Há uns tempos, assustou muita gente o facto de Salazar ter sido escolhido pelos telespectadores, através de uma longa eleição na RTP, como o maior dos portugueses. "Porquê Salazar?" foi a pergunta mais comum. Será que os jovens votaram em alguém que eles de facto não conheceram? Parece pouco crível. Terão sido os seus pais? Nalguns casos, certamente. Ou os seus avós? Nalguns casos também. Houve quem tivesse considerado a votação um escândalo, enquanto outros bateram palmas. O fantasma do ditador mostrou estar bem vivo. O interessante destas coisas é, sempre, perguntar porquê. Então, num regime democrático elege-se um ditador?!
Talvez seja de começar pelo substancial aumento de longevidade dos portugueses. Nunca como hoje houve neste país tantos sexagenários, septuagenários e octogenários. São todos pessoas que viveram os anos do regime denominado de Estado Novo (quem nasceu depois de 1970 já não conheceu o que significava viver sob esse regime). Se muitos cidadãos vivos referem com saudade esse (longo) período é porque, de uma maneira ou doutra, estabelecem o contraponto com os tempos actuais. É aqui que, a meu ver, começa a ser interessante a análise.
Em princípio, quando se fala com o homem da rua sobre as suas preferências – regime ditatorial ou democrático? -, a resposta que se obterá predominantemente é "regime democrático". Isto significa, obviamente, uma antítese ao regime ditatorial, que era o de Salazar. Nessa altura, quando havia eleições os resultados eram previamente concertados. Havia falta de liberdade de expressão em termos políticos. Existia uma altamente perigosa polícia de "defesa do Estado". Comissões de censura actuavam sobre a imprensa, rádio e TV, além de sobre filmes e livros. Apesar de tudo isto, não é geralmente este ramalhete de itens que muitas pessoas têm em mente quando falam saudosamente de um salazarismo que mitificam. Aquilo que a memória lhes traz de volta é a pacificidade dos tempos, o sossego nas ruas, a não-visibilidade de conflitos, a relativa estabilidade dos preços e uma apreciável garantia de emprego. Ora, a democracia, pela liberdade que é inerente à sua implementação, torna-se por natureza sede de um número maior de conflitos.
Mas creio haver algo mais, não irrelevante, no saudosismo desses cidadãos: a existência de uma figura tutelar, sempre a mesma, a "empunhar o leme da Nação". Salazar arranjou maneira de não ser elegível: ele era, tout court, o Presidente do Conselho de Ministros. Era ele quem escolhia os seus ministros e os dispensava quando lhe apetecia. Quanto a si próprio, não se sujeitava ao voto popular. Entroncava aí o regime ditatorial. Dos lugares de topo, quem se submetia a eleições era uma figura que ele próprio escolhia: o Presidente da República (P.R.). Geralmente não existiam grandes diferenças de opinião entre o P.R. e Salazar, mas se estas ocorriam o sacrificado era o primeiro e não o segundo. A este o país devia um regime autoritário. Porém, a sua honestidade pessoal não era posta em causa. Ninguém dizia que Salazar estava a governar para se locupletar. Sempre foi visto como uma pessoa austera e frugal, que via na sua missão o serviço ao país e não servir-se a si próprio -, a não ser através do uso do poder, o que, convenhamos, já não era pouco.
Graças às diferentes comissões de censura e a uma estratégia de marketing político, o país navegava entre ranchos do tipo "Como elas cantam e dançam em Paços de Brandão", jogos de futebol e de hóquei em patins mais ou menos animados e corridas de bicicletas. No povo incutia-se a noção do dever e da frugalidade. A ideia básica, de consolação e esperança, consistia no slogan mais interiorizado do que expresso "Não há benefícios sem sacrifícios". Incentivava-se a poupança. A ambição era combatida como qualidade negativa. A Igreja era uma aliada de peso do regime. A política do "baluarte da civilização ocidental" cerrava fronteiras contra os inimigos da Pátria, nomeadamente a ONU. Opiniões altamente discordantes não se ouviam a não ser em períodos de campanha eleitoral, o que facilitava ao regime encarcerar alguns dos dissidentes logo que aquele período excepcional de liberdade terminava.
Poderia chamar-se paz podre, mas havia paz e sossego. Mesmo a guerra no Ultramar foi encarada mais como missão do que como conflito real. E os causadores da luta não eram tanto as populações locais como "os interesses estrangeiros que se auto-desmascaravam no odioso aerópago da ONU".
