Ocorreu ontem um acidente grave no Quénia. Algures no interior do país, um camião-cisterna que transportava gasolina virou-se na estrada e o combustível começou a escorrer para fora do veículo. A uma povoação próxima chegou rápida a notícia do acidente. A população largou tudo e acorreu em massa para recolher o precioso líquido que lhe chegava, como presente do céu, absolutamente grátis. Adultos e crianças muniam-se de baldes e outro tipo de recipientes. A certa altura, praticamente com toda a aldeia lá e com alguns polícias a tentar conter a desenfreada multidão, sucedeu o pior. Devido a um cigarro inadvertidamente aceso ou por alguém ter lançado fogo em protesto contra a acção policial, tudo explodiu. "Já tinha deixado o meu primeiro jerrycan em casa. Quando voltava para encher outro, ouvi de súbito uma explosão enorme. Foi indescritível!" comentou um dos habitantes da aldeia. "Um inferno!" O resultado foi a morte de mais de cem pessoas, incluindo quatro polícias, a que se juntaram trinta e quatro pessoas que precisaram de ser evacuadas por via aérea para a capital, Nairobi.
Se trago aqui esta perturbadora notícia, que é conhecida do público, é basicamente para chamar a atenção para o facto, nem sempre devidamente realçado, de que os grandes acidentes ocorrem geralmente com populações pobres. Seja no Quénia, na Venezuela, no Brasil, na Nigéria, na Índia, na China, no México ou na Indonésia.
Em zonas sísmicas, as casas destruídas por tremores de terra são geralmente as dos mais pobres, que são também as menos resistentes e que não foram planeadas nem por arquitectos nem por engenheiros e são, muitas vezes, clandestinas.
Em grandes inundações, os mais afectados são também, de longe, os mais pobres. Sem outras possibilidades monetárias, constroem as suas casas onde podem, frequentemente no leito de cheias de rios. Pode suceder que haja anos benignos com poucas chuvas, mas a certa altura vem uma daquelas semanas de chuvas fortes e ininterruptas e lá vai tudo. Ou se dá uma derrocada das terras acima devido à infiltração das águas pluviais, ou é mesmo o leito da ribeira que enche a transbordar e arrasa tudo o que encontra no seu caminho.
Por razões de deficiente alimentação, a generalidade da população pobre possui menos resistência a doenças. Aliás, a esperança média de vida em países pobres, como muitos dos que existem em África, é incrivelmente baixa. A uma esperança de vida da ordem dos 75-80 anos em nações desenvolvidas do ocidente europeu, como Portugal e Espanha, corresponde frequentemente uma outra de apenas 40 ou 50 anos nesses países, ou menos ainda. Alguns números darão uma ideia melhor: Suazilândia (33 anos), Angola (37), Lesotho e Zimbabue (40), Namíbia (43), Moçambique (41), Guiné-Bissau (47), África do Sul (43). Não é nada o mesmo que uma pessoa, aquando do seu nascimento, tenha uma esperança de viver até aos 40 anos ou, mais folgadamente, até aos 80!
Um exemplo flagrante da maneira como a pobreza e as múltiplas carências que ela acarreta tem para a longevidade das populações é-nos dado por duas zonas da área de Glasgow, na Escócia. Enquanto que na área fortemente carente de Calton a esperança de vida é da ordem dos 54 anos, em Lenzie, uma zona abastada que se situa apenas a 8 quilómetros de distância, a mesma esperança de vida é superior em 28 anos!
A questão do fuel derramado junto à uma povoação do interior do Quénia, as cento e tal mortes ocorridas e mais um número grande de feridos revelam exactamente o mesmo. Onde é que os ricos sairiam a correr de suas casas, de jerrycan na mão, para tentar arranjar uns litrinhos de fuel derramado? O nexo existente entre a pobreza, a iliteracia, o desenvolvimento e a liberdade tem sido, justificadamente, o grande tema de Amartya Sen, prémio Nobel de Economia em 1998. É pena que tenha que ser um professor nascido na Índia, embora leccionando nos Estados Unidos e no Reino Unido, a levantar esta questão tão importante, que aliás afecta também uma parte significativa da população periférica das grandes cidades em vários países do mundo ocidental, como o exemplo de Calton acima citado bem ilustra.
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