciam na medida em que através daqueles empregos conseguiram sair de ocupações mais duras e sem remuneração tão visível? Se não tivessem utilidade, por que motivo seriam as multinacionais tão choradas por aqueles que se vêem agora desesperados e sem emprego? Tudo isto é verdade. É algo que se pode consubstanciar na clássica frase "é bom enquanto dura". Ou, pelo menos, não é mau enquanto dura. Contudo, a maioria das multinacionais que se instalam em países como Portugal usufrui de vastos subsídios e faz contratos leoninos. As garantias que deixam são pequenas. São um corpo com a cabeça algures noutros locais. A sua produção destina-se geralmente à exportação, no total ou quase, e não ao país onde os produtos são fabricados.
E, já agora, uma pergunta: os lucros são também exportados? Ora, esse é um dos aspectos mais relevantes. Sim, de facto se as multinacionais não fizerem qualquer reinvestimento, v.g. para alargamento de instalações, os lucros saem do país. É esta a razão por que muitos economistas insistem na necessidade de grandes empresas, mas de preferência nacionais.
Então, levantemos agora uma questão: se os lucros são exportados mas fazem parte do PIB, chegamos à conclusão de que este é parcialmente enganador. A ser assim, precisamos de um outro indicador que seja mais fiel à verdade. Encontramos outro, mas que é tão pouco propagandeado nos media como o índice de Gini: o Rendimento Nacional Bruto (RNB). Interroguemo-nos: a quem não interessa fazer alarde do RNB, tal como do índice de Gini? Por um lado, às multinacionais, certamente. O PIB é mais elevado e contém os seus lucros. Por outro lado, o índice de Gini não tem qualquer interesse para as multinacionais, que não estão preocupadas com discrepâncias sensíveis na distribuição da riqueza e, se sim, apenas para as aproveitar. Aos governos e aos grupos económicos mais importantes dos países também não interessam muito estes dois indicadores. Não os fazem colher louros.
Interessantemente, nota-se que há, na Europa, países católicos como a Espanha, Portugal e Irlanda, que contam com um grande número - que já foi substancialmente maior - de multinacionais dentro das suas fronteiras. A razão é óbvia: há muito que praticam salários baixos, quando comparados com os alemães, holandeses, luxemburgueses, etc. Quando a enorme população asiática ainda não era usada pelo Ocidente e quando o Leste europeu era pertença económica da URSS, Espanha, Portugal e Irlanda possuíam a mão-de-obra mais barata, o que se revelou altamente lucrativo para as multinacionais. Estas actuavam e actuam como os antigos países colonizadores relativamente às suas colónias: contribuem para algumas melhorias, mas de forma nada altruísta. Logo que tanto o Leste europeu como a China, a Indonésia e a Índia se abriram às multinacionais, a Espanha, Portugal e a Irlanda deixaram de ser economias verdadeiramente competitivas. São hoje países em crise. A engorda foi balofa, não sustentada. Aprendem presentemente à sua própria custa aquilo que todos os nutricionistas há muito sabem: é mais fácil engordar do que emagrecer.
Tanto a Espanha como Portugal e a Irlanda estiveram estreitamente ligados à construção civil, ao imobiliário. A receita foi a mesma para todos. Não foi por acaso que era em Espanha, a mais importante destas três economias, que circulava o maior número de notas de 500 euros de toda a Eurolândia! Por que razão? Por transparência, algo que é por inerência próprio dos sistemas democráticos, não era de certeza. Os preços elevados dos imóveis – empolados pela banca, o grande senhorio do imobiliário - e o incentivo estatal de conceder deduções de impostos ao crédito para habitação levaram ao incentivo das prestações, que agora e por muitos anos acorrentam as populações ao pagamento da dívida. Quando a bolha especulativa rebentou, a responsabilidade ficou nas pessoas, mas os bancos sofreram também, obviamente, com a desvalorização dos imóveis e com o crédito mal-parado.
Olhemos para dois casos interessantes. Vamos dar primeiro uma vista de olhos à Irlanda, onde o milagre parecia tão grande como o Portugal-bom-aluno do tempo de Cavaco Silva como primeiro-ministro. Sendo um país de língua inglesa, a Irlanda atraiu capital estrangeiro mais facilmente do que qualquer outro país europeu. O país engordou com a vinda de numerosas multinacionais. Um quarto do investimento directo dos Estados Unidos na Europa foi encaminhado para a Irlanda! O desemprego praticamente desapareceu, tendo chegado a atingir a baixíssima fasquia de 4 por cento. Entretanto, os preços do imobiliário triplicaram (!) numa década. Tal como cá, o endividamento das famílias ronda hoje os 130 por cento do rendimento disponível. Os bancos irlandeses estão aflitíssimos por razões que são evidentes. No sobe-e-desce, a Irlanda está claramente numa descida, tal como a Espanha e tal como Portugal. A situação de pobreza de muitas pessoas na Irlanda mantém-se. Nem o boom lhes valeu.
Terminemos com algo mais simpático e consistente. Será que, na presente crise global, existiu algum país do mundo industrializado em que nenhum banco requeresse a ajuda do Estado? Terá havido algum país que hoje esteja pouco afectado pela crise e se encontre francamente melhor em termos comparativos do que os seus vizinhos? Sim, houve. É também um país cujo sistema bancário foi considerado o número 1 entre muitos outros (os Estados Unidos quedaram-se pela 40ª posição e a Grã-Bretanha pelo 44º posto). É, ainda, um país que não seguiu os outros em vários campos, nomeadamente em matéria de desregulação ou liberalização. Continuou a sua habitual prática de segurança e controlo, honrada pela tradição. É um país onde vivem muitos emigrantes portugueses. Dizia-me um deles no Verão passado: "Não pagar os impostos devidos é lá considerado quase como um homicídio! Anda tudo na linha. E a justiça actua!" O país em questão tem uma longuíssima fronteira com os Estados Unidos. É o Canadá. A manutenção de valores que outros desprezaram, a aversão ao risco desmedido, a força do trabalho acima de tudo e a solidez dos empregos fizeram do Canadá um país próspero, que agora resiste facilmente à crise. Um indicador interessante: o Toronto-Dominion Bank era, há um ano, o 15º maior banco da América do Norte. Hoje ocupa a 5ª posição. Não aumentou em tamanho. Os outros é que diminuíram.
Esta foi uma pequena volta pelas questões do PIB, do RNB, das multinacionais e dos países soberanos. Para mim, serviu para concatenar ideias. Espero que suscite algum interesse e debate entre os eventuais leitores. Por meu lado, estou aberto a corrigir algumas opiniões expressas. Como sempre.

Sem comentários:

Enviar um comentário