Havia duas palavras que eram usadas com grande frequência: Nação e Pátria. Exaltava-se o orgulho nacionalista, clamava-se pelos patriotas e apodava-se os dissidentes de anti-patriotas. O que Salazar alegadamente fazia era, sempre, A Bem da Nação.
A contrapor a esta situação ditatorial, que vigorou durante décadas, temos o actual regime democrático, saudado pela esmagadora maioria dos portugueses graças ao derrube do antigo regime ditatorial, num mês de Abril de há 35 anos. Como era de prever, os vários interesses que estavam conjugados na sua antipatia à ditadura cedo se desuniram na sua visão de sociedade. Liberdade foi a palavra-chave, mas geraram-se conflitos de vária ordem, que os meios de comunicação social, já livres da censura, começaram a reportar para a população. Assim, de chofre, passou-se da concordância, podre ou falsa mas de qualquer forma aparente, a algum caos que confundiu muitas pessoas. Com a independência das colónias ultramarinas e o decorrer dos anos, palavras como Nação e Pátria passaram a estar fora de moda. Eram conceitos que faziam parte integrante do regime anterior. Bem ou mal, correspondiam à noção do "ser". Foram sendo substituídos por siglas mais da ordem do "ter", das quais a principal foi possivelmente o PIB. Procurava-se garantir um maior bem-estar das populações. Surgiram numerosos hipermercados bem recheados de produtos. Posteriormente, fez-se campanha pela aquisição de casa própria, medida que levou uma percentagem elevada de portugueses a ficarem endividados perante a banca, enquanto esta se endividava perante instituições estrangeiras. A felicidade transitou para a noção de "ter", o que levou ao derrube de numerosos padrões éticos. Imensas coisas melhoraram, desde a saúde à educação. Na saúde ocorreu uma espectacular baixa da mortalidade infantil em resultado de melhoria de cuidados; no domínio da educação, a massificação levou todas as crianças à escola e um número muito considerável a continuarem os seus estudos a nível superior. Tentou-se recuperar o atraso de décadas, embora se tenha embarcado num nível de facilitismo desnecessário e errado. A nossa entrada no Mercado Comum em 1986 contribuiu, através de vultosas ajudas comunitárias, para que aumentasse exuberantemente a nossa rede de auto-estradas. O país ficou mais pequeno. Novas tecnologias foram gradualmente sendo introduzidas. Portugal, que sempre foi um país de exportação de mão-de-obra, começou a importar trabalhadores estrangeiros em larga escala. As transformações que ocorreram não foram ligeiras. Nalguns aspectos, foram mesmo brutais.
Um desses aspectos com maior relevância na nossa transformação foi a mudança da sociedade dos deveres do período salazarista para a sociedade dos direitos pós-25 de Abril. A ambição deixou de ser considerada um defeito. Enfileirou, em vez disso, no ramo das qualidades mais positivas. A poupança passou para segundo ou terceiro plano. A Igreja perdeu muito da sua influência, principalmente nas grandes urbes. A população começou a habituar-se a ver nas ruas das cidades ou, através da ubíqua televisão, manifestações de toda a ordem. De metalúrgicos, enfermeiros, empregados do sector têxtil, professores, funcionários públicos, militares e até polícias.
E o regime? Cumpria as regras democráticas? De entre todas as regras principais, uma delas tem sido cumprida exemplarmente: a realização de eleições livres. As correspondentes campanhas de propaganda partidária, utilizando automóveis, megafones, cartazes, filmes televisivos, etc. trouxeram uma parafernália de colorido que nunca se tinha visto até então. A política começou a dominar os cabeçalhos dos jornais. E pontos de vista diferentes também. Qualquer medida governamental, fosse qual fosse o partido em exercício, era contrariada pela oposição: no Parlamento, na TV, na imprensa escrita. Mais tarde, quando um partido da oposição ganhava o poder, procedia muitas vezes da forma que antes criticara. E a liberdade, essa grande arma do regime democrático? A grande verdade, diga-se, é que a liberdade precisa de ser garantida pela justiça. Suponho que foi Lamartine que disse que "entre o forte e o fraco é a liberdade que oprime e a lei que liberta". Neste campo, a democracia portuguesa tem falhado inúmeras vezes. A justiça não é célere e tem sido pouco eficaz. As fraudes financeiras aumentaram muito e passam impunes. É um facto que a existência de offshores contribui muito para este estado de coisas, mas mesmo assim a nossa justiça não tem funcionado bem. Este facto desprotege os mais desprotegidos, como a citação entre aspas acima as indica. Desapareceu a censura, mas não desapareceu o medo na sociedade portuguesa. Com poucos objectivos dentro da área do "ser", valores éticos soçobraram, aliás tal como sucedeu no regime ditatorial. A grande diferença é que agora se tornavam visíveis, enquanto que na ditadura eram ocultados.
Lembremos ainda que, como é sempre no confronto com o outro que nós aprendemos a identificar-nos, a democracia procurou desmascarar muitas das tácticas abomináveis do antigo regime, o qual foi frequentemente apodado de fascista.
A passagem para a democracia teve, relativamente ao período da ditadura, outra grande diferença fundamental: enquanto Salazar possuía uma estratégia de continuidade – hélas, demasiado longa! -, presentemente os primeiro-ministros dos partidos eleitos governam por um período de quatro anos, que pode ou não ser continuado por via eleitoral. Isto significa que Salazar surgia quase como proprietário da sua nação, cujos destinos concebia e fazia cumprir. Em contrapartida, os primeiro-ministros democráticos já não são vistos como donos ou proprietários. São meros gestores ou administradores, que a votação popular pode fazer apear ao fim de um mandato. Este facto acaba por, de certa maneira, menorizar o papel dos ministros que constituem governo e obriga-os a seguir práticas com o seu quê de populismo, práticas essas que nem sempre seguem os sãos princípios da economia.
Sob este aspecto, será curioso analisar as estratégias habituais seguidas durante os mandatos democráticos. Nos primeiros dois anos/dois anos e meio introduzem-se as reformas que são consideradas essenciais; no ano em que as eleições voltam a realizar-se descomprime-se o país, desaperta-se o cinto o mais possível e são oferecidos bonbons especiais que irão melhorar a situação a curto prazo, mas que acabarão por ser pagos com língua de palmo anos mais à frente.
Cavaco Silva, professor de Economia e Finanças na Universidade, ensinava nos seus apontamentos que os políticos têm uma enorme tendência para fraquejar na parte final dos seus mandatos, a fim de conseguirem renová-los, cedendo nas despesas estatais que anteriormente tentaram conter. Note-se que Cavaco Silva foi, a princípio, muito comparado a Salazar, principalmente pelo seu jeito austero e também por ser originário da área das Finanças. Ora, é curioso verificar que o próprio Cavaco Silva, quando ocupou o seu cargo de Primeiro-Ministro acabou por tomar essa medida. Os funcionários públicos receberam um aumento superior ao que era habitual, o que veio onerar sobremaneira a Função Pública.
Presentemente, José Sócrates consentiu um aumento de 2,9 por cento aos funcionários estatais, portanto muito superior à inflação. Ele, que lutou noutras frentes – v.g. na Segurança Social – para controlar as despesas públicas. Esta forma de proceder, que é vulgar em regimes democráticos, retira alguma credibilidade ao sistema. Num só ano, desfaz-se aquilo que demorou os três anos anteriores a construir. Ainda por cima com efeitos perniciosos sobre o ciclo seguinte. Olhando apenas para o caso actual, notamos que José Sócrates mostrou algumas boas qualidades de liderança, a despeito de um claro excesso de arrogância. Contudo, falhou em aspectos basilares e teve pelo seu lado o azar de o 3-em-um lhe sair torto de várias maneiras. Por um lado, a existência da crise internacional beneficiou-o como desculpa externa; por outro, veio aumentar substancialmente o desemprego em Portugal. Para alguém que tinha prometido aumentar o emprego, é um descrédito. Além disso, um caso pouco claro na sua formação académica deixou que sobre a sua figura recaíssem suspeitas graves quanto à impecabilidade da sua formação em engenharia. A juntar a este facto sobrevieram outras suspeitas de um eventual caso de corrupção quando ainda era Ministro do Ambiente de outro governo. Se compararmos a folha limpa – neste aspecto! – de Salazar, o que era aliás reconhecido pela oposição, vemos que o posicionamento do actual primeiro-ministro deixa algo a desejar e, com isso, compromete o seu esforço para reeleição, mau grado o disparate financeiro do aumento de 2,9% ao funcionalismo público. Neste campo, note-se ainda que, sendo a classe dos professores um volumoso grupo dentro do funcionalismo, o descontentamento que a equipa ministerial grangeou entre o grupo vai fazer com que este despropositado aumento seja algo deitado à rua em termos de votos.
Este foi um breve passeio, muito à vol d’oiseau, desde a ditadura até à democracia. Espero que os leitores pelo menos reconheçam que houve uma sincera tentativa de objectividade na análise.
